sexta-feira, 19 de abril de 2024

Deus, um delírio ( gota 11 )

RICHARD DAWKINS

Deus, um delírio
COMPANHIA DAS LETRAS
Tradução Fernanda Ravagnani


8. O que a religião tem de mau? Por que ser tão hostil?
 
A religião convenceu mesmo as pessoas de que existe um homem invisível—que mora no céu — que observa tudo o que você faz, a cada minuto de cada dia. E o homem invisível tem uma lista especial com dez coisas que ele não quer que você faça. E, se você fizer alguma dessas dez coisas, ele tem um lugar especial, cheio de fogo e fumaça, e de tortura e angústia, para onde vai mandá-lo, para que você sofra e queime e sufoque e grite e chore para todo o sempre, até o fim dos tempos... Mas Ele ama você!
George Carlin

 

Por natureza, não me dou bem em confrontos. Não acho que o formato antagônico seja o melhor para obter a verdade, e com frequência recuso convites para participar de debates formais. Uma vez fui convidado para debater com o então arcebispo de York, em Edimburgo. Senti-me honrado e aceitei. Depois do debate, o físico religioso Russell Stannard reproduziu em seu livro Doing away with God? [Destruindo Deus?] uma carta que escreveu para o The Observer.

Senhor,

 Sob o bem-humorado título "Deus fica num triste segundo lugar para a Majestade da Ciência", seu correspondente de ciência contou (bem no domingo de Páscoa) como Richard Dawkins "aplicou um dolorido golpe intelectual" no arcebispo de York num debate sobre ciência e religião. Soubemos de "ateus sorrindo satisfeitos" e "Leões 10; Cristãos 0".


Stannard prosseguiu repreendendo o Observer por não ter relatado um encontro subseqüente dele comigo, junto com o bispo de Birmingham e o destacado cosmólogo sir Hermann Bondi, na Royal Society, que não tinha sido realizado no formato de debate antagônico, e que em conseqüência tinha sido muito mais construtivo. Só posso concordar com a condenação implícita que ele fez do formato do debate antagônico. Especificamente, por motivos que expliquei em O capelão do diabo, jamais participo de debates com criacionistas.*

Apesar do meu pouco apreço por essas discussões de gladiadores, aparentemente ganhei fama de beligerante contra a religião. Colegas que concordam que Deus não existe, que concordam que não precisamos de religião para ser morais e que concordam que é possível explicar as raízes da religião e da moralidade em termos não religiosos mesmo assim me procuram meio intrigados. Por que você é tão hostil? O que a religião tem de tão errado? Ela faz tanto mal assim para que devamos combatê-la ativamente? Por que não deixar para lá, como se faz com Touro e Escorpião, com a energia dos cristais e as linhas ley? Não são só bobagens inofensivas?

Rebato dizendo que essa hostilidade que eu ou outros ateus às vezes expressamos contra a religião limita-se a palavras. Não vou atacar ninguém com bombas, decapitar ninguém, apedrejar ninguém, queimar ninguém em fogueiras, crucificar ninguém nem lançar aviões contra arranha-céus só por causa de uma discordância teológica. Mas meu interlocutor normalmente não deixa as coisas assim. Ele pode prosseguir dizendo algo como: "Sua hostilidade não faz de você um ateu fundamentalista, tão fundamentalista quanto aqueles malucos do Cinturão Bíblico?". Preciso descartar essa acusação de fundamentalismo, pois ela é perturbadoramente comum.

FUNDAMENTALISMO E A SUBVERSÃO DA CIÊNCIA

Os fundamentalistas sabem que estão certos porque leram a verdade num livro sagrado e sabem, desde o começo, que nada os afastará de sua crença. A verdade do livro sagrado é um axioma, não o produto final de um processo de raciocínio. O livro é a verdade e, se as provas parecem contradizê-

 * Não tenho a chutzpah de recusar nos mesmos termos que um de meus colegas cientistas mais destacados, sempre que um criacionista tenta realizar um debate formal com ele (não o identificarei, mas suas palavras devem ser lidas com sotaque australiano): "Isso ficaria ótimo no seu currículo; não tão bom no meu".

lo, são as provas que devem ser rejeitadas, não o livro. Pelo contrário, as coisas em que eu, como cientista, acredito (a evolução, por exemplo), acredito não porque as li num livro sagrado, mas porque estudei as provas. É uma coisa bem diferente. As pessoas acreditam nos livros sobre evolução não porque eles sejam sagrados. Acreditam porque eles apresentam quantidades imensas de evidências mutuamente sustentadas. Quando um livro de ciência está errado, alguém acaba descobrindo o erro, e ele é corrigido nos livros subsequentes. Isso evidentemente não acontece com os livros sagrados.

Os filósofos, especialmente os amadores, com um aprendizado filosófico limitado, e mais especialmente ainda aqueles contaminados pelo "relativismo cultural", podem levantar nesse ponto mais uma cansativa bandeira: a crença dos cientistas nas evidências é por si só uma questão de fé fundamentalista. Já tratei disso em outros lugares, e só vou repetir brevemente meus argumentos aqui. Todos nós acreditamos em evidências em nossa vida, independentemente do que professemos quando vestimos nosso uniforme de filósofos amadores. Se sou acusado de assassinato, e o promotor pergunta, sério, se é verdade que eu estava em Chicago na noite do crime, não posso me safar com uma fuga filosófica: "Depende do que você quer dizer com Verdade'". Nem com uma alegação antropológica e relativista: "Só no seu sentido científico e ocidental de 'em' é que eu estava em Chicago. Os bongoleses têm um conceito completamente diferente de 'em', segundo o qual só se está 'em' um lugar se se é um ancião ungido com o direito de aspirar pó de escroto de bode".115

Talvez os cientistas sejam fundamentalistas quando se trate de definir de um jeito meio abstraio o que "verdade" significa. Mas todo mundo é assim. Não sou mais fundamentalista quando digo que a evolução é uma verdade do que quando digo que é verdade que a Nova Zelândia fica no hemisfério sul. Acreditamos na evolução porque as evidências a sustentam, e a abandonaríamos num piscar de olhos se surgissem novas evidências que a desmentissem. Nenhum fundamentalista de verdade diria uma coisa dessas.

É muito fácil confundir fundamentalismo com paixão. Posso muito bem parecer apaixonado quando defendo a evolução diante do criacionismo fundamentalista, mas isso não acontece por causa de meu próprio fundamentalismo rival. Acontece porque as evidências da evolução são fortíssimas e fico apaixonadamente perturbado com o fato de meu oponente não conseguir enxergar isso — ou, o mais comum, recusar-se até a pensar nisso, porque contradiz seu livro sagrado. Minha paixão aumenta quando penso em tudo que os pobres fundamentalistas, e aqueles que eles influenciam, estão perdendo. As verdades da evolução, junto com muitas outras verdades científicas, são tão fascinantes e belas que é realmente trágico morrer tendo perdido tudo isso! É claro que isso me inflama. Como não inflamaria? Mas minha crença na evolução não é fundamentalismo, e não é fé, porque sei o que seria necessário para mudar de ideia, e mudaria satisfeito se fossem apresentadas as evidências necessárias.

Isso acontece. Já contei a história de um integrante respeitado do Departamento de Zoologia de Oxford, quando eu fazia a graduação. Por anos ele tinha acreditado apaixonadamente, e ensinado, que o complexo de Golgi (uma estrutura microscópica do interior das células) não existia: era uma fabricação, uma ilusão. Era costume do departamento ouvir, toda tarde de segunda-fei-ra, uma palestra de um convidado sobre alguma pesquisa. Uma segunda-feira, o visitante foi um biólogo celular americano que apresentou evidências totalmente convincentes de que o complexo de Golgi existia. No fim da palestra, o senhor de Oxford foi até a frente da sala, apertou a mão do americano e disse, apaixonadamente: "Caro companheiro, gostaria de agradecer-lhe. Eu estava errado por todos esses quinze anos". Aplaudimos até ficar com as mãos vermelhas. Nenhum fundamentalista jamais diria isso. Na prática, nem todos os cientistas diriam. Mas todos os cientistas pelo menos declaram que isso é o ideal — diferentemente, digamos, de políticos, que talvez condenassem esse tipo de atitude, chamando-a de mudança de lado. A lembrança do incidente que descrevi ainda me provoca um nó na garganta.

Como cientista, sou hostil à religião fundamentalista porque ela debocha ativamente do empreendimento científico. Ela nos ensina a não mudar de ideia, e a não querer saber de coisas emocionantes que estão aí para ser aprendidas. Ela subverte a ciência e mina o intelecto. O exemplo mais triste que conheço é o do geólogo americano Kurt Wise, que hoje dirige o Centro para Pesquisa das Origens no Bryan College, em Dayton, Tennessee. Não é por acaso que o Bryan College tem esse nome por causa de William Jennings Bryan, promotor do "Julgamento do Macaco" contra o professor de ciências John Scopes, em Dayton, em 1925. Wise poderia ter realizado sua ambição de infância e ser professor de biologia numa universidade de verdade, uma universidade cujo lema fosse "Pense criticamente", em vez do oximoro estampado no site da Bryan na internet: "Pense crítica e biblicamente". Ele, aliás, obteve um diploma de verdade na Universidade de Chicago, além de dois outros títulos em geologia e paleontologia em (nada menos que) Harvard, onde teve aulas com (ninguém menos que) Stephen Jay Gould. Era um jovem cientista altamente qualificado e promissor, que avançava para realizar o sonho de ensinar ciência e fazer pesquisas numa boa universidade.

Aí veio a tragédia. Ela veio não do exterior, mas de dentro da própria cabeça dele, uma cabeça fatalmente subvertida e enfraquecida por uma criação religiosa fundamentalista que exigia que ele acreditasse que a Terra — o objeto de seus estudos geológicos em Chicago e Harvard — tinha menos de 10 mil anos de idade. Ele era inteligente demais para não reconhecer a colisão frontal entre sua religião e sua ciência, e o conflito mental o deixou cada vez mais desconfortável. Um dia, sem conseguir suportar mais a tensão, atacou o problema com uma tesoura. Pegou uma Bíblia e a percorreu, retirando literalmente todos os versos que teriam que ser eliminados se a visão científica do mundo fosse verdadeira. No final desse exercício honesto e trabalhoso, sobrou tão pouco da Bíblia que:

por mais que eu tentasse, e mesmo com o benefício das margens intactas ao longo das páginas das Escrituras, vi que era impossível pegar a Bíblia sem que ela se partisse ao meio. Tive de tomar uma decisão entre a evolução e as Escrituras. Ou as Escrituras eram verdade e a evolução estava errada ou a evolução era verdade e eu tinha de jogar a Bíblia fora [...] Foi ali, naquela noite, que aceitei a Palavra de Deus e rejeitei tudo que a contradissesse, incluindo a evolução. Assim, com grande tristeza, lancei ao fogo todos os meus sonhos e as minhas esperanças na ciência.

Acho isso uma coisa terrivelmente triste; mas, se a história do complexo de Golgi me levou a lágrimas de admiração e júbilo, a história de Kurt Wise é só patética — patética e desprezível. A ferida, na carreira e na felicidade dele, fora auto-infligida, e era tão desnecessária, tão fácil de evitar. Ele só tinha que jogar a Bíblia fora. Ou interpretá-la em termos simbólicos, ou alegóricos, como fazem os teólogos. Em vez disso, tomou a atitude funda-mentalista e jogou a ciência, a evidência e a razão fora, junto com todos os seus sonhos e esperanças.

Talvez de forma singular entre os fundamentalistas, Kurt Wise é honesto — de uma honestidade devastadora, dolorosa, chocante. Dêem a ele o prémio Templeton; ele pode ser o primeiro premiado realmente sincero. Wise leva à superfície o que está secretamente escondido, na cabeça dos fundamentalistas em geral, quando eles encontram evidências científicas que contradizem suas crenças. Ouça sua peroração:

Embora existam razões científicas para aceitar uma terra jovem, sou criacionista porque essa é minha compreensão das Escrituras. Como disse para meus professores anos atrás, quando estava na faculdade, se todas as evidências do universo se voltarem contra o criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, mas continuarei sendo criacionista, porque é isso que a Palavra de Deus parece indicar. Essa é minha posição.116

Ele parece estar citando Lutero, quando pregou suas teses na porta da igreja em Wittenburg, mas o pobre Kurt Wise me faz lembrar mais Winston Smith em 1984 — lutando desesperada-mente para acreditar que dois mais dois é igual a cinco, se o Grande Irmão diz que é. Winston, porém, estava sendo torturado. O duplipensamento de Wise não vem do imperativo da tortura física, mas do imperativo — aparentemente tão inegável quanto, para algumas pessoas — da fé religiosa: pode-se defender que se trate de uma forma de tortura mental. E, se ela fez isso a um geólogo que estudou em Harvard, imagine o que é capaz de fazer a pessoas menos dotadas e menos aparelhadas. A religião fundamentalista está determinada a arruinar a educação científica de inúmeros milhares de mentes jovens, inocentes e bem-intencionadas.

A religião não fundamentalista, "sensata", pode não estar fazendo isso. Mas está tornando o mundo seguro para o fundamentalismo ao ensinar as crianças, desde muito cedo, que a fé inquestionável é uma virtude.


O LADO NEGRO DO ABSOLUTISMO 

No capítulo anterior, quando tentei explicar o Zeitgeist moral mutante, invoquei um consenso disseminado de pessoas liberais, esclarecidas e decentes. Assumi a hipótese otimista de que "nós" todos concordamos amplamente com esse consenso, alguns mais que os outros, e tinha em mente a maioria das pessoas propensas a ler este livro, sejam elas religiosas ou não. Mas é claro que nem todo mundo está dentro desse consenso (e nem todo mundo terá vontade de ler meu livro). É preciso admitir que o absolutismo está longe de estar morto. Na verdade, ele domina a mente de um grande número de pessoas no mundo atual, de forma mais perigosa no mundo muçulmano e na teocracia americana incipiente (veja o livro de Kevin Phillips com esse nome). Esse absolutismo quase sempre resulta de uma forte fé religiosa, e constitui um grande motivo para sugerir que a religião seja uma força para o mal no mundo. 

Uma das punições mais rígidas do Antigo Testamento é a imposta à blasfémia. Ela ainda está em vigor em determinados países. A seção 295-C do código penal do Paquistão prevê a pena de morte para esse "crime". No dia 18 de agosto de 2001, o dr. Younis Shaikh, médico e palestrante, foi condenado à morte por blasfémia. Seu crime específico foi dizer aos alunos que o profeta Maomé não era muçulmano antes de inventar a religião, aos quarenta anos. Onze de seus alunos denunciaram-no às autoridades pela "ofensa". A lei da blasfémia no Paquistão costuma ser invocada contra os cristãos, como Augustine Ashiq "Kingri" Masih, que foi condenado à morte em Faisalabad em 2000. Masih, cristão, não podia se casar com a namorada porque ela era muçulmana e — o que é inacreditável — a lei paquistanesa (e islâmica) não permite que uma mulher muçulmana se case com um homem não muçulmano. Então ele tentou se converter ao islã e foi acusado de fazê-lo por motivos vis. Não ficava claro pela informação que li se isso por si só era o crime capital ou se ele era acusado de ter dito alguma coisa sobre os princípios morais do profeta. Seja como for, certamente não é o tipo de transgressão que resulte em pena de morte em qualquer país cujas leis estejam livres do fanatismo religioso. 

Em 2006, no Afeganistão, Abdul Rahman foi condenado à morte por se converter ao cristianismo. Ele matou alguém, feriu alguém, roubou alguma coisa, estragou alguma coisa? Não. Só mudou de idéia. Mudou de idéia, interna e privadamente. Cultivou certos pensamentos que não eram do agrado do partido que governa seu país. E esse, lembre-se, não é o Afeganistão do Talibã, mas o Afeganistão "libertado" de Hamid Karzai, criado pela coalizão liderada pelos Estados Unidos. O sr. Rahman acabou escapando da execução, mas só alegando insanidade, e só depois de forte pressão internacional. Buscou então asilo na Itália, para evitar ser assassinado por fanáticos loucos para cumprir seu dever islâmico. Ainda consta de um artigo da Constituição do Afeganistão "libertado" que a pena para a apostasia é a morte. A apostasia, lembre-se, não significa um dano real a pessoas ou a propriedades. É pura "crimidéia", para usar a terminologia de George Orwell em 1984, e a punição oficial da lei islâmica para ela é a morte. Em 3 de setembro de 1992, para usar um exemplo que chegou à execução, Sadiq Abdul Karim Malallah foi decapitado em público na Arábia Saudita depois de ser condenado por apostasia e blasfémia.117 

Tive uma vez um encontro televisionado com sir Iqbal Sacranie, mencionado no capítulo 1 como o principal muçulmano "moderado" da Grã-Bretanha. Questionei-o sobre a pena de morte para a apostasia. Ele se contorceu todo, mas não conseguiu nem negá-la nem condená-la. Ficou tentando mudar de assunto, dizendo que se tratava de um detalhe sem importância. Esse é o homem que recebeu o título de cavalheiro do governo britânico por promover as boas "relações entre as fés".

Mas não sejamos complacentes com a cristandade. Há não muito tempo, em 1922, na Grã-Bretanha, John William Gott foi condenado a nove meses de trabalhos forçados por blasfêmia: ele comparou Jesus a um palhaço. É quase inacreditável, mas o crime de blasfêmia ainda consta do código civil britânico,118 e em 2005 um grupo cristão tentou entrar com uma ação civil por blasfêmia contra a BBC pela transmissão do musical Jerry Springer — The Opera. 

Nos Estados Unidos dos últimos anos o termo "Talibã americano" estava implorando para ser cunhado, e uma rápida pesquisa no Google mostra mais de uma dezena de sites que já o cunharam. As citações que eles antologizam, de líderes religiosos americanos e políticos de fé, remetem de modo assustador ao fanatismo estreito, à crueldade e à repulsividade do Talibã afegão, do aiatolá Khomeini e das autoridades wahhabistas da Arábia Saudita. A página chamada "The American Taliban" é uma fonte especialmente rica de citações ridículas, a começar por uma de uma tal Ann Coulter, que, segundo o que me convenceram colegas americanos, não é uma paródia inventada pelo The Onion: "Deveríamos invadir seus países, matar seus líderes e convertê-los ao cristianismo".119 Entre outras pérolas está o congressista Bob Dornan, com "Não use a palavra 'gay', a não ser como sigla para 'Já pegou aids?'",* o general William G. Boykin com "George Bush não foi eleito pela maioria dos eleitores dos Estados Unidos, ele foi nomeado por Deus" — e uma mais antiga, a famosa política ambiental do secretário do Interior de Ronald Reagan: "Não temos de proteger o meio ambiente, o Retorno de Cristo está próximo". O Talibã afegão e o Talibã americano são bons exemplos do que acontece quando as pessoas levam as Escrituras a sério e em termos literais. Elas proporcionam uma reprodução moderna e apavorante de como deve ter sido a vida sob a teocracia do Antigo Testamento. The fundamentais of extremism: The Christian right in America [Fundamentos do extremismo: direitos cristãos na América], de Kimberly Blaker, é uma exposição em forma de livro da ameaça do Talibã cristão (não sob esse nome). 

FÉ E HOMOSSEXUALIDADE 

No Afeganistão, sob o Talibã, a punição oficial para a homossexualidade era a execução, pelo método — de extremo bom gosto — de enterrar a vítima viva, soterrada sob um muro. Como o "crime" em si é um ato privado, realizado por adultos de forma consensual, sem fazer mal a ninguém, temos aqui a marca registrada do absolutismo religioso. Meu próprio país não pode se vangloriar. O comportamento homossexual privado foi uma transgressão criminosa na Grã-Bretanha até — inacreditavelmente —1967. Em 1954 o matemático britânico 

* "Got Aids Yet?" (N. T.)

Alan Turing, candidato junto com John von Neumann ao título de pai do computador, cometeu suicídio depois de ser condenado pela contravenção de manter comportamento homossexual privado. Tudo bem que Turing não tenha sido enterrado vivo debaixo de uma parede derrubada por um tanque. Ofereceram a ele a opção entre dois anos de prisão (dá para imaginar como os outros prisioneiros o teriam tratado) e uma série de injeções de hormônio que equivaleriam à castração química, e que faria com que ele desenvolvesse seios. Sua opção final e privada foi uma maçã, em que ele tinha injetado cianeto.120 

Cabeça essencial para o desvendamento dos códigos da Enigma alemã, Turing pode ter contribuído mais para derrotar os nazistas que Einsenhower e Churchill. Graças a Turing e seus colegas do "Ultra" de Bletchley Park, os generais aliados nos campos de batalha recebiam, durante longos períodos da guerra, planos alemães detalhados antes mesmo que os generais alemães tivessem tempo de implementá-los. Depois da guerra, quando a atuação de Turing já não era ultra-secreta, ele deveria ter sido condecorado e celebrado como salvador de sua nação. Em vez disso, o gênio simpático, gago e excêntrico foi destruído, por um "crime", cometido ria esfera privada, que não prejudicou ninguém. Mais uma vez, a marca registrada e inconfundível do moralizador da fé é preocupar-se fanaticamente com o que as outras pessoas fazem (ou até pensam) na esfera privada.

A atitude do "Talibã americano" em relação à homossexualidade resume seu absolutismo religioso. Ouça o reverendo Jerry Falwell, fundador da Universidade da Liberdade: "A aids não é só a punição de Deus contra os homossexuais; é a punição de Deus contra a sociedade que tolera os homossexuais".121 A primeira coisa que percebo nessa gente é sua maravilhosa caridade cristã. Que tipo de eleitorado consegue, mandato atrás de mandato, votar num homem de um fanatismo tão mal informado como o senador republicano pela Carolina do Norte Jesse Helms? Um homem que já disse: "O The New York Times e o The Washington Post estão infestados de homossexuais. Quase todo mundo lá é homossexual ou lésbica".122 A resposta, imagino, é um tipo de eleitorado que enxerga a moralidade em termos religiosos estreitos e sente-se ameaçado por qualquer pessoa que não tenha a mesma fé absolutista. 

Já citei Pat Robertson, o fundador da Coalizão Cristã. Ele foi um sério candidato a ser o presidenciável do Partido Republicano em 1988, e reuniu mais de 3 milhões de voluntários para trabalhar em sua campanha, além de uma quantia comparável em dinheiro: um nível de apoio inquietante, levando em consideração as seguintes declarações, totalmente típicas dele: "[Os homossexuais] querem entrar nas igrejas e atrapalhar as cerimônias religiosas e jogar sangue por todo lado e fazer as pessoas pegarem aids e cuspir na cara dos pastores"."[O Planned Parenthood] * está ensinando as crianças a fornicar, ensinando as pessoas a cometer adultério, todo tipo de bestialismo, homossexualismo, les-bianismo — tudo que a Bíblia condena." A atitude de Robertson em relação às mulheres também encheria de ternura os corações negros do Talibã afegão: "Sei que isso é doloroso para as mulheres ouvirem, mas, se você se casa, aceita a liderança de um homem, seu marido. Cristo é o chefe do lar e o marido é o chefe da mulher, e é assim que as coisas são, ponto final".

Gary Potter, presidente da entidade Católicos pela Ação Política Cristã, tem o seguinte a dizer: "Quando a maioria cristã dominar este país, não haverá igrejas satânicas, não haverá mais distribuição gratuita de pornografia, não se falará mais nos direitos dos homossexuais. Depois que a maioria cristã assumir o controle, o pluralismo será considerado imoral e ruim, e o Estado não permitirá a ninguém o direito de fazer o mal". O "mal", como fica bem claro na citação, não significa fazer coisas que tenham conseqüências ruins para as pessoas. Quer dizer pensamentos e ações na esfera privada que não sejam do agrado privado da "maioria cristã".

O pastor Fred Phelps, da Igreja Batista de Westboro, é outro religioso que tem uma antipatia obsessiva pelos homossexuais. Quando a viúva de Martin Luther King morreu, o pastor Fred organizou um piquete no enterro dela, proclamando: "Deus Odeia Bichas e Quem Ajuda Bichas. Portanto Deus Odeia Coretta Scott King e agora a está atormentando com fogo e enxofre onde o verme nunca morre e o fogo nunca se extingue, e a fumaça de seu tormento se elevará

* Organização não governamental de planejamento familiar que nos Estados Unidos se destaca, entre outras coisas, por oferecer a realização de abortos. (N. T.)

para todo o sempre".123 É fácil chamar Fred Phelps de maluco, mas ele conta com o apoio de muitas pessoas, e com o dinheiro delas. Segundo seu site, Phelps organizou 22 mil manifestações anti-homossexuais desde 1991 (isso dá uma média de quatro por dia) nos Estados Unidos, no Canadá, na Jordânia e no Iraque, com slogans como: "GRAÇAS A DEUS PELA AIDS". Um recurso especialmente encantador de seu site é a contagem automática de há quantos dias um determinado homossexual, identificado pelo nome e já morto, está queimando no inferno.

As atitudes em relação à homossexualidade revelam muita coisa sobre o tipo de moralidade que a fé religiosa inspira. Um exemplo igualmente instrutivo é o aborto e a santidade da vida humana.

A FÉ E A SANTIDADE DA VIDA HUMANA

Embriões humanos são exemplos de vida humana. Portanto, à luz do absolutismo religioso, o aborto é simplesmente errado: assassinato declarado. Não sei bem o que fazer com minha observação reconhecidamente anedótica de que muitos daqueles que mais ardentemente são contra tirar a vida de um embrião também parecem ser mais entusiastas que o normal em tirar a vida de um adulto. Para ser justo, isso não se aplica, como regra, aos católicos apostólicos romanos, que estão entre os mais eloquentes adversários do aborto. O renascido George W. Bush, porém, é um exemplar típico da ascendência religiosa atual. Ele, e eles, são defensores implacáveis da vida humana, desde que seja vida embrionária (ou de doentes terminais) — a ponto até de impedir pesquisas médicas que certamente salvariam muitas vidas.124 A base óbvia para combater a pena de morte é o respeito pela vida humana. Desde 1976, quando a Suprema Corte derrubou a proibição da pena de morte, o Texas foi o responsável por mais de um terço de todas as execuções de todos os cinqüenta estados da União. E Bush presidiu mais execuções no Texas que qualquer outro governador da história do estado, chegando a uma média de uma morte a cada nove dias. Talvez ele estivesse apenas cumprindo seu dever e executando as leis do estado.125 Mas, nesse caso, o que fazer com o famoso relato do jornalista da CNN Tucker Carlson? Carlson, que apoia pessoalmente a pena de morte, ficou, chocado com a imitação

"humorística" feita por Bush de uma prisioneira no corredor da morte, implorando ao governador que a execução fosse suspensa: '"Por favor', Bush choraminga, os lábios franzidos fingindo desespero. 'Não me mate'".126 Talvez essa mulher tivesse encontrado mais solidariedade se tivesse lembrado a ele que um dia foi um embrião. A contemplação de embriões parece mesmo ter um efeito extraordinário sobre muitas pessoas de fé. Madre Teresa de Calcutá chegou a dizer, em seu discurso ao receber o prêmio Nobel da Paz: "O maior destruidor da paz é o aborto". O quê? Como uma mulher com um juízo tão vesgo pode ser levada a sério sobre qualquer assunto, quanto mais ser considerada seriamente merecedora de um prêmio Nobel? Qualquer um que fique tentado a ser engabelado pela hipócrita madre Teresa deve ler o livro de Christopher Hitchens The missionary position: Mother Teresa in theory and practice [A posição missionária: madre Teresa na teoria e na prática]. Voltando ao Talibã americano, ouça Randall Terry, fundador da Operação Resgate, uma organização para intimidar quem oferece abortos. "Quando eu, ou pessoas como eu, estiver governando o país, é bom você fugir, porque vamos encontrá-lo, vamos julgá-lo e vamos executá-lo. Estou falando sério. E farei com que seja parte da minha missão assegurar que vocês sejam julgados e executados." Terry estava se referindo a médicos que realizam abortos, e sua inspiração cristã é claramente demonstrada por outras declarações:

Quero que você se deixe lavar por uma onda de intolerância. Quero que você deixe uma onda de ódio lavá-lo. Sim, o ódio é bom [...] Nosso objetivo é uma nação cristã. Temos um dever bíblico, somos chamados por Deus a conquistar este país. Não queremos tempos iguais. Não queremos pluralismo.

Nosso objetivo tem que ser simples. Precisamos de uma nação cristã construída na lei de Deus, nos Dez Mandamentos. Sem pedidos de desculpa.127

Essa ambição de obter o que só pode ser classificado como um Estado fascista cristão é bem típica do Talibã americano. É quase uma reprodução perfeita do Estado fascista islâmico, buscado tão ardentemente por tanta gente em outras partes do mundo. Randall Terry não tem poder político — ainda. Mas nenhum observador do cenário político americano no momento em que escrevo (2006) pode se dar ao luxo de ser otimista. 

Alguém que seja consequencialista ou utilitarista provavelmente abordará a questão do aborto de uma forma bem diferente, tentando avaliar o sofrimento. O embrião sofre? (Presume-se que não, se o aborto for realizado antes que ele tenha um sistema nervoso; e mesmo que já tenha um sistema nervoso, ele certamente sofre menos que, digamos, um boi adulto no matadouro.) A grávida, ou a família dela, sofre se não realizar o aborto? É muito possível; e, de qualquer maneira, como o embrião não possui um sistema nervoso, o sistema nervoso desenvolvido da mãe não deveria ter preferência?

Não pretendo negar que um consequencialista possa ter fundamentos para ser contra o aborto. Argumentos do tipo "bola-de-neve" podem ser apresentados por consequencialistas (mas eu não faria isso nesse caso). Talvez os embriões não sofram, mas uma cultura que tolere que se tire uma vida humana arrisca-se a ir longe demais: onde isso vai parar? No infanticídio? O momento do nascimento proporciona um Rubicão natural para a definição de regras, e dá para argumentar que é difícil encontrar um outro num ponto anterior do desenvolvimento embrionário. Argumentos do tipo bola-de-neve podem portanto nos levar a dar ao momento do nascimento mais importância que o utilitarismo, interpretado em termos estreitos, gostaria.

Argumentos contra a eutanásia também podem ser formulados no formato bola-de-neve. Inventemos uma declaração imaginária de um filósofo moral: "Se se permitir que os médicos acabem com a agonia dos doentes terminais, logo todo mundo estará despachando a vovó para ficar com o dinheiro dela. Nós, filósofos, podemos ter superado o absolutismo, mas a sociedade precisa da disciplina de regras absolutas como 'Não matarás', senão ela não sabe quando parar. Sob certas circunstâncias, o absolutismo pode, pelas razões erradas num mundo longe do ideal, ter conseqüências melhores que o consequencialismo ingênuo! Nós, filósofos, podemos ter dificuldade para proibir que se comam pessoas mortas e não reclamadas — mendigos atropelados, por exemplo. Mas, por causa da bola-de-neve, o tabu absolutista contra o canibalismo é valioso demais para ser perdido".

Argumentos do tipo bola-de-neve podem ser encarados como unia maneira pela qual os consequencialistas reimportam uma forma de absolutismo indireto. Mas os oponentes religiosos do aborto não estão nem aí para a bola-de-neve. Para eles, a questão é muito mais simples. Um embrião é um "bebê", matá-lo é assassinato, e ponto: assunto encerrado. Muita coisa decorre dessa posição absolutista. Para começar, as pesquisas com célulastronco embrionárias precisam acabar, apesar de seu enorme potencial para a medicina, porque elas envolvem a morte de células embrionárias. A incoerência fica evidente quando lembramos que a sociedade já aceita a FIV (fertilização in vitro), na qual os médicos rotineiramente estimulam as mulheres a produzir mais óvulos, que serão fertilizados fora do corpo. Mais de uma dezena de zigotos podem ser produzidos, dos quais dois ou três são implantados no útero. A expectativa é que, entre eles, apenas um ou talvez dois sobrevivam. A FIV, portanto, mata embriões em dois estágios do procedimento, e a sociedade em geral não tem nenhum problema com isso. Há 25 anos a FIV é um procedimento-padrão para levar alegria à vida de casais sem filhos.

Absolutistas religiosos, porém, podem ter problemas com a FIV. O The Guardian de 3 de junho de 2005 trouxe uma reportagem bizarra sob o título "Casais cristãos atendem apelo para salvar embriões deixados pela FIV". A reportagem é sobre uma organização chamada Snowflakes, que tenta "resgatar" os embriões excedentes deixados em clínicas de reprodução assistida. "Sentimos que o Senhor estava nos convocando a tentar dar a um desses embriões — dessas crianças — uma chance de viver", disse uma mulher do estado de Washington, cujo quarto filho resultou dessa "aliança inesperada que os cristãos conservadores estão formando com o mundo dos bebés de proveta". Preocupado com essa aliança, o marido dela consultou um líder da sua igreja, que afirmou: "Quando se quer libertar os escravos, às vezes é preciso fazer acordos com o negociante de escravos". Fico imaginando o que essa gente diria se soubesse que a maioria dos embriões concebidos sofre abortos espontâneos. Provavelmente isso deva ser encarado como uma espécie de "controle de qualidade" natural.

Um determinado tipo de cabeça religiosa não consegue enxergar a diferença moral entre matar um agrupamento microscópico de células, por um lado, e matar um médico totalmente crescido, de outro. Já citei Randall Terry e a Operação Resgate. Mark Juergensmeyer, em seu assustador livro Terror in the mina of God [Terror na mente de Deus], traz uma foto do reverendo Michael Bray com seu amigo, o reverendo Paul Hill, segurando uma faixa com os dizeres: "É errado conter o assassinato de bebés inocentes?" Os dois têm a aparência de jovens agradáveis e bem preparados, com um sorriso contagiante, roupas casuais e bonitas, o exato contrário de lunáticos abobalhados. Mesmo assim, eles e seus amigos do Exército de Deus (Army of God — AOG) resolveram incendiar clínicas de aborto, e não faziam segredo de seu desejo de matar os médicos. No dia 29 de julho de 1994, Paul Hill pegou uma espingarda e matou o dr. John Britton e o segurança dele, James Barrett, na frente da clínica de Britton, em Pensacola, na Flórida. Em seguida se entregou à polícia, dizendo que tinha matado o médico para impedir a morte futura de "bebês inocentes". 

Michael Bray defende esse tipo de ação de forma articulada e com toda a aparência de um fim moral elevado, como descobri quando o entrevistei, num parque público de Colorado Springs, para meu documentário sobre a religião para a televisão.* Antes de chegar à pergunta sobre o aborto, obtive uma medida da moralidade de Bray, baseada na Bíblia, fazendo a ele algumas perguntas preliminares. Lembrei que a lei bíblica condena os adúlteros à morte por apedrejamento. Minha expectativa era que ele desaprovasse esse exemplo específico, classificando-o como obviamente inaceitável, mas ele me surpreendeu. Afirmou tranquilamente que, depois de passar pelo devido processo legal, os adúlteros deveriam ser executados. Lembrei então que Paul Hill, com o total apoio de Bray, não havia seguido o devido processo legal, e sim feito justiça com as próprias mãos e matado um médico. Bray defendeu a atitude de seu colega religioso nos mesmos termos que tinha defendido quando Juergensmeyer o entrevistara, fazendo uma distinção entre o assassinato punitivo, de um médico aposentado, por exemplo, e o assassinato de um médico praticante como forma de impedir que ele "mate bebês regularmente". Então disse a ele que, embora as crenças de Paul Hill sem dúvida fossem sinceras, a sociedade cairia numa anarquia 

* Os ativistas que fazem ameaças de violência contra cientistas que usam animais em pesquisas médicas alegariam fins morais igualmente elevados.

terrível se todo mundo invocasse uma convicção pessoal para fazer justiça com as próprias mãos, em vez de seguir as leis locais. Não seria o caminho correto tentar mudar a lei, democraticamente? Bray respondeu: "Bem, esse é o problema quando não se tem leis que sejam leis autênticas; quando se tem leis que são inventadas na hora, por capricho, como já vimos no caso da chamada lei do direito do aborto, que foi imposta às pessoas por juízes [...]". Entramos então numa discussão sobre a Constituição americana e a origem das leis. A atitude de Bray em relação a essas questões revelou-se bem parecida com a daqueles militantes muçulmanos que moram na Grã-Bretanha e que anunciam abertamente seguir apenas a lei islâmica, não as leis democraticamente aprovadas do país que adotaram.

Em 2003, Paul Hill foi executado pelo assassinato do dr. Britton e do segurança dele, afirmando que faria tudo de novo para salvar aqueles que ainda não haviam nascido. Verdadeiramente ansioso por morrer em nome de sua causa, ele disse numa entrevista coletiva: "Acredito que o Estado, ao executar-me, estará me transformando num mártir". Os ativistas antiaborto de direita que protestavam em sua execução juntaram-se, numa aliança profana, com os ativistas de esquerda contrários à pena de morte, que pediram ao governador da Flórida, Jeb Bush, que "impedisse o martírio de Paul Hill". Eles argumentaram, de forma plausível, que o assassinato judicial de Hill acabaria incentivando mais assassinatos, exatamente o contrário do efeito preventivo que a pena de morte deveria ter. Hill sorriu por todo o trajeto até a câmara de execução, dizendo: "Espero uma grande recompensa no céu [...] Estou ansioso pela glória".128 E sugeriu que outras pessoas assumissem sua causa de violência. Prevendo ataques retaliatórios pelo "martírio" de Paul Hill, a polícia entrou em alerta máximo quando ele foi executado, e várias pessoas ligadas ao caso receberam cartas com ameaças, acompanhadas de balas.

Todo esse episódio terrível tem origem numa simples divergência de percepção. Há pessoas que, por causa de suas convicções religiosas, acham que o aborto é um assassinato e estão dispostas a matar em defesa dos embriões, que preferem chamar de "bebês". Do outro lado há defensores sinceros do aborto, que ou têm outras convicções religiosas ou não têm religião, junto com princípios morais consequencialistas ponderados. Eles também se consideram idealistas, que oferecem um serviço médico para pacientes que precisam dele, que senão recorreriam a charlatães de fundo de quintal, perigosamente incompetentes. Os dois lados, à sua própria luz, são igualmente sinceros.

A porta-voz de outra clínica de aborto descreveu Paul Hill como um psicopata perigoso. Mas gente como ele não se considera psicopata perigoso; consideram-se pessoas boas, morais, guiadas por Deus. Na verdade, não acho que Paul Hül fosse psicopata. Apenas muito religioso. Perigoso sim, mas não psicopata. Perigosamente religioso. À luz de sua fé religiosa, Hill estava plenamente certo em atirar no dr. Britton. O que havia de errado em Hill era sua fé religiosa em si. Michael Bray, quando o conheci, também não me pareceu psicopata. Até gostei bastante dele. Achei-o um homem honesto e sincero, comedido e cuidadoso, mas sua cabeça havia sido infelizmente tomada por absurdos religiosos venenosos.

Os adversários mais contundentes do aborto são quase todos profundamente religiosos. Os defensores sinceros do aborto, sejam pessoalmente religiosos ou não, têm propensão a seguir uma filosofia moral não religiosa, consequencialista, talvez invocando a pergunta de Jeremy Bentham: "Eles sofrem?". Paul Hill e Michael Bray não viam diferença moral entre matar um embrião e matar um médico, com exceção do fato de que, para eles, o embrião era um "bebê" inocente. O consequencialista vê toda a diferença do mundo. Um embrião de pouco tempo tem a sensibilidade, assim como a aparência, de um girino. Um médico é um ser adulto consciente, com esperanças, amores, aspirações, medos, um estoque maciço de conhecimento humano, capacidade para emoções profundas, muito provavelmente uma viúva desolada e filhos órfãos, talvez pais idosos loucos por ele. 

Paul Hill causou um sofrimento real, profundo, duradouro, a seres com sistema nervoso capaz de sofrimento. Sua vítima não fazia isso. Embriões de pouco tempo que não têm sistema nervoso quase com certeza não sofrem. E, se embriões abortados mais tardiamente, com sistema nervoso, sofrem — embora todo sofrimento seja deplorável —, não é porque eles são humanos.

Não há nenhuma razão para achar que os embriões humanos de qualquer idade sofram mais que embriões de boi ou de ovelha no mesmo estágio de desenvolvimento. E há toda a razão do mundo para achar que todos os embriões, humanos ou não, sofrem bem menos que bois e ovelhas adultos no matadouro, especialmente num matadouro ritualístico onde, por motivos religiosos, eles têm de estar plenamente conscientes enquanto sua garganta é cerimonialmente cortada.

 O sofrimento é difícil de medir,129 e os detalhes podem ser motivo de debates. Mas isso não afeta minha tese principal, que diz respeito à diferença entre a filosofia consequencialista laica e a moral religiosa e absoluta.* Uma escola de pensamento preocupa-se em saber se os embriões sofrem. A outra preocupa-se em saber se eles são humanos. É possível ouvir moralistas religiosos debatendo dúvidas como: "Quando o embrião em desenvolvimento se torna uma pessoa — um ser humano?". Moralistas laicos tendem a perguntar: "Não importa se ele é ou não humano (e o que isso significa para um pequeno conjunto de células?); em que idade um embrião em desenvolvimento, de qualquer espécie, se torna capaz de sofrer?."

A GRANDE FALÁCIA BEETHOVEN 

O próximo movimento dos ativistas antiaborto no xadrez verbal normalmente é como descrevo a seguir. A questão não é se o embrião humano é ou não capaz de sofrer no presente. A questão está em seu potencial. O aborto priva-o da oportunidade de uma vida humana plena no futuro. Essa idéia aparece resumida num argumento retórico cuja estupidez extrema é sua única defesa contra a acusação de grave desonestidade. Estou falando da Grande Falácia Beethoven, que existe em vários formatos. Peter e Jean Medawar,* em Life science, atribuem a versão a seguir a Norman St. John Stevas (hoje lorde St. John), um membro do Parlamento britânico e proeminente leigo da Igreja Apostólica Romana. Ele, por sua vez, pegou-a de Maurice Baring (1874-1945), um destacado convertido à Igreja Católica e ligado aos vigorosos católicos G. K. Chesterton e Hilaire Belloc. Ele a encenou na forma de um diálogo hipotético entre dois médicos. 

* Isso, é claro, não esgota todas as possibilidades. Uma maioria significativa dos cristãos americanos não assume uma atitude absolutista em relação ao aborto e é a favor do direito de escolha. Veja, por exemplo, a Coalizão Religiosa pela Escolha Reprodutiva, em www.rcrc.org/.

"Sobre a interrupção da gravidez, quero sua opinião. O pai era sifilítico, a mãe tuberculosa. Das quatro crianças que nasceram, a primeira era cega, a segunda morreu, a terceira era surda-muda e a quarta também era tuberculosa. O que você teria feito?" 

"Eu teria interrompido a gravidez." 

"Então você teria assassinado Beethoven."

A internet está coalhada de chamados sites pró-vida que repetem essa história ridícula, e mudam as premissas factuais sem pudores. Aqui está outra versão: "Se você conhecesse uma mulher que estivesse grávida, que já tivesse oito filhos, sendo que três deles eram surdos, dois eram cegos, um com deficiência mental (tudo porque ela tinha sífilis), recomendaria que ela fizesse um aborto? Então você teria matado Beethoven".130 Essa apresentação da lenda rebaixa o grande compositor de quinto a nono na ordem de nascimento, aumenta o número de surdos para três e o número de cegos para dois, e dá a sífilis à mãe em vez de ao pai. A maioria dos 43 sites que encontrei quando procurei versões da história a atribui não a Maurice Baring, mas a um certo professor L. R. Agnew da Faculdade de Medicina da UCLA, que, diz-se, propôs o dilema aos alunos e depois lhes disse: "Parabéns, vocês acabaram de assassinar Beethoven". Podemos ser caridosos e dar a L. R. Agnew o benefício de duvidar de sua existência — é incrível como essas lendas urbanas nascem. Não consigo descobrir se foi Baring que deu origem à lenda ou se ela foi inventada antes.

Porque inventada certamente ela foi. É completamente falsa. A verdade é que Ludwig van Beethoven não era nem o nono nem o quinto filho de seus pais. Era o mais velho — em termos estritos o segundo, mas seu irmão mais velho morreu pequeno, como era comum naquela época, e não era, pelo que se sabe, nem cego nem surdo nem mudo nem tinha deficiência mental. Não há evidências de que algum de seus pais tenha tido sífilis, embora seja verdade que sua mãe morreu de tuberculose. Havia muita tuberculose naqueles tempos. Trata-se, na verdade, de uma lenda urbana completa, uma fabricação, deliberadamente disseminada por gente com interesses velados em espalhá-la. Mas, de qualquer maneira, o fato de que ela seja mentira não vem ao caso. 

* Sir Peter Medawar ganhou o prémio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1960.

Mesmo que não fosse, o argumento que deriva dela é um argumento muito ruim. Peter e Jean Medawar não precisaram duvidar da veracidade da história para apontar a falácia do argumento: "O raciocínio por trás desse argumentozinho horrível é falacioso de tirar o fôlego, pois, a menos que se esteja sugerindo que haja alguma conexão causal entre o fato de ter uma mãe tuberculosa e um pai sifilítico e o nascimento de um gênio da música, é mais provável que o mundo seja privado de um Beethoven não por um aborto, mas pela abstinência casta de relações sexuais". 131 O descarte lacónico e ridicularizante dos Medawar é irrespondível (para tomar emprestada a trama de um dos contos negros de Roald Dahl, uma decisão igualmente fortuita de não fazer um aborto, em 1888, deu-nos Adolf Hitler). Mas é preciso um bocadinho de inteligência — ou talvez estar livre de certo tipo de criação religiosa — para entender. Dos 43 sites "pró-vida" da internet que citam alguma versão da lenda de Beethoven e que apareceram na minha busca no Google, no dia em que escrevi, nenhum notou a falta de lógica do argumento. Todos (eram todos sites religiosos, por sinal) caíam direitinho na falácia. Um deles até reconhecia Medawar (grafado Medawar) como fonte. Essa gente queria tanto acreditar numa falácia adequada a sua fé que nem percebeu que os Medawar só tinham citado o argumento para derrubá-lo.

Como apontaram com toda a razão os Medawar, a conclusão lógica para o argumento do "potencial humano" é que potencialmente privamos uma alma humana do dom da existência toda vez que deixamos de aproveitar uma oportunidade para manter relações sexuais. Toda recusa a qualquer oferta de cópula por um indivíduo fértil equivale, por essa lógica "pró-vida" capenga, ao assassinato de uma criança em potencial! Até mesmo resistir a um estupro poderia ser representado como assassinar um bebé em potencial (e, aliás, há um monte de ativistas "pró-vida" que negariam o aborto até a mulheres vítimas de estupros brutais). O argumento Beethoven é, como se pode ver, lógica de péssima qualidade. Sua estupidez surreal é bem resumida pela esplêndida canção "Todo espermatozóide é sagrado", cantada por Michael Palin, com um coro de centenas de crianças, no filme do Monty Python O sentido da vida (se você não viu, por favor veja). A Grande Falácia Beethoven é um exemplo típico da confusão lógica em que entramos quando nossa cabeça está confusa pelo absolutismo inspirado pela religião.

Perceba que "pró-vida" não significa exatamente pró-vida. Significa pró-vída-humana. É difícil conciliar a atribuição de direitos especiais a células da espécie Homo sapiens com o fato da evolução. Tudo bem que isso não vai preocupar os tantos ativistas antiaborto que não entendem que a evolução é um fato! Mas deixe-me descrever brevemente o argumento para os ativistas antiaborto que possam ser menos ignorantes em relação à ciência.

A tese evolutiva é muito simples. A humanidade das células de um embrião não tem como conferir a ele nenhum status moral absolutamente descontínuo. Não tem como por causa de nossa continuidade evolutiva em relação aos chimpanzés e, de forma mais distante, com todas as espécies do planeta. Para enxergar isso, imagine que uma espécie intermediária, o Australopithecus afarensis, por exemplo, tivesse conseguido sobreviver e fosse descoberta numa área remota da África. Essas criaturas "contariam como humanas" ou não? Para um consequencialista como eu, a questão não merece resposta, pois não me diz nada. Basta que ficássemos fascinados e honrados por conhecer uma nova "Lucy". O absolutista, por outro lado, precisa responder à pergunta, para aplicar o princípio moral de garantir aos seres humanos um status único e especial, porque eles são humanos. No extremo, eles teriam que criar tribunais, como aqueles da África do Sul no apartheid, para decidir se um indivíduo específico deveria ou não "passar como humano".

Mesmo que se tente dar uma resposta clara para o Australopithecus, a continuidade gradativa que é característica inescapável da evolução biológica diz-nos que tem de haver algum intermediário que fique suficientemente perto do "limite" a ponto de obscurecer o princípio moral e destruir seu absolutismo. Um jeito melhor de dizer isso é afirmando que não há limites naturais na evolução. A ilusão de um limite é criada pelo fato de que, por acaso, os intermediários evolutivos estão extintos. É claro que se pode argumentar que os homens têm uma capacidade maior para o sofrimento, por exemplo, que outras espécies. Isso pode muito bem ser verdade, e é legítimo que demos aos seres humanos um status especial por isso. Mas a continuidade evolutiva mostra que não há distinção absoluta. O fato da evolução derruba de forma devastadora a discriminação moral absolutista. O incômodo causado pela consciência desse fato pode, aliás, estar por trás de um dos motivos dos criacionistas para ser contra a evolução: eles temem suas conseqüências morais. Estão errados, mas, em todo caso, é muito estranho pensar que uma verdade sobre o mundo real possa ser invertida devido a considerações sobre o que seria moralmente desejável. 

COMO A "MODERAÇÃO" NA FÉ ALIMENTA O FANATISMO 

Quando ilustrei o lado negro do absolutismo, mencionei os cristãos que jogam bombas em clínicas de aborto nos Estados Unidos e o Talibã no Afeganistão, cuja lista de crueldades, especialmente contra mulheres, considero dolorosa demais para descrever. Poderia ter ampliado o espectro e mencionado o Ira sob os aiatolás, ou a Arábia Saudita sob os príncipes Saud, onde as mulheres não podem dirigir e vêem-se com problemas só de sair de casa sem um parente do sexo masculino (que pode, numa concessão generosa, ser uma criança). Veja Price of honour [Preço da honra], de Jan Goodwin, para uma exposição devastadora sobre o tratamento das mulheres na Arábia Saudita e em outras teocracias da atualidade. Johann Hari, um dos colunistas mais vigorosos do The Independent (de Londres), escreveu um artigo cujo título é auto-explicativo: "A melhor maneira de minar os jiha-distas é deflagrar uma rebelião entre as mulheres muçulmanas".132

 Ou, trocando para o cristianismo, eu poderia ter citado aqueles cristãos americanos do "arrebatamento" cuja poderosa influência sobre a política americana no Oriente Médio é governada por sua crença bíblica no fato de que Israel tem um direito garantido por Deus a todas as terras da Palestina.133

Alguns cristãos do arrebatamento vão mais além e chegam a torcer por uma guerra nuclear, porque a interpretam como o "Armageddon", que, de acordo com sua bizarra mas perturbadora-mente comum interpretação do livro do Apocalipse, apressará a volta de Cristo. Não consigo fazer nada melhor que o aterrorizante comentário de Sam Harris, em seu Carta a uma nação cristã:

Não é, portanto, exagero dizer que, se a cidade de Nova York de repente fosse substituída por uma bola de fogo, uma porcentagem significativa da população americana veria um lado bom no cogumelo de fumaça que se formaria em seguida, já que ele lhes sugeriria que a melhor coisa que pode acontecer está prestes a acontecer: o retorno de Cristo. Devia ser de uma obviedade ofus-cante que esse tipo de crença não nos ajuda muito a criar um futuro duradouro para nós mesmos — em termos sociais, econômicos, ambientais ou geopolíticos. Imagine as conseqüências da possibilidade de qualquer componente significativo do governo dos Estados Unidos realmente acreditar que o mundo está prestes a acabar e que esse fim será glorioso. O fato de quase metade da população americana aparentemente acreditar nisso, com base puramente no dogma religioso, deveria ser considerado uma emergência intelectual.

 Existem, portanto, pessoas cuja fé religiosa as coloca fora do consenso esclarecido do meu "Zeitgeist moral". Elas representam o que já chamei de o lado negro do absolutismo religioso, e freqüentemente são chamadas de extremistas. Mas minha tese, neste ponto, é que até mesmo a religião amena e moderada ajuda a proporcionar o clima de fé no qual o extremismo floresce naturalmente.

Em julho de 2005, Londres foi vítima de um ataque suicida a bomba e coordenado: três bombas no metro e uma num ônibus. Não tão ruim quanto o ataque de 2001 contra o World Trade Center, e certamente não inesperado (na verdade, Londres vinha se preparando para uma eventualidade como essa desde que Blair nos ofereceu para ser ajudantes relutantes na invasão do Iraque por Bush), mas mesmo assim as explosões de Londres horrorizaram a Grã-Bretanha. Os jornais encheram-se de análises agonizantes sobre o que levou quatro jovens a se explodirem e a levar um monte de gente inocente com eles. Os assassinos eram cidadãos britânicos, educados, que gostavam de críquete, o tipo de jovem cuja companhia teríamos apreciado.

Por que esses rapazes fizeram aquilo? Diferentemente de seus equivalentes palestinos, ou de seus equivalentes camicazes do Japão, ou de seus equivalentes tigres tâmeis no Sri Lanka, esses homens-bomba não tinham a expectativa de que sua família enlutada fosse celebrada e recebesse cuidados e pensões destinadas a mártires. Pelo contrário, seus parentes, em alguns casos, tiveram que se esconder. Um dos homens deixou deliberadamente a mulher grávida viúva e o filho pequeno órfão. A atitude desses quatro rapazes não foi nada menos que um desastre, não só para eles mesmos e suas vítimas, mas para suas famílias e toda a comunidade muçulmana na Grã-Bretanha, que agora enfrenta a reação. Só a fé religiosa é forte o bastante para motivar uma loucura tão completa em pessoas sãs e decentes. Mais uma vez, Sam Harris defendeu a questão com uma aspereza perspicaz, pegando o exemplo do líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden (que por sinal não teve nada a ver com os ataques de Londres). Por que alguém quereria destruir o World Trade Center e todo mundo dentro dele? Chamar Bin Laden de "mau" é fugir da responsabilidade de dar uma resposta adequada a pergunta tão importante.

A resposta para essa pergunta é óbvia — no mínimo por ela ter sido pacientemente articulada ad nauseam pelo próprio Bin Laden. A resposta é que homens como Bin Laden realmente acreditam no que dizem acreditar. Eles acreditam na veracidade literal do Corão. Por que dezenove homens cultos, de classe média, trocaram sua vida neste mundo pelo privilégio de matar milhares de nossos vizinhos? Porque acreditavam que iriam direto para o paraíso por fazê-lo. É raro encontrar o comportamento de seres humanos tão completa e satisfatoriamente explicado. Por que temos tanta relutância em aceitar essa explicação?134

A respeitada jornalista Muriel Gray, num texto no Herald (de Glasgow) de 24 de julho de 2005, defendeu uma tese parecida, nesse caso referindo-se aos ataques de Londres.

Todo mundo está sendo acusado, desde a óbvia dupla de vilões George W. Bush e Tony Blair até a inação das "comunidades" muçulmanas. Mas nunca foi tão claro que só há um lugar em que pôr a culpa, e ele sempre existiu. A causa de toda essa tragédia, do massacre, da violência, do terror e da ignorância, é, obviamente, a religião por si só, e, se parece ridículo ter de dizer uma realidade tão óbvia, o fato é que o governo e a imprensa estão se saindo muito bem em fingir que não é assim que as coisas são.

Nossos políticos ocidentais evitam mencionar a palavra que começa com R (religião), e em vez disso caracterizam sua batalha como uma guerra contra o "terror", como se o terror fosse uma espécie de espírito ou força, com vontades e razões. Ou caracterizam os terroristas como pessoas motivadas pela pura "maldade". Mas elas não são motivadas pelo mal. Por mais equivocadas que as consideremos, elas são motivadas, como os assassinos cristãos de médicos que fazem abortos, pelo que elas entendem ser a execução correta e fiel daquilo que sua religião lhes diz. Não são psicóticos; são idealistas religiosos que, ao seu próprio ver, são racionais. Percebem seus atos como bons, não por causa de uma idiossincrasia pessoal distorcida, e não porque tenham sido possuídos por Satã, mas porque foram ensinados, desde o berço, a ter uma fé total e indiscutível. Sam Harris cita um homem-bomba palestino frustrado que disse que o que o levou a matar israelenses foi "o amor pelo martírio [...] Não queria vingança por nada. Só queria ser mártir". Em 19 de novembro de 2001 a The New Yorker publicou uma entrevista feita por Nasra Hassan com outro homem-bomba frustrado, um palestino educado de 27 anos conhecido como "S". A atração do paraíso é de uma eloquência tão poética, do modo como ele é pregado por líderes e professores religiosos, que acho que merece a longa citação:

"Qual é a atração do martírio?", perguntei. 

"O poder do espírito eleva-nos, enquanto o poder das coisas materiais puxa-nos para baixo", disse ele. "Uma pessoa determinada ao martírio torna-se imune ao empuxo material. Nosso mentor peguntou: 'E se a operação fracassar?'. Dissemos a ele: 'De qualquer maneira, conseguiremos nos encontrar com o Profeta e seus companheiros, oxalá'. 

"Flutuávamos, nadávamos na sensação de que estávamos prestes a entrar na eternidade. Não tínhamos dúvida. Fizemos um juramento sobre o Corão, na presença de Alá — a promessa de não vacilar. Essa promessa da jihad chama-se bayt al-ridwan, com o nome do jardim do Paraíso reservado aos profetas e aos mártires. Sei .que há outras maneiras de lutar a jihad. Mas essa é a melhor de todas. Todas as operações de martírio, se feitas em nome de Alá, doem menos que uma picada de mosquito!" S mostrou-me um vídeo que documentava o planejamento final da operação. Nas imagens granuladas, vi-o com outros dois jovens engajados num diálogo ritualístico de perguntas e respostas sobre a glória do martírio [...]

Os jovens e o mentor então se ajoelharam e colocaram a mão direita sobre o Corão. O mentor disse: "Vocês estão preparados Amanhã, estarão no Paraíso".135

Se eu fosse "S", ficaria tentado a dizer ao mentor: "Bem, nesse caso, por que você não faz o que diz? Por que não executa você a missão suicida e pega o atalho para o Paraíso?". Mas o que é tão difícil para nós entender é que — repetindo, já que esse ponto é muito importante — essa gente realmente acredita no que diz acreditar. A mensagem que deve ficar é que devemos pôr a culpa na religião em si, e não no extremismo religioso — como se isso fosse uma perversão horrível da religião de verdade, decente. Voltaire captou bem há muito tempo: "Aqueles que são capazes de convencê-lo de absurdos são capazes de fazê-lo cometer atrocidades". Assim como Bertrand Russell: "Muita gente prefere morrer a pensar. Na verdade é isso o que fazem".

Se aceitarmos o princípio de que a fé religiosa deve ser respeitada simplesmente porque é fé religiosa, é difícil deixar de respeitar a fé de Osama bin Laden e dos homens-bomba. A alternativa, tão transparente que não deveria precisar de propaganda, é abandonar o princípio do respeito automático pela fé religiosa. Esse é um dos motivos por que faço tudo o que posso para advertir as pessoas contra a própria fé, não apenas contra a chamada fé "extremista". Os ensinamentos da religião "moderada", embora não sejam extremistas em si mesmos, são um convite aberto ao extremismo.

Pode-se alegar que não há nada de especial na fé religiosa. O amor patriótico ao país ou a um grupo étnico também pode tornar o mundo menos seguro devido a sua própria versão de extremismo, não pode? Sim, pode, como com os camicazes no Japão e os tigres tâmeis no Sri Lanka. Mas a fé religiosa é um silenciador especialmente potente do cálculo racional, que normalmente parece sobrepujar todos os outros. Isso acontece principalmente, suspeito eu, por causa da promessa fácil e ilusória de que a morte não é o fim, e de que o paraíso de um mártir é especialmente glorioso. Mas também acontece em parte porque ela desencoraja o questionamento, por sua própria natureza.

O cristianismo, tanto quanto o islamismo, ensina às crianças que a fé sem questionamentos é uma virtude. Não é preciso defender aquilo em que se acredita. Se alguém anuncia que isso faz parte de sua fé, o resto da sociedade, tenha a mesma fé, outra fé ou nenhuma fé, é obrigado, por um costume arraigado, a "respeitar" sem questionar; respeitar até o dia em que aquilo se manifestar na forma de um massacre horrendo como a destruição do World Trade Center ou os ataques a bomba em Londres ou Madri. Surge então um forte coro de reprovações, enquanto clérigos e "líderes de comunidades" (quem os elegeu, aliás?) fazem fila para explicar que esse extremismo é uma perversão da fé "verdadeira". Mas como pode haver uma perversão da fé se a fé, por não ter justificativa objetiva, não tem nenhum parâmetro demonstrável para ser pervertido? 

 Há dez anos, Ibn Warraq, em seu excelente livro Why I am not a Muslim [Por que não sou muçulmano], defendeu uma tese semelhante do ponto de vista de um estudioso profundamente conhecedor do islamismo. Na verdade, um bom título alternativo para o livro de Warraq poderia ter sido O mito do islã moderado, que é o título de um artigo mais recente da The Spectator (de Londres, de 30 de julho de 2005) assinado por outro estudioso, Patrick Sookhdeo, diretor do Instituto para o Estudo do Islã e do Cristianismo. "A grande maioria dos muçulmanos hoje vive sua vida sem recorrer à violência, pois o Corão é como uma seleção sortida de onde se pode escolher à vontade. Se você quiser paz, encontra versos pacíficos. Se quiser guerra, encontra versos belicosos."

Sookhdeo explica como os estudiosos islâmicos, para lidar com as muitas contradições que encontram no Corão, desenvolveram o princípio da anulação, segundo o qual textos posteriores invalidam trechos prévios. Infelizmente, os trechos pacíficos do Corão são na maioria antigos, datando do tempo de Maomé em Meca. Os versos mais beligerantes tendem a datar de mais tarde, depois de sua fuga para Medina. O resultado é que

o mantra "o islã é paz" está fora de moda há quase 1400 anos. Foi só durante cerca de treze anos que o islã foi paz e nada mais que paz [...] Para os muçulmanos radicais de hoje — assim como para os juristas medievais que desenvolveram o islã clássico — seria mais verdadeiro dizer "o islã é guerra". Um dos grupos islâmicos mais radicais da Grã-Bretanha, o Al-Ghurabaa, declarou, logo após os dois ataques de Londres: "Qualquer muçulmano que negue que o terror faz parte do islã é um kafir". Um kafir é um descrente (isto é, um não-muçulmano), um termo muito ofensivo [...] Não seria possível que os jovens que cometeram suicídio não estivessem nem à margem da sociedade muçulmana na Grã-Bretanha, nem seguissem uma interpretação excêntrica e extremista de sua fé, mas que tenham vindo bem do coração da comunidade muçulmana, e que tenham sido motivados por uma interpretação corrente do islã?

Em termos mais gerais (e isso não se aplica menos ao cristianismo que ao islã), o que é verdadeiramente pernicioso é a prática de ensinar às crianças que a fé, por si só, é uma virtude. A fé é um mal exatamente porque não exige justificativa e não tolera nenhuma argumentação. Ensinar às crianças que a fé sem questionamentos é uma virtude as predispõe — dados alguns outros ingredientes que não são difíceis de aparecer — a se transformar em armas potencialmente letais para jihads ou cruzadas futuras. Imunizado contra o medo pela promessa do paraíso dos mártires, o fiel autêntico merece um lugar de destaque na história dos armamentos, junto com o arco, o cavalo, o tanque e a bomba de fragmentação. Se as crianças fossem ensinadas a questionar e a pensar sobre suas crenças, em vez de ser ensinadas sobre a grande virtude que é a fé sem questionamentos, daria para apostar, com boas chances de ganhar, que não haveria homens-bomba. Os homens-bomba fazem o que fazem porque acreditam mesmo no que lhes ensinaram nas escolas religiosas: que o dever para com Deus supera todas as outras prioridades, e que o martírio a serviço dele será recompensado nos jardins do Paraíso. E eles aprenderam essa lição não necessariamente com extremistas fanáticos, mas com instrutores religiosos decentes, gentis, normais, que os colocaram em fileiras em suas madraçais, abaixando e levantando ritmadamente a cabecinha enquanto aprendiam cada palavra do livro sagrado, como papagaios malucos. A fé pode ser perigosíssima, e implantá-la deliberadamente na cabeça de uma criança inocente é gravemente errado. É à infância em si, e à violação da infância pela religião, que nos voltamos no próximo capítulo.



 
 
 


 
































 









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