terça-feira, 12 de março de 2024

Humanos, neuróticos e complexados

Imagem: Kushnir

Por BRUNO MACHADO*
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Como todo complexo do inconsciente individual se fundamenta em um complexo do inconsciente coletivo, cada caso concreto de complexos estará associado – no fundo do inconsciente do indivíduo – a um arquétipo

Frequentemente acusada de pseudociência, a psicanálise vem há mais de um século servindo de ferramenta para desvendar os fundamentos da psiquê humana. Por se voltar ao inconsciente, seja o inconsciente pessoal ou o coletivo, a psicanálise estuda o que nos faz efetivamente humanos, já que a razão pode ser emulada em máquinas e as emoções se mostram presentes em outros animais, ditos irracionais.

No início de seu trabalho, Sigmund Freud analisou os sonhos e descobriu que esses não são apenas frutos do inconsciente, mas também que são realizações de desejos em seu conteúdo implícito. Como muitos de nossos desejos estão associados a acontecimentos confusos na nossa infância ou são desejos sexuais ou maldosos de maneira geral e, por isso, são considerados reprováveis por nosso superego, esses desejos presentes nos sonhos são distorcidos em seu conteúdo explícito. Além disso, Freud também explica, em seu método de interpretação de sonhos, que os sonhos não são apenas distorcidos mas também condensados fortemente. Por conta disso, é tão difícil interpretar um sonho de maneira confiável.

Correndo o risco de simplificar demais ideias tão complexas, podemos dizer que para nos defender das reprovações do superego, as quais nos causam angústia, nosso ego utiliza de mecanismos de defesa para conseguir nos proteger do sofrimento psíquico. Acontece que, esses mecanismos acabam se repetindo em nosso comportamento não associado a causa inicial da reprovação do superego, além de aparecer também em sonhos e em atos falhos em nossa fala cotidiana. Além disso, quando os mecanismos de defesa atuam muito fortemente para bloquear uma angústia, surgem as neuroses em nossa psiquê individual.

Um dos mecanismos de defesa do ego é a inibição, que é quando o ego recalca ou inverte um desejo do id que é considerado condenável pelo superego. Quando o ego opta pela inversão um sentimento de ódio condenável pelo superego pode ser invertido em um sentimento de amor, por exemplo. Outro mecanismo, não ligado a desejos internos do id, mas a desejos do id ligados ao mundo exterior é o mecanismo de defesa da restrição. Na restrição, ao se deparar com a impossibilidade material de um desejo do id, como o sucesso em determinada profissão, o ego a restringe e a substitui por outro desejo diferente e oposto ao desejo inicial. O ego de um artista fracassado, por exemplo, pode evitar seu sofrimento o fazendo trocar de profissão para contador, que no caso de sucesso, atinge o princípio do prazer e da fuga da angústia que o ego segue a todo tempo.

Outra defesa do ego é a negação. Defrontado com um perigo externo que pode causar dor, o ego nega a existência desse perigo e o inverte. Um exemplo desse tipo de situação seria o ego de uma pessoa que tem como desafeto outra pessoa altamente violenta e perigosa, mas seu ego passa a ver essa pessoa perigosa como inofensiva, se considerar que não tem outra alternativa para evitar a angústia que o medo gera.

Uma curiosa defesa do ego é a introjeção. Nela, o ego passa a imitar características ou ações da pessoa que representa perigo, de forma a psiquicamente inverter sua posição de vítima para a de agressor, evitando a angústia que o medo causa. O ego de um prisioneiro, por exemplo, pode fazê-lo imitar trejeitos de um carcereiro que o agride constantemente ou até mesmo se tornar agressivo com todas as pessoas à sua volta, imitando as ações do carcereiro malvado.

Já um rotineiro mecanismo de defesa do ego é a projeção, onde o ego daquele que tem desejos ou realiza ações condenados por seu superego passa a colocar a culpa desses desejos ou ações em outras pessoas, se livrando do julgamento do seu superego. Seria o caso, por exemplo, de um homem que, por conta de uma pulsão de seu id, deseja a esposa de um de seus irmãos, mas vive acusando injustamente um primo seu de tal desejo, ou apenas guardando para si tal certeza em segredo, também com o intuito de fugir do julgamento do seu superego.

Se a interpretação dos sonhos, os mecanismos de defesa do ego e as neuroses podem ser vistos como uma das principais elaborações teóricas de Freud, podemos dizer o mesmo a respeito de Jung quando falamos do inconsciente coletivo, dos arquétipos e dos complexos.

Estudando a cultura e os símbolos de vários povos de diferentes culturas, Jung descobriu que existem símbolos em comum em toda a humanidade. Esses símbolos seriam provenientes de um inconsciente coletivo comum aos humanos. A partir desses símbolos, Jung elaborou uma série de “esteriotipos” que chamou de arquétipos. O herói, a grande mãe, o velho sábio e a prostituta sagrada, por exemplo, são alguns desses arquétipos, sendo também os mais frequentes. Esses arquétipos costumam guiar nosso inconsciente através dos complexos ligados ao inconsciente coletivo.

Dessa maneira, além dos mecanismos de defesa e das neuroses, estão presentes também em nosso inconsciente os complexos ligados ao inconsciente coletivo e ao inconsciente pessoal. Os arquétipos são o símbolo primordial mais profundo em cada um dos complexos. Todo complexo tem sua camada ligada ao inconsciente pessoal e sua camada ligada ao inconsciente coletivo, sendo essa última mais profunda e que se fundamenta em um dos arquétipos.

Jung e outros autores também explicam que os complexos atuam em nosso inconsciente de forma constelada. Logo, um complexo atua de forma derivada de outro, e diferentes complexos podem estar em diferentes estágios de repressão no inconsciente. Ou seja, alguns complexos estarão mais longe do consciente do que outros. Além disso, esses inúmeros complexos que estão em nosso inconsciente costumam derivar de três principais complexos, os quais costumam explicar a maior parte da nossa psiquê, são eles: o complexo de Édipo, o complexo materno e o complexo paterno.

O complexo de Édipo é aquele no qual o filho, ainda quando criança, se aproxima emocionalmente mais da mãe e passa a competir com seu pai. Enquanto a filha se aproxima emocionalmente mais do pai e compete com a mãe. O complexo de Édipo é aquele que costumeiramente faz com que o homem busque uma parceira que se assemelhe com sua mãe e a mulher busque um parceiro que se assemelhe ao seu pai. Tal semelhança pode ser pelo comportamento, personalidade, e algumas vezes até mesmo física. Um complexo de Édipo mal resolvido na infância pode deixar um indivíduo em uma busca incessante pela superação do pai/mãe ou, por outro lado, pode deixá-lo preso em uma sequência de relacionamentos amorosos mal sucedidos causados pela busca por parceiros com os mesmos problemas comportamentais que seu pai ou sua mãe tinham.

Já os complexo materno e paterno podem deixar o indivíduo em uma vida composta pela tentativa em looping de lidar com questões da sua infância. Nesse caso, diversas situações da vida cotidiana não relacionadas a fatos de sua infância são aumentados ou distorcidos na psiquê do indivíduo de forma que se tornam uma repetição do mesmo problema que havia em sua infância. Por exemplo, uma criança que era frequentemente deixada sozinha pelos pais, pode repetir esse sentimento de abandono em situações de sua vida adulta que nada têm a ver com abandono ou descaso, mas na visão desse indivíduo complexado haverá a repetição dessa situação angustiante.

Em outro caso, um indivíduo que na infância era muito reprimido por seus pais, em cada mínima atitude julgada como incorreta, poderá gerar um complexo parental negativo e pode viver uma vida de eterna vigilância, com medo de julgamentos e condenações, tendo então uma vida mais restrita e limitada, podendo gerar fortes frustrações quanto a realizações pessoais e dificuldade de relacionamento interpessoal. Esses são apenas dois exemplos hipotéticos de complexos parentais que podem surgir na psiquê de um indivíduo aparentemente saudável.

Especificamente sobre o complexo materno positivo, um exemplo clássico é o do filho homem que foi tão amado e admirado por sua mãe que na vida adulta desenvolveu uma autoestima narcísica, levando a um egoísmo patológico e uma grande dificuldade de lidar com frustrações e limitações as suas vontades pelo mundo exterior. Um complexo materno negativo clássico pode ser exemplificado pelo caso de uma filha que vendo sua mãe como submissa ao seu pai gerou uma história de relacionamentos amorosos mal sucedidos por conta de um medo de repetir a mãe, ou seja, a filha se proibiu de se relacionar emocionalmente com seus namorados com medo do casamento e da família tradicional.

Já o complexo paterno positivo pode ser exemplificado pelo filho que de tão admirado e incentivado pelo pai, gerou um complexo em que vive uma busca incessante por realizações pessoais e profissionais no intuito de fazer jus a admiração de seu pai, correndo risco de gerar também o chamado complexo de Hércules, no qual o indivíduo busca missões impossíveis de serem realizadas e geram, portanto, fortes frustrações. Por outro lado, um exemplo de complexo paterno negativo seria de um filho de um pai autoritário e extremamente rigoroso que na vida adulta busca se opor ao pai e termina em uma vida de hedonismo e irresponsabilidade.

Como todo complexo do inconsciente individual se fundamenta em um complexo do inconsciente coletivo, cada caso concreto de complexos estará associado – no fundo do inconsciente do indivíduo – a um arquétipo. No caso dos arquétipos associados aos complexos paternos, os mais comuns são o do herói e o do velho sábio, que podem atuar de forma tanto positiva quanto negativa no complexo. Já no caso dos complexos maternos, os arquétipos mais comuns são o da grande mãe e o da prostituta sagrada.

O arquétipo do herói está associado a moralidade e a grandes realizações, o arquétipo do velho sábio está associado a frieza de sentimentos e a grande conhecimento, a grande mãe está ligada à ideia de proteção e demonstração de afeto, enquanto a prostituta sagrada está ligada à sexualidade exacerbada. Apesar de serem comumente mais associados a uma só figura paterna ou materna, esses quatro complexos podem ser associados tanto ao pai, quanto a mãe, ou até mesmo a outras figuras de forte vínculo familiar e afetivo, independente do gênero.

Tanto as neuroses (geradas pelos mecanismos de defesa do ego) quanto os complexos (gerados pelos arquétipos) estão presentes na psiquê de cada ser humano. Entretanto, apenas alguns indivíduos virão a adoecer por conta da angústia psíquica que tais neuroses e complexos poderão resultar na sua vida cotidiana. Dessa forma é importante ressaltar que todos nós somos não só humanos, mas neuróticos e complexados.

*Bruno Machado é engenheiro.


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