segunda-feira, 22 de abril de 2024

Deus, um delírio ( gota 12 )

RICHARD DAWKINS

Deus, um delírio
COMPANHIA DAS LETRAS
Tradução Fernanda Ravagnani

9. Infância, abuso e a fuga da religião


Há em cada cidade uma tocha – o professor; e um extintor – o padre
Victor Hugo

Começo com um caso da Itália do século XIX. Não estou insinuando que qualquer coisa parecida com essa história terrível possa acontecer hoje. Mas as posturas mentais que ela demonstra são lamentavelmente atuais, mesmo que os detalhes factuais não sejam. Essa tragédia humana oitocentista denuncia sem dó as atitudes religiosas de hoje em dia em relação às crianças.

Em 1858, Edgardo Mortara, um menino de seis anos filho de judeus que morava em Bolonha, foi capturado pela polícia papal que agia sob as ordens da Inquisição. Edgardo foi arrancado dos braços da mãe em prantos e do pai desesperado e levado ao Catecúmeno (casa de conversão de judeus e muçulmanos) em Roma, e a partir de então educado como católico apostólico romano. Tirando as visitas ocasionais e rápidas, sempre sob forte supervisão dos padres, seus pais jamais o viram novamente. A história é contada por David I. Kertzer em seu extraordinário livro O sequestro de Edgardo Mortara.

A história de Edgardo não era incomum na Itália daquela época, e a razão para esses raptos sacerdotais era sempre a mesma. Em todos os casos, a criança havia sido secretamente batizada em algum momento anterior, normalmente por uma babá católica, e a Inquisição mais tarde ficava sabendo do batizado. Uma parte central do sistema de fé católico determinava que, uma vez que uma criança tivesse sido balizada, por mais informal e clandestinamente que fosse, ela era irrevogavelmente transformada em cristã. Naquele universo mental, permitir que uma "criança cristã" ficasse com seus pais judeus não era uma opção, e eles mantinham firmemente essa postura bizarra e cruel, com a

maior sinceridade, para a indignação do mundo todo. Essa revolta generalizada, aliás, foi desqualificada pelo jornal católico Civiltà Cattolica, que a atribuiu ao poder internacional dos judeus ricos — soa familiar, não? 

Exceto pela publicidade que atraiu, a história de Edgardo Mortara era igual a muitas outras. Ele tinha ficado sob os cuidados de Anna Morisi, uma católica analfabeta que tinha então catorze anos. Ficou doente e ela entrou em pânico, achando que ele pudesse morrer. Criada sob a crença automática de que uma criança que morresse sem ser balizada sofreria para sempre no inferno, ela pediu conselhos a um vizinho católico, que lhe mostrou como realizar um balismo. Ela voltou para casa, jogou um pouco da água de um balde na cabeça do pequeno Edgardo e disse: "Eu lê balizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". E foi isso. A partir daquele momento Edgardo era legalmente um cristão. Quando os padres da Inquisição souberam do incidente, anos depois, agiram prontamente, sem se preocupar com as tristes conseqüências de seu ato. 

De forma surpreendente, para um ritual que podia ter um significado tão monumental para famílias inteiras, a Igreja Católica permitia (e ainda permite) que qualquer pessoa batizasse qualquer um. O autor do batismo não precisa ser padre. Nem a criança, nem os pais nem ninguém mais tem de concordar com o batismo. Nada precisa ser assinado. Não são necessárias testemunhas oficiais para nada. Bastam uns pingos d'água, algumas palavras, uma criança indefesa e uma babá supersticiosa e que tenha sofrido lavagem cerebral pela catequese. Na verdade, só é necessário mesmo este último item, porque, pressupondo que a criança é jovem demais para ser testemunha, quem é que vai saber? Uma colega americana que foi educada como católica escreveu-me o seguinte: "Costumávamos balizar nossas bonecas. Não lembro de nenhum de nós balizando nossos amiguinhos protestantes, mas não duvido que já tenha acontecido e aconteça hoje. Fazíamos de nossas bonecas pequenas católicas, levando-as para a igreja, dando a elas a comunhão etc. Já tínhamos sofrido lavagem cerebral para ser boas mães católicas desde cedo". 

Se as meninas do século XIX fossem pelo menos um pouco parecidas com minha colega, é de surpreender que casos como o de Edgardo Mortara não fossem ainda mais comuns. Histórias como essa eram, mesmo assim, perturbadoramente freqüentes na Itália oitocentista, o que nos obriga a fazer a pergunta óbvia. Por que os judeus dos Estados Papais contratavam empregados católicos, considerando o risco que isso poderia significar? Por que não contratavam só funcionários judeus? A resposta, mais uma vez, não tem nada a ver com bom senso e tem tudo a ver com religião. Os judeus precisavam de funcionários cuja religião não lhes proibisse trabalhar no Shabat. Uma criada judia certamente não batizaria o filho do patrão, levando-o à orfandade espiritual. Mas ela não poderia acender o fogo ou limpar a casa no sábado. Era por isso que, das famílias judias bolonhesas que tinham dinheiro para contratar funcionários naquela época, a maioria contratava católicos. 

Neste livro, evitei deliberadamente detalhar os horrores das Cruzadas, dos conquistadores ou da Inquisição espanhola. Pessoas cruéis e más há em Iodos os séculos, com todas as motivações. Mas essa história da Inquisição italiana e sua atitude em relação às crianças é particularmente reveladora do modo de pensar religioso e dos males que se originam especificamente porque ele é religioso. Primeiro é a incrível ideia da cabeça religiosa de que uma gota de água e um breve ritual de palavras podem mudar totalmente a vida de uma criança, assumindo precedência sobre o consentimento dos pais, o consentimento da própria criança, a felicidade e o bem-estar psicológico da criança... Sobre tudo o que o bom senso e o sentimento humanitário considerariam importante. O cardeal Antonelli disse isso com todas as letras naquela época numa carta a Lionel Rothschild, o primeiro judeu a ser membro do Parlamento britânico, que tinha escrito para protestar contra a abdução de Edgardo. O cardeal respondeu que não tinha poderes para intervir, e acrescentou: "Aqui pode ser oportuno observar que, se a voz da natureza é poderosa, ainda mais poderosos são os deveres sagrados da religião". Bem, isso diz tudo, não diz?

Em segundo lugar está o fato extraordinário de que os padres, os cardeais e o papa pareciam genuinamente não compreender que coisa terrível estavam fazendo com o pobre Edgardo Mortara. Isso supera qualquer entendimento sensato, mas eles sinceramente acreditavam que estavam fazendo um bem a ele ao tirá-lo de seus pais e dar-lhe uma educação católica. Sentiam que tinham o dever de protegê-lo! Um jornal católico nos Estados Unidos defendeu a posição do papa no caso Mortara, argumentando que era impensável que um governo cristão "deixasse uma criança cristã ser criada por um judeu" e invocando o princípio da liberdade de religião, "a liberdade de uma criança de ser cristã, e não forçada compulsoriamente a ser judia [...] A proteção da criança pelo Santo Padre, diante de todo o fanatismo e intolerância ferozes, é o espetáculo moral mais grandioso de eras e eras no mundo". Terá havido alguma vez uma distorção tão flagrante de palavras como "forçada", "compulsoriamente", "ferozes", "fanatismo" e "intolerância"? E ainda assim há todas as indicações de que os apologistas católicos, do papa para baixo, sinceramente acreditavam estar fazendo a coisa certa: absolutamente certa em termos morais e para o bem-estar da criança. Esse é o enorme poder da religião (normal, "moderada") de desvirtuar o juízo e perverter a decência humana. O jornal Il Cattolico estava francamente estupefato com a cegueira generalizada em relação ao favor magnânimo que a Igreja tinha feito a Edgardo Mortara quando o resgatou de sua família judia:

Qualquer um de nós que pensar seriamente sobre a questão, que comparar a condição de um judeu — sem uma Igreja de verdade, sem um rei, e sem um país, dispersos e sempre estrangeiros onde quer que vivam na face da Terra, e, mais que tudo, famosos pela terrível mancha que marca os assassinos de Cristo [...] entenderá imediatamente a grande vantagem temporal que o papa está obtendo para o menino Mortara.

Em terceiro lugar está a presunção com que as pessoas religiosas sabem, sem evidências, que a fé em que nasceram é a única fé verdadeira, e que todas as outras são aberrações ou simplesmente mentiras. As citações acima são exemplos claros dessa atitude por parte dos cristãos. Seria totalmente injusto equiparar os dois lados nesse caso, mas aqui é um bom lugar para lembrar que os Mortara poderiam, de um golpe só, conseguir Edgardo de volta, se tivessem aceitado as súplicas dos padres e concordado em ser eles batizados. Edgardo havia sido roubado por causa de uns pingos de água e uma dúzia de palavras sem sentido. A insensatez da cabeça doutrinada pela religião é tamanha que outro par de respingos era o que bastava para reverter o processo. Para alguns de nós, a recusa dos pais indica uma teimosia injustificada. Para outros, sua postura firme os coloca

na longa lista de mártires de todas as religiões ao longo dos séculos. 

"Console-se, mestre Ridley, e seja homem: acenderemos hoje pela graça de Deus na Inglaterra uma chama que, confio, jamais será apagada." Sem dúvida existem causas pelas quais é nobre morrer. Mas como os mártires Ridley, Latimer e Cranmer puderam se deixar queimar só para não abrir mão de seu lado-pequenense protestante e adotar o lado-grandense católico — faz tanta diferença assim de que lado quebrar um ovo cozido? Tamanha é a convicção teimosa — ou admirável, se você vê assim — da mente religiosa que os Mortara não foram capazes de ceder e aproveitar a oportunidade proporcionada pelo ritual sem sentido do batismo. Será que eles não podiam ter cruzado os dedos, ou sussurrado um "não" bem baixinho enquanto fossem batiza-dos? Não, não podiam, porque tinham sido criados sob uma religião (moderada), e portanto levavam toda aquela farsa ridícula a sério. Eu, do meu lado, só penso no pobre Edgardo — nascido involuntariamente num mundo dominado pelo pensamento religioso, desgraçado em meio ao fogo cruzado, praticamente tornado órfão num ato bem-intencionado, mas, para uma criança, devastadoramente cruel. 

Em quarto lugar, para ficar no mesmo tema, está a suposição de que se possa dizer que uma criança de seis anos tem uma religião, seja ela a judaica ou a cristã ou qualquer outra. Para usar outras palavras, a ideia de que batizar uma criança inconsciente pode mudá-la de uma religião para outra em um só golpe parece absurda — mas certamente não é mais absurda que rotular uma criancinha como pertencente a qualquer religião específica. O que importava para Edgardo não era a "sua" religião (ele era pequeno demais para possuir opiniões religiosas ponderadas), mas o amor e o cuidado de seus pais e sua família, e ele foi privado dos dois por padres celibatários cuja crueldade grotesca só era mitigada pela insensibilidade crassa aos sentimentos humanos normais — insensibilidade da qual uma cabeça sequestrada pela fé religiosa é presa fácil.

Mesmo sem a abdução física, não é sempre uma forma de abuso infantil classificar que crianças possuam crenças sobre as quais elas são pequenas demais para ter refletido? Mas a prática persiste até hoje, quase totalmente inquestionada. Questioná-la é meu principal objetivo neste capítulo. 

ABUSO FÍSICO E MENTAL 

Abuso de crianças por padres hoje em dia significa abuso sexual, e sinto-me obrigado, logo de saída, a colocar a questão do abuso sexual em suas devidas proporções para tirá-la da frente. Já se falou que vivemos numa época de histeria com a pedofilia, uma psicologia de massas que faz lembrar as caças às bruxas de Salem em 1692. Em julho de 2000, o News ofthe World, aclamado, em meio à forte concorrência, como o jornal mais repugnante da Grã-Bretanha, organizou uma campanha de deduragem, chegando a quase incitar os vigilantes a tomar atitudes violentas diretas contra os pedófilos. A casa de um pediatra sofreu ataques de fanáticos que não sabiam a diferença entre um pediatra e um pedófilo.136 A histeria em massa com os pedófilos alcançou proporções de epidemia e levou pânico aos pais. Os Just Williams de hoje, os Huck Finns de hoje, as Andorinhas e Amazonas de hoje estão sendo privados da liberdade de movimento que era um dos pontos altos da infância de antigamente (quando o risco verdadeiro, não a sensação de risco, de molestação provavelmente não era menor).

Para fazer justiça com o News ofthe World, na época da campanha os espíritos estavam acirrados por causa de um assassinato odioso, por motivações sexuais, de uma menina de oito anos sequestrada em Sussex. Mesmo assim, é claramente injusto lançar contra todos os pedófilos uma vingança apropriada à minúscula minoria de assassinos. Os três internatos que frequentei empregavam professores cujo apego aos meninos ultrapassava as fronteiras da adequação. Isso era repreensível. Ainda assim, se, cinqüenta anos depois, eles fossem classificados por ativistas ou advogados como a mesma coisa que assassinos de crianças, eu me veria obrigado a sair em defesa deles, mesmo tendo sido vítima de um (uma experiência embaraçosa mas inofensiva).

A Igreja Católica Apostólica Romana ficou com uma fração pesada desse opróbrio retrospectivo. Por muitos motivos diferentes, não gosto da Igreja Católica. Mas gosto menos ainda de injustiça, e não consigo deixar de questionar se essa instituição não foi injustamente demonizada nessa questão, especialmente na Irlanda e nos Estados Unidos. Imagino que parte do ressentimento público venha da hipocrisia dos padres cuja vida profissional é devotada a suscitar a culpa pelo "pecado". E há o abuso de confiança por uma figura de autoridade, que a criança foi treinada a reverenciar desde o berço. Esses ressentimentos adicionais fazem com que devamos ter ainda mais cuidado em não fazer juízos apressados. Devemos ter consciência do incrível poder da mente de criar falsas lembranças, especialmente quando incentivada por terapeutas inescrupulosos e advogados mercenários. A psicóloga Elizabeth Loftus demonstrou grande coragem, diante de interesses velados e malignos, ao comprovar como é fácil para as pessoas criar lembranças que são totalmente falsas mas que, para a vítima, são tão reais quanto as lembranças verdadeiras.137 Trata-se de uma coisa tão contra-intuitiva que os júris são facilmente influenciados pelo depoimento sincero, mas falso, das testemunhas.

No caso específico da Irlanda, mesmo sem o abuso sexual, a brutalidade dos Irmãos Cristãos,138 responsáveis pela educação de uma parcela significativa da população masculina do país, é lendária. E pode-se dizer o mesmo das freiras freqüentemente sádicas e cruéis que dirigem muitas das escolas irlandesas para meninas. Os notórios Lares de Madalena, tema do filme Em nome de Deus, de Peter Mullan, continuaram existindo até 1996. Quarenta anos depois, é mais difícil obter indenizações para surras que para afagos sexuais, e não são poucos os advogados cobrando taxas de vítimas que, se não fosse isso, não estariam vasculhando passado tão distante. Aqueles apertões tão antigos na sacristia valem ouro — alguns tão antigos que o acusado está provavelmente morto e incapaz de mostrar seu lado da história. A Igreja Católica no mundo todo já pagou mais de 1 bilhão de dólares em indenizações.139 Dá quase para se solidarizar com ela, enquanto não lembramos de onde, afinal, veio o dinheiro.

Uma vez, depois de uma palestra em Dublin, perguntaram-me o que eu achava dos casos amplamente divulgados de abuso sexual por padres católicos na Irlanda. Respondi que, por mais horrível que o abuso sexual sem dúvida seja, o prejuízo pode ser menor que o prejuízo infligido pela atitude de educar a criança dentro da religião católica. Foi uma declaração instintiva feita no calor do momento, e fiquei surpreso com o fato de ela ter ganhado uma salva de palmas entusiasmada por parte do público irlandês (composto, reconheço, de intelectuais de Dublin e provavelmente nada representativo do país em geral). Mas lembrei-me do incidente depois, quando recebi uma carta de uma americana de cerca de quarenta anos que tinha sido criada como católica. Aos sete anos, contou, duas coisas desagradáveis aconteceram com ela. Sofreu abuso sexual por parte do padre de sua paróquia, no carro dele. E, mais ou menos na mesma época, uma amiguinha da escola, que tragicamente tinha morrido, foi para o inferno por ser protestante. Ou pelo menos foi o que ela foi levada a crer pela doutrina então oficial da igreja de seus pais. Sua visão de adulta era que desses dois exemplos de abuso infantil pela Igreja Católica, um físico e um mental, o segundo foi de longe pior. Ela escreveu:

Ser apalpada pelo padre só deixou uma sensação (na cabeça de uma menina de sete anos) de "nojo", enquanto a lembrança de minha amiga indo para o inferno é de um medo gelado, incomensurável. Nunca perdi o sono por causa do padre — mas passei muitas noites aterrorizada com o medo de que as pessoas que eu amava fossem para o Inferno. Aquilo me causou pesadelos.

Reconheço que as apalpadas que ela sofreu no carro do padre foram relativamente leves se comparadas com, por exemplo, a dor e o nojo de um sacristão sodomizado. E hoje em dia dizem que a Igreja Católica já não dá tanta ênfase ao inferno como fazia antes. Mas o exemplo mostra que é pelo menos possível que o abuso psicológico de crianças supere o físico. Dizem que Alfred Hitchcock, o grande cineasta especialista na arte de assustar as pessoas, estava uma vez dirigindo na Suíça quando de repente apontou pela janela do carro e disse: "Essa é a cena mais aterrorizante que já vi". Era um padre conversando com um menininho, a mão dele sobre o ombro do garoto. Hitchcock pôs a cabeça para fora do carro e gritou: "Fuja, menininho! Salve sua vida!".

"Pedras e paus podem me quebrar os ossos, mas palavras jamais vão me machucar." O provérbio é verdadeiro desde que você não acredite de verdade nas palavras. Mas se toda a sua educação, e tudo o que seus pais, professores e padres lhe disseram fizer com que você acredite, acredite mesmo, absoluta e completamente, que os pecadores queimam no inferno (ou em algum outro item ridículo de doutrina como o de que a mulher é propriedade do marido), é totalmente plausível que as palavras possam ter um efeito mais duradouro e prejudicial que ações. Estou convencido de que o termo "abuso infantil" não é exagero quando usado para descrever o que professores e padres estão fazendo com crianças que incentivam a acreditar em coisas como a punição de pecados mortais inconfessos num inferno eterno.

No documentário para a televisão Root ofall evil?, ao qual já me referi, entrevistei vários líderes religiosos e fui criticado por pegar no pé de extremistas americanos, e não de representantes da corrente principal como arcebispos.* Parece uma crítica justa — exceto pelo fato de que, nos Estados Unidos do século XXI, o que parece extremo para o mundo exterior na verdade é a corrente dominante. Um dos meus entrevistados que mais chocou a audiência da televisão britânica, por exemplo, foi o pastor Ted Haggard, de Colorado Springs. Mas, longe de ser um extremo na América de Bush, o "pastor Ted" é presidente da Associação Nacional de Evangélicos, que conta com 30 milhões de integrantes, e alega ser consultado por telefone pelo presidente Bush toda segunda-feira. Se eu quisesse entrevistar extremistas de verdade pelos padrões americanos modernos, eu teria procurado os "reconstrucionistas", cuja "Teologia da Dominação" prega abertamente uma teocracia cristã nos Estados Unidos. Um colega americano preocupado escreveu:

Os europeus precisam saber que há um teoshow itinerante de aberrações que defende a restituição da lei do Antigo Testamento — matar homossexuais etc. — e que o direito de ocupar cargos públicos., e até de votar, fique só com cristãos. Multidões da classe média vibram com essa retórica. Se os secularistas não ficarem atentos, dominionistas e reconstrucionistas serão em breve a corrente principal numa verdadeira teocracia americana.**

* O arcebispo de Canterbury, o cardeal-arcebispo de Westminster e o rabino-chefe da Grã-Bretanha foram convidados a ser entrevistados por mim. Todos recusaram, sem dúvida com bons motivos. O bispo de Oxford concordou, e foi encantador, e ficou longe de ser extremista, como os outros certamente também teriam ficado. 

** A seguinte história parece ser real, embora no começo eu tenha desconfiado que fosse um golpe satírico do The Onion: www.talk2action.org/story/2006/5/ 29/195855/959. É um jogo de computador chamado Left Behind: Eternal Forces [Deixado para trás: forças eternas]. P. Z. Myers resumiu-o em seu excelente blog Pharyngula. "Imagine: você é um soldado de infantaria em um grupo paramilitar cujo objetivo é reconstruir os Estados Unidos na fornia de uma teocracia cristã e estabelecer sua visão de mundo do domínio de Cristo sobre todos os aspectos da vida [...] Você faz parte de uma missão — uma missão tanto religiosa como militar — para converter ou matar católicos, judeus, muçulmanos, budistas, gays e qualquer pessoa que defenda a separação entre Igreja e Estado [...]" Veja http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/05/gta_meet_ Ibef.php; para uma resenha, veja http://select.nytimes.com/gst/abstract.html? res=F 1071FFD3C550C718CDDAA0894DE404482.

Outro de meus entrevistados para o programa foi o pastor Keenan Roberts, do mesmo estado do Colorado do pastor Ted. O tipo específico de loucura do pastor Roberts assume a forma do que ele chama de Casas do Inferno. Uma Casa do Inferno é um lugar onde as crianças são ensinadas, por seus pais ou suas escolas cristãs, a ter um medo estúpido do que pode acontecer com elas depois que morrerem. Atores fazem encenações aterradoras de "pecados" específicos, como o aborto e a homossexualidade, com a presença maligna de um diabo de capa escarlate. Essas encenações são um prelúdio para a pièce de résistance, o Inferno Ele-Mesmo, com direito a cheiro de enxofre realista e gritos agonizantes dos eternamente amaldiçoados.

Depois de assistir a um ensaio, em que o demônio era bem diabólico, no estilo batido de um vilão de melodrama vitoriano, entrevistei o pastor Roberts na presença de seu elenco. Ele me disse que a idade ideal para uma criança visitar uma Casa do Inferno é doze anos. Aquilo me deixou meio chocado, e perguntei a ele se não o preocupava o fato de que uma criança de doze anos tivesse pesadelos depois de uma de suas apresentações. Ele respondeu, presumo que com honestidade:

Prefiro que elas entendam que o Inferno é um lugar para o qual elas absolutamente não vão querer ir. Prefiro levar essa mensagem a elas aos doze anos a ficar sem levar a mensagem e deixá-las viver uma vida de pecado, sem nunca encontrar o Senhor Jesus Cristo. E, se elas acabarem tendo pesadelos, por ter passado por isso, acho que será um bem maior a ser conquistado e realizado na vida delas do que só ter pesadelos.

Imagino que, se você real e verdadeiramente acreditasse no que o pastor Roberts diz acreditar, também acharia certo intimidar crianças. 

Não podemos desqualificar o pastor Roberts como um maluco extremista. Assim como Ted Haggard, ele faz parte da corrente dominante nos Estados Unidos de hoje. Eu ficaria surpreso se eles engolissem a crença de alguns religiosos como eles de que é possível ouvir os gritos dos amaldiçoados se se colocar o ouvido dentro de vulcões,140 e de que anelídeos gigantes encontrados em vulcões submersos são a concretização de Marcos 9, 43-44: "E, se tua mão te faz tropeçar, corta-a; pois é melhor entrares maneta na vida do que, tendo as duas mãos, ires para o inferno, para o fogo inextinguível: onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga". Como quer que eles acreditem que seja o inferno, todos esses entusiastas do fogo infernal parecem ter a mesma Schadenfreude e arrogância exultante dos que sabem que estarão entre os que serão salvos, bem descrita pelo maior dos teólogos, são Tomás de Aquino, na Suma teológica: "Para que os santos possam aproveitar com mais abundância sua beatitude e a graça de Deus, eles têm a permissão de ver a punição dos condenados no inferno". Que bom homem.* O medo do fogo do inferno pode ser muito real, mesmo entre pessoas em princípio racionais. Depois do meu documentário sobre religião para a TV, entre as muitas cartas que recebi estava esta, de uma mulher obviamente inteligente e honesta:

Fui para uma escola católica aos cinco anos, e fui doutrinada por freiras armadas de varas, chicotes e bastões. Durante minha adolescência li Darwin, e o que ele disse sobre a evolução fez um enorme sentido na parte lógica de minha cabeça. Mas tenho vivido com muitos conflitos e tenho um medo, lá no fundo, do fogo do inferno, que é deflagrado com bastante freqüência. Já fiz um pouco de psicoterapia, que me permitiu trabalhar alguns de meus problemas mais antigos, mas não consigo superar esse medo profundo. Por isso, o motivo pelo qual lhe escrevo é pedir que por favor me envie o nome e o endereço da terapeuta que você entrevistou no programa desta semana, que trata desse medo específico.

Fiquei tocado com a carta dela, e (segurando o impulso momentâneo e ignóbil de lamentar que não haja um inferno para onde aquelas freiras pudessem ir) respondi que ela devia confiar em sua razão, um grande dom que ela — diferentemente de pessoas mais infelizes — obviamente possuía. Sugeri que a repulsividade extrema do inferno, do modo como ele é pintado por padres e freiras, é inflacionada para compensar sua implausibilidade. Se o inferno fosse plausível, ele só teria de ser moderadamente desagradável para ter poder de dissuasão. Como é tão improvável, precisa ser anunciado como

* Compare com a caridade cristã encantadora de Ann Coulter: "Desafio qualquer religioso como eu a dizer que não ri com a imagem de Dawkins queimando no inferno" (Coulter 2006, 268).

muitíssimo assustador, para compensar sua implausibilidade e reter algum poder de dissuasão. Também a coloquei em contato com a terapeuta mencionada por ela, Jill Mytton, uma mulher agradabilíssima e profundamente sincera que eu havia entrevistado diante das câmeras. Jill foi educada dentro de uma seita mais repugnante que o normal, chamada Irmãos Exclusivistas: tão desagradável que existe até um site na internet, www.peebs.net, totalmente dedicado a ajudar aqueles que conseguiram escapar dela.

Jill Mytton foi ensinada a ter pavor do inferno, fugiu do cristianismo quando ficou adulta e hoje orienta e ajuda outras pessoas que foram igualmente traumatizadas na infância: "Se eu pensar em minha infância, ela foi dominada pelo medo. E era o medo da desaprovação no presente, mas também o da condenação eterna. E, para uma criança, as imagens do fogo do inferno e do ranger de dentes são bastante reais. Não são nada metafóricas". Pedi então a ela que reproduzisse o que lhe haviam dito sobre o inferno, quando ela era criança, e a resposta foi tão tocante quanto a expressão de seu rosto durante a longa hesitação antes de dizer: "É estranho, não é? Depois de todo esse tempo isso ainda tem o poder de... me abalar... quando você... quando você me faz essa pergunta. O inferno é um lugar apavorante. É a completa rejeição por Deus. É o juízo final, há fogo de verdade, há tormentos de verdade, tortura de verdade, e isso continua para sempre, portanto não há descanso".

Ela prosseguiu me contando sobre o grupo de apoio que comanda para refugiados de uma infância semelhante à dela, e falou de como é difícil para muitos deles deixar o culto: "O processo de sair é extraordinariamente difícil. Ah, você está deixando para trás toda uma rede social, todo um sistema em que você praticamente cresceu, está deixando para trás um sistema de crença que manteve por anos. Muitas vezes você abandona familiares e amigos... Você deixa de existir para eles". Pude contribuir contando minha experiência com as cartas de americanos dizendo que leram meus livros e abriram mão de sua religião em conseqüência disso. É desconcertante o número dos que continuam dizendo que não se atrevem a contar à família, ou que contaram à família e tiveram resultados terríveis. O texto a seguir é típico. O autor é um jovem estudante de medicina americano:

Senti a necessidade de escrever-lhe uma mensagem porque compartilho de sua visão sobre a religião, uma visão que, tenho certeza de que você sabe disso, provoca isolamento nos Estados Unidos. Cresci numa família cristã e, embora nunca tenha engolido muito bem a idéia da religião, só recentemente tive coragem de contar isso para alguém. Esse alguém era minha namorada, que ficou [...] horrorizada. Sei que uma declaração de ateísmo pode causar choque, mas agora é como se ela me visse como uma pessoa comple-tamente diferente. Ela diz que não pode confiar em mim porque meus princípios morais não vêm de Deus. Não sei como vamos superar isso, e não quero dividir minha crença com outras pessoas próximas a mim porque temo a mesma reação de desgosto [...] Não tenho a expectativa de que me responda. Só escrevo porque imaginei que você se solidarizaria comigo e teria a mesma frustração. Imagine perder alguém que você amava, e que o amava, por causa da religião. Tirando a ideia dela de que agora sou um gentio herege, éramos perfeitos um para o outro. Isso me faz lembrar de sua observação de que as pessoas fazem coisas insanas em nome da fé. Obrigado pela atenção.

Respondi a esse rapaz infeliz ressaltando que, se a namorada havia descoberto alguma coisa sobre ele, ele também tinha descoberto algo sobre ela. Ela era mesmo boa o suficiente para ele? Eu duvidava.

Já mencionei a atriz e comediante americana Julia Sweeney e sua luta determinada e engraçada para encontrar algum traço redentor na religião e de resgatar o Deus de sua infância de suas dúvidas de adulta. A busca acabou tendo um final feliz, e hoje ela é um exemplo admirável para jovens ateus de qualquer lugar. O dénouement é talvez a cena mais emocionante do show dela, Letting go of God. Ela havia tentado de tudo. E então

quando eu ia do meu escritório, no quintal, para minha casa, percebi que havia uma vozinha sussurrando na minha cabeça. Não tenho certeza de há quanto tempo ela estava lá, mas de repente ela ficou um decibelzinho mais alta. Ela sussurrou: "Deus não existe".

E tentei ignorá-la. Mas ela ficou um pouquinho mais alta. "Deus não existe. Deus não existe. Ai, meu Deus, Deus não existe". [...}

E estremeci. Senti que estava escorregando da tábua de salvação.

E então pensei: "Mas não consigo. Não sei se eu consigo não acreditar em Deus. Preciso de Deus. Quer dizer, temos uma história juntos".

"Mas não sei não acreditar em Deus. Não sei fazer isso. Como levantar da cama, como levar o dia? Me senti desequilibrada [...]

Pensei: "O.k., calma. Vamos experimentar por um minuto os óculos de não-acreditarem-Deus. Só coloque os óculos e dê uma rápida espiada com eles, e depois imediatamente os jogue fora". E coloquei os óculos e dei uma olhada em volta.

Tenho vergonha de contar que no começo fiquei tonta. Cheguei a pensar: "Tudo bem, como a Terra fica pendurada no céu? Quer dizer que estamos voando pelo espaço? Isso é tão vulnerável!" E tive vontade de correr e pegar a Terra que caía do espaço nas minhas mãos.

E então lembrei: "Ah é, a gravidade e a velocidade angular vão nos manter revolvendo em torno do Sol provavelmente por muito, muito tempo".

 Quando assisti a Lettinggo of God num teatro de Los Angeles, fiquei profundamente emocionado com essa cena. Especialmente quando Julia contou depois sobre a reação dos pais dela a uma reportagem sobre sua cura:

A primeira ligação da minha mãe era mais um grito. 

"Atéia? ATÉIA?!?!" 

Meu pai ligou e disse: "Você traiu sua família, sua escola, sua cidade". Foi como se eu tivesse vendido segredos para os russos. Os dois disseram que não iam mais falar comigo. Meu pai disse: "Não quero que você vá nem ao meu enterro". Depois que eu desliguei, pensei: "Quero ver você tentar me impedir". 

Parte do dom de Julia Sweeney é fazer você rir e chorar ao mesmo tempo. 

Acho que meus pais tinham ficado levemente decepcionados quando eu disse que não acreditava mais em Deus, mas ser ateia era uma coisa completamente diferente.

O livro Losing faith in faith: >From preacher to atheist [Perdendo a fé na fé: de pregador a ateu], de Dan Barker, é a história da conversão gradativa dele de ministro fundamentalista e pastor viajante até o ateu contundente e convicto que é hoje. O significativo é que Barker continuou maquinalmente a pregar o cristianismo por um tempo mesmo depois de ter se tornado ateu, porque era a única carreira que ele conhecia, e ele se sentia enredado numa teia de obrigações sociais. Hoje ele conhece muitos outros religiosos americanos que estão na mesma posição que ele estava, mas que o confidenciaram só a ele, depois de ler seu livro. Não se atrevem a admitir o ateísmo nem mesmo à própria família, tão terrível é a reação que acreditam que isso provocará. A história de Barker teve uma conclusão mais feliz. Para começar, seus pais ficaram profunda e agonizantemente chocados. Mas ouviram seu raciocínio calmo e acabaram eles mesmos se tornando ateus.

Dois professores de uma universidade nos Estados Unidos escreveram-me, independentemente um do outro, para falar de seus pais. Um disse que a mãe sofre de uma tristeza permanente, porque teme pela alma imortal dele. O outro disse que o pai preferiria que ele jamais tivesse nascido, tão convencido está de que o filho vai passar a eternidade no inferno. Trata-se de professores universitários de instrução elevadíssima, confiantes em sua sapiência e em sua maturidade, que, presume-se, deixaram os pais para trás em todas as questões do intelecto, não só na religião. Imagine como deve ser difícil para pessoas menos robustas em termos intelectuais, menos equipadas pela educação e pela habilidade retórica que eles, ou que Julia Sweeney, para argumentar sua posição diante de familiares obstinados. Como também provavelmente deve ter sido para muitos dos pacientes de Jill Mytton.

Num ponto anterior de nossa conversa televisionada, Jill tinha descrito esse tipo de criação religiosa como uma forma de abuso mental, e retomei esse ponto dizendo: "Você usa as palavras abuso religioso. Se você fosse comparar o abuso que é criar uma criança acreditando de verdade no inferno... como você acha que isso se compara, em termos de trauma, ao abuso sexual?". Ela respondeu: "Essa é uma pergunta muito difícil... Acho que na verdade há muitas semelhanças, porque se trata de um abuso de confiança; trata-se de negar à criança o direito de sentir-se livre e aberta para relacionar-se normalmente com o mundo... é uma forma de denegrição; é uma forma de negação do eu verdadeiro em ambos os casos".

EM DEFESA DAS CRIANÇAS 

Meu colega, o psicólogo Nicholas Humphrey, usou o provérbio dos "paus e pedras" para abrir sua Palestra da Anistia em Oxford em 1997.141 Humphrey começou sua palestra argumentando que o provérbio nem sempre é verdadeiro, e citou o caso de haitianos que acreditam em vodus e que morrem, aparentemente devido a um efeito psicossomático do pavor, dias depois de ter um "feitiço" maligno lançado sobre eles. Ele então perguntou se a Anistia Internacional, a beneficiária da série de palestras para a qual ele estava contribuindo, deveria ou não fazer campanhas contra discursos ou publicações injuriosas ou prejudiciais. Sua resposta foi um rotundo não a esse tipo de censura em geral: "A liberdade de expressão é uma liberdade preciosa demais para mexermos com ela". Mas ele prosseguiu, entrando em choque com sua personalidade de liberal, na defesa de uma exceção importante: argumentar a favor da censura no caso especial 

da educação moral e religiosa de crianças, e principalmente da educação que a criança recebe em casa, onde os pais podem — e até há a expectativa de que façam isso — determinar para seus filhos o que conta como verdade e mentira, certo e errado. As crianças, argumentarei, têm o direito humano de não ter a cabeça aleijada pela exposição às péssimas idéias de outras pessoas — não importa quem sejam essas outras pessoas. Os pais, da mesma maneira, não possuem permissão divina para aculturar os filhos do modo que bem quiserem: não têm o direito de limitar os horizontes do conhecimento dos filhos, de criá-los numa atmosfera de dogma e superstição, ou de insistir que eles sigam os caminhos estreitos e predefïnidos de sua própria fé.

Em resumo, as crianças têm o direito de não ter a cabeça confundida por absurdos, e nós, como sociedade, temos o dever de protegê-las disso. Portanto não devemos permitir que os pais ensinem os filhos a acreditar, por exemplo, na veracidade literal da Bíblia ou que os planetas governam sua vida, assim como não permitimos que eles arranquem os dentes dos filhos ou os tranquem num calabouço.

É claro que uma declaração tão contundente como essa precisa de muitas especificações — e teve. Não é questão de opinião decidir o que é absurdo? A ciência ortodoxa já não sofreu bastante para que saibamos que é preciso ter cuidado? Os cientistas podem achar que é absurdo ensinar astrologia e a veracidade literal da Bíblia, mas existem outras pessoas que acham o contrário, e elas não têm o direito de ensinar isso a seus filhos? Insistir que a ciência é que deve ser ensinada às crianças não é uma posição tão arrogante quanto? 

Agradeço aos meus pais por adotar a opinião de que o mais importante não é ensinar às crianças o que pensar, mas como pensar. Se depois de ter sido expostas de forma justa e adequada a todas as evidências científicas elas crescerem e decidirem que a Bíblia diz a verdade literal ou que o movimento dos planetas governa suas vidas, é direito delas. O essencial é que é direito delas decidir o que pensarão, e não dos pais de impô-lo por force majeure. E isso, evidentemente, tem uma importância especial quando lembramos que as crianças serão os pais da geração seguinte, em posição de passar para a frente a doutrinação que as possa ter moldado. 

Humphrey sugere que, enquanto as crianças forem pequenas, vulneráveis e carentes de proteção, a verdadeira proteção moral é demonstrada pela tentativa honesta de adivinhar o que elas escolheriam por si próprias se tivessem idade suficiente. Ele cita o exemplo tocante de uma menina inça cujos restos mortais de quinhentos anos foram encontrados congelados nas montanhas do Peru em 1995. O antropólogo que a descobriu escreveu que ela foi vítima de um ritual de sacrifício. Segundo o relato de Humphrey, um documentário sobre essa jovem "menina de gelo" foi exibido pela televisão americana. Os telespectadores foram convidados a

 se maravilhar com o comprometimento espiritual dos sacerdotes incas e a compartilhar com a menina, em sua última viagem, seu orgulho e sua empolgação por ter sido escolhida para a extraordinária honra de ser sacrificada. A mensagem do programa de televisão era, na prática, a de que o sacrifício humano era, à sua maneira, uma intervenção cultural gloriosa — mais uma jóia na coroa do multiculturalismo, se você preferir

Humphrey ficou escandalizado, e eu também.

Como alguém ousa sugerir tal coisa? Como se atrevem a nos convidar — em nossas salas de estar, assistindo à tevê — a nos sentirmos enlevados pela contemplação de um ato de assassinato ritualístico: o assassinato de uma criança indefesa por um grupo de velhos estúpidos, inchados, supersticiosos e ignorantes? Como se atrevem a nos convidar a ver algo de bom na contemplação de uma ação imoral contra outra pessoa?

 Mais uma vez, o leitor liberal e decente pode sentir um pouco de desconforto. Imoral pelos nossos padrões, certamente, e estúpida, mas e quanto aos padrões incas? Para os incas, o sacrifício não era um ato moral e nada estúpido, autorizado por tudo o que eles consideravam sagrado? A menina era, sem dúvida, fiel à religião em que fora criada. Quem somos nós para usar uma palavra como "assassinato", julgando os sacerdotes incas por nossos próprios padrões, em vez de pelos deles? Talvez a menina estivesse arrebatadoramente feliz com seu destino; talvez ela realmente acreditasse que estava indo direto para o paraíso eterno, aquecida pela companhia radiante do Deus Sol. Ou talvez — como é bem mais provável — ela tenha gritado de pavor. A tese de Humphrey — e minha — é que, independentemente de ela ter sido ou não uma vítima consentida, há fortes motivos para supor que ela não teria dado seu consentimento se tivesse pleno domínio dos fatos. Suponha, por exemplo, que ela soubesse que o Sol na verdade é uma bola de hidrogênio, mais quente que 1 milhão de graus Kelvin, convertendo-se em hélio pela fusão nuclear, e que ele se formou originalmente de um disco de gás, a partir do qual o resto do sistema solar, incluindo a Terra, também se condensou... Presume-se, então, que ela não teria idolatrado o Sol como se fosse um deus, e isso teria alterado sua perspectiva sobre ser sacrificada para agradar-lhe.

Não se pode culpar os sacerdotes incas por sua ignorância, e talvez seja rude chamá-los de estúpidos e inflados. Mas pode-se culpá-los por ter empurrado suas crenças para uma criança que era pequena demais para decidir se deveria ou não idolatrar o Sol. A tese adicional de Humphrey é que os autores do documentário atual, e seu público, podem ser acusados de ver beleza na morte da menina — "algo que enriquece nossa cultura coletiva". A mesma tendência a glorificar o exotismo de costumes religiosos étnicos, e de justificar crueldades em nome dele, aparece a todo momento. Ela é a fonte de conflitos internos na cabeça de pessoas liberais e de bem que, por um lado, não suportam o sofrimento e a crueldade, mas por outro foram treinadas por pós-moder-nistas e relativistas a respeitar as outras culturas tanto quanto a sua. A mutilação genital (às vezes chamada de circuncisão) feminina é sem dúvida terrivelmente dolorosa, e sabota o prazer sexual das mulheres (na verdade, esse provavelmente é seu propósito subjacente), e uma metade da cabeça liberal quer abolir a prática. A outra metade, porém, "respeita" as culturas étnicas e acha que não devemos interferir se "eles" quiserem mutilar as meninas "deles".* A questão, é claro, é que as meninas "deles" na verdade são as meninas das meninas, e a vontade delas não deve ser ignorada. Mais difícil é responder: e se uma garota disser que quer ser circuncidada? Mas ela, sendo

* Ela ainda é uma prática regular na Grã-Bretanha atual. Uma autoridade do sistema escolar contou-me de meninas britânicas que estavam sendo enviadas para um "tio", em Bradford, para ser circuncidadas, em 2006. As autoridades fazem vista grossa, com medo de ser consideradas racistas "na comunidade".

plenamente adulta, em retrospectiva não gostaria que aquilo nunca tivesse acontecido? Humphrey afirma que nenhuma mulher adulta que tenha deixado de ser circuncidada quando criança se apresenta como voluntária para a operação quando mais velha.

Depois de uma discussão sobre os amish, e seu direito de educar "seus próprios filhos" a "seu próprio" modo, Humphrey é duro ao falar de nosso entusiasmo, como sociedade, pela

manutenção da diversidade cultural. Tudo bem, você pode dizer, é difícil para uma criança amish, ou hassídica, ou cigana, ser moldada por seus pais como são — mas pelo menos o resultado é que essas tradições culturais fascinantes subsistem. Nossa civilização não ficaria mais pobre se elas fossem eliminadas? É uma pena, talvez, que indivíduos tenham de ser sacrificados para manter essa diversidade. Mas é o preço que pagamos como sociedade. Só que, sinto-me obrigado a lembrar, não somos nós que pagamos, são eles.

 A questão ganhou atenção pública em 1972, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos deu um veredicto num caso exemplar, Wisconsin contra Yoder, que dizia respeito ao direito dos pais de tirar seus filhos da escola por motivos religiosos. Os amish vivem em comunidades fechadas em várias regiões dos Estados Unidos. A maioria fala um dialeto do alemão chamado holandês da Pensilvânia e rejeita, em vários graus, a eletricidade, motores de combustão interna, zíperes e outras manifestações da vida moderna. Há, é verdade, algo de atraente e exótico numa ilha de vida do século XVII como espetáculo para o olhar de hoje. Não vale a pena preservá-la, em nome da riqueza da diversidade humana? E a única maneira de preservá-la é permitir que os amish eduquem seus filhos a seu próprio modo, e protejam-nos da influência maligna da modernidade. Mas, temos que nos perguntar, as próprias crianças não deveriam ter direito a uma opinião?

A Suprema Corte foi solicitada a decidir, em 1972, quando alguns pais amish em Wisconsin tiraram os filhos de escolas de ensino médio. A simples ideia da educação além de certa idade contrariava os valores religiosos dos amish, especialmente a educação científica. O estado do Wisconsin levou os pais ao

tribunal, alegando que as crianças estavam sendo privadas de seu direito à educação. Depois de passar por várias instâncias da Justiça, o caso acabou chegando à Suprema Corte dos Estados Unidos, que deu um veredicto dividido (6 a 1) a favor dos pais.142 A opinião da maioria, descrita pelo juiz-chefe Warren Burger, incluía o seguinte trecho: "Como mostra o histórico, a freqüência compulsória à escola até a idade de dezesseis anos para crianças amish carrega consigo uma ameaça muito real de minar a comunidade e a prática religiosa dos amish da forma como elas existem hoje; elas têm ou de abandonar a crença e ser assimiladas pela sociedade em geral ou são forçadas a migrar para alguma outra região mais tolerante". 

A opinião minoritária do juiz William O. Douglas foi que as próprias crianças deveriam ter sido consultadas. Elas realmente queriam abreviar sua educação? Queriam mesmo ficar na religião amish? Nicholas Humphrey teria ido mais além. Mesmo que as crianças tivessem sido consultadas e tivessem manifestado a preferência pela religião amish, dá para supor que elas fariam a mesma coisa se tivessem sido educadas e informadas sobre as alternativas disponíveis? Para que isso fosse plausível, não deveria haver exemplos de jovens do mundo exterior protestando e se apresentando como voluntários para se unirem aos amish? O juiz Douglas foi mais adiante, mas numa direção ligeiramente diferente. Ele não via nenhum motivo especial para dar às opiniões religiosas dos pais um status especial para decidir até onde se podia permitir a eles privar seus filhos da educação. Se a religião constitui a base para uma exceção, crenças laicas também não se qualificariam?

A maioria dos juizes da Suprema Corte traçou um paralelo com alguns valores positivos das ordens monásticas, cuja presença em nossa sociedade é passível de ser considerada enriquecedora. Mas, como afirma Humphrey, há uma diferença crucial. Os monges optam pela vida monástica, por livre e espontânea vontade. As crianças amish nunca optam por ser amish; elas nasceram dentro da comunidade e não tiveram escolha.

Há uma condescendência devastadora em sacrificar pessoas, especialmente crianças, no altar da "diversidade" e na virtude da preservação de uma variedade de tradições religiosas. O restante de nós vive feliz com nossos carros e computadores, vacinas e antibióticos. Mas vocês, pessoinhas exóticas com seus chapéus e calçolas, suas carroças, seu dialeto arcaico e suas casinhas de banho, vocês enriquecem nossa vida. É claro que se deve permitir que vocês aprisionem suas crianças em seu túnel do tempo seiscentista, senão perderíamos uma coisa irrecuperável: uma parte da maravilhosa diversidade da cultura humana. Uma pequena parte de mim consegue ver alguma coisa nisso. Mas a maior parte fica é com enjôo. 

UM ESCÂNDALO EDUCACIONAL 

O primeiro-ministro de meu país, Tony Blair, invocou a "diversidade" quando desafiado na Câmara dos Comuns pela deputada Jenny Tonge a justificar o subsídio governamental a uma escola no nordeste da Inglaterra que (de forma quase isolada na Grã-Bretanha) ensina o criacionismo bíblico literal. O sr. Blair respondeu que seria triste se preocupações relativas àquela questão interferissem na obtenção de "um sistema escolar tão diverso como o que podemos ter".143 A escola em questão, o Emmanuel College, em Gateshead, é uma das "academias municipais" criadas por uma iniciativa da qual o governo Blair se orgulha. Benfeitores ricos são incentivados a contribuir com uma soma relativamente pequena (2 milhões de libras, no caso do Emmanuel), que é completada por uma soma bem maior de dinheiro público (20 milhões de libras para a escola, mais os custos de administração e de salários, de forma perpétua), e que também dá ao benfeitor o direito de controlar o ethos da escola, a nomeação da maioria dos diretores, a política para exclusão ou inclusão de alunos e muito mais.

O benfeitor do Emmanuel College, com 10% dos custos, é sir Peter Vardy, um rico negociante de carros que tem o honorável desejo de dar às crianças de hoje a educação que ele gostaria de ter recebido, e o desejo menos honorável de incutir nelas suas convicções religiosas pessoais.* Vardy infelizmente se misturou com um grupinho de professores fundamentalistas de inspiração americana, liderado por Nigel McQuoid, que foi diretor do Emmanuel College e agora dirige um consórcio inteiro de escolas de Vardy. Dá para julgar o nível do entendimento científico de

* H. L. Mencken foi profético quando escreveu: "No fundo do coração de todo evangelista há a carcaça de um vendedor de carros".

McQuoid por sua crença de que o mundo tem menos de 10 mil anos, e também pela seguinte declaração: "Mas pensar que evoluímos de uma explosão, que éramos macacos, isso parece inacreditável quando se olha para a complexidade do corpo humano [...] Se se disser às crianças que a vida delas não tem um propósito — que elas são apenas uma mutação química —, isso não eleva a auto-estima".144

Nenhum cientista jamais sugeriu que uma criança seja uma "mutação química". O uso do termo nesse contexto é um absurdo iletrado, bem ao estilo das declarações do "bispo" Wayne Mal-colm, líder da Igreja Municipal da Vida Cristã, em Hackney, no leste de Londres, que, de acordo com o The Guardian de 18 de abril de 2006, "questiona as evidências científicas da evolução". Dá para medir bem o entendimento que Malcolm tem das evidências que questiona pela sua afirmação de que "há claramente uma ausência de registros fósseis de níveis intermediários de desenvolvimento. Se um sapo virou um macaco, não deveria haver um monte de sacacos?".

A ciência também não é o forte do sr. McQuoid, portanto devemos, para ser justos, nos voltar para seu diretor científico, Stephen Layfield. No dia 21 de setembro de 2001, o sr. Layfield deu uma palestra no Emmanuel College sobre "O ensino da ciência: Uma perspectiva bíblica". O texto da palestra foi publicado por um site cristão na internet (www.christian.org.uk). Mas você não o encontrará lá agora. O Instituto Cristão removeu a palestra no mesmo dia em que chamei a atenção para ela num artigo no Daily Telegraph de 18 de março de 2002, em que a submeti a uma dissecação crítica.145 É difícil, porém, eliminar uma coisa de modo permanente da rede mundial de computadores. As ferramentas de busca obtêm sua velocidade em parte porque mantêm caches de informação, e eles persistem inevitalmente por algum tempo, mesmo depois de os originais terem sido apagados. Um jornalista britânico atento, Andrew Brown, o primeiro correspondente do The Independent para questões religiosas, prontamente localizou a palestra de Layfield, baixou-a do cache do Google e a publicou, a salvo, em seu próprio site na internet, http://www.darwinwars.com/lunatic/liars/layfield.html. Você perceberá que as palavras usadas por Brown para a URL já são por si sós um material divertido de leitura. Elas perdem seu poder de diversão, no entanto, quando vemos o conteúdo em si da palestra.

Aliás, quando um leitor curioso escreveu para o Emmanuel College para peguntar por que a palestra havia sido retirada do site, recebeu a seguinte resposta hipócrita da escola, novamente registrada por Andrew Brown:

O Emmanuel College ficou no centro de um debate a respeito do ensino da criação nas escolas. Na prática, o Emmanuel College recebeu um número enorme de requisições da imprensa. Isso envolveu uma quantidade considerável de tempo por parte do diretor e da diretoria da escola. Todas essas pessoas têm outras coisas para fazer. Para ajudar, removemos temporariamente uma palestra de Stephen Layfïeld de nosso site na internet.

Tudo bem que as autoridades da escola estivessem ocupadas demais para explicar aos jornalistas sua posição sobre o ensino do criacionismo. Mas por que, então, remover de seu site o texto de uma palestra que faz exatamente isso, e que poderiam ter indicado aos jornalistas, economizando assim um bom tempo? Não, eles retiraram a palestra de seu diretor científico porque admitiam que tinham algo a esconder. O parágrafo a seguir pertence ao início da palestra:

Declaremos então, já de início, que rejeitamos a idéia popularizada, talvez inadvertidamente, por Francis Bacon no século XVII, de que há "Dois Livros" (isto é, o Livro da natureza e as Escrituras), que podem ser explorados de forma independente em busca da verdade. Em vez disso, baseamo-nos firmemente na alegação nua e crua de que Deus falou com autoridade e de forma infalível nas páginas das sagradas Escrituras. Por mais frágil, antiquada ou antiga que essa afirmação possa parecer, especialmente para uma cultura de descrentes, embriagada pela tevê, podemos ter a certeza, de que é a fundação mais robusta possível que se pode estabelecer para servir de base a uma construção.

Continue se beliscando. Você não está sonhando. Não se trata de um orador qualquer numa tenda no Alabama, mas o diretor científico de uma escola na qual o governo britânico está despejando dinheiro, e que é orgulho de Tony Blair. Cristão devoto, o senhor Blair realizou a cerimônia de abertura de um dos acréscimos posteriores à rede de escolas de Vardy.146 A diversidade pode ser uma virtude, mas não é mais diversidade, é maluquice. 

Layfield prossegue listando as comparações entre a ciência e as Escrituras, concluindo, em todos os casos onde parece haver um conflito, que as Escrituras são preferíveis. Quando ressalta que as geociências não fazem parte do currículo nacional, Layfield diz: "Seria especialmente prudente para todos que ministram esse aspecto do curso que se familiarizem com os trabalhos sobre a geologia do Dilúvio de Whitcomb e Morris". Sim, "geologia do Dilúvio" significa o que você acha que significa. Estamos falando da Arca de Noé. Arca de Noé! — quando as crianças podiam estar aprendendo o incrível fato de que a África e a América do Sul já foram grudadas, e que se separaram com a mesma velocidade com que as unhas crescem. Leia mais o que Layfield (o diretor de ciências) fala sobre o dilúvio de Noé, uma explicação rápida e recente para um fenômeno que, de acordo com evidências geológicas reais, levou centenas de milhões de anos para produzir-se:

Devemos reconhecer, dentro de nosso grande paradigma geofísico, a historicidade de um dilúvio mundial, como o descrito em Gen 6, 10. Se a narrativa bíblica é certa e as genealogias relacionadas (por exemplo, Gen 5; 1 Cro 1; Mat 1 e Lu 3) são completas, temos de assumir que essa catástrofe global ocorreu num passado relativamente recente. Seus efeitos estão aparentes de maneira abundante por toda parte. As evidências principais estão nas rochas sedimentares repletas de fósseis, nas amplas reservas de combustíveis de hidrocarbonetos (carvão, petróleo e gás) e nos relatos "lendários" sobre um dilúvio tão grande como aquele, comuns a vários grupos populacionais em todo o mundo. A factibilidade de manter uma arca cheia de criaturas representativas por um ano, até que as águas recuassem o bastante, foi bem documentada por John Woodmorrappe, entre outros.

De certa maneira, isso é ainda pior que as afirmações de ignorantes como Nigel McQuoid ou do bispo Wayne Malcolm citadas acima, porque Layfield estudou ciência. A seguir, mais um trecho inacreditável:

Como afirmamos no princípio, os cristãos, com ótimos motivos, consideram as Escrituras e o Antigo e o Novo Testamento um guia confiável para o que devemos acreditar. Não são meramente documentos religiosos. Eles nos proporcionam um relato verdadeiro sobre a história da Terra, que, se ignoramos, é por nossa própria conta e risco.

 A conclusão de que as Escrituras proporcionam um relato literal sobre a história geológica daria arrepios a qualquer teólogo respeitado. Meu amigo Richard Harries, bispo de Oxford, e eu escrevemos uma carta conjunta para Tony Blair, e fizemos com que oito bispos e nove cientistas importantes a assinassem.147 Entre os nove cientistas estavam o então presidente da Royal Society (que havia sido conselheiro-científico-chefe de Tony Blair), os secretários de biologia e de física da Royal Society, o astrônomo real (hoje presidente da Royal Society), o diretor do Museu de História Natural e sir David Attenborough, talvez o homem mais respeitado da Inglaterra. Entre os bispos havia um católico e sete anglicanos — líderes religiosos importantes de toda a Inglaterra. Recebemos uma resposta perfunctória e inadequada do gabinete do primeiro-ministro, mencionando os bons resultados da escola nas provas e a boa avaliação que recebeu da agência oficial de inspeção de escolas, a OFSTED. Parece que não ocorreu ao sr. Blair que, se os inspetores da OFSTED fazem uma avaliação entusiasmada de uma escola cujo diretor científico ensina que o universo inteiro começou depois da domesticação do cachorro, deve haver alguma coisinha errada com os padrões de inspeção. 

Talvez o trecho mais perturbador da palestra de Stephen Layfield seja sua conclusão, "O que se pode fazer?", em que ele analisa as táticas a serem empregadas pelos professores que desejem colocar o cristianismo fundamentalista dentro da sala de aula. Ele pede, por exemplo, aos professores de ciências que

prestem atenção em todas as ocasiões em que um paradigma evolucionário/Terra antiga (milhões ou bilhões de anos) seja mencionado ou sugerido por um livro-texto, uma questão de prova ou um visitante, e educadamente ressaltem a falibilidade da afirmação. Sempre que possível, devemos dar a explicação alternativa bíblica (sempre melhor) sobre os mesmos dados. Observaremos alguns exemplos da física, da química e da biologia no momento oportuno.

 O resto da palestra de Layfield não passa de um manual de propaganda, um recurso para professores religiosos de biologia, química e física que quiserem, mantendo-se dentro das diretrizes do currículo nacional, subverter a educação baseada na ciência e trocá-la pelas escrituras bíblicas.

No dia 15 de abril de 2006, James Naughtie, um dos âncoras mais experientes da BBC, entrevistou sir Peter Vardy no rádio. O principal tema da entrevista foi a investigação policial das denúncias, negadas por Vardy, de que o governo Blair havia oferecido propinas — títulos de cavalheiro e de nobreza — a ricos na tentativa de fazê-los participar do esquema das academias municipais. Naughtie também perguntou a Vardy sobre a questão do criacionismo, e Vardy negou categoricamente que o Emmanuel promova o criacionismo Terra-nova entre seus alunos. Um dos estudantes do Emmanuel College, Peter French, declarou, tão categoricamente quanto:148 "Ensinaram para nós que a Terra tem 6 mil anos".* Quem está dizendo a verdade? Bem, não sabemos, mas a palestra de Stephen Layfield expõe de forma bastante franca sua política para o ensino da ciência. Será que Vardy nunca leu o manifesto tão explícito de Layfield? Será que ele não sabe qual é a do diretor de ciências? Peter Vardy ficou rico vendendo carros usados. Você compraria um carro dele? E você lhe venderia, como fez Tony Blair, uma escola por 10% de seu valor — incluindo no pacote o pagamento de todos os seus custos de administração? Sejamos caridosos com Blair e assumamos que ele, pelo menos, não tenha lido a palestra de Layfield. Imagino que seja querer demais esperar que ele vá prestar atenção nela agora. 

O diretor McQuoid defendeu o que claramente via como o espírito aberto de sua escola, defesa que se destaca pela presunção:

o melhor exemplo que posso dar sobre o que somos é uma palestra de filosofia que dei para o colegial. Shaquille estava sentado ali e disse: "O Corão está certo e é a verdade". E Clare, logo ali, disse: "Não, a Bíblia é a verdade". Então conversamos sobre as semelhanças entre o que os dois livros dizem e os lugares em que eles discordam. E decidimos que os dois não podiam ser verdade ao mesmo tempo. E eu acabei dizendo: "Desculpe, Shaquille, você está errado, é a Bíblia que diz a verdade". E ele disse: "Desculpe, senhor McQuoid, o senhor está errado, é o Corão". E eles foram almoçar e continuaram com a discussão. É isso o que queremos. Queremos que as crianças saibam por que acreditam no que acreditam e defendam isso.149 

Que lindo quadro! Shaquille e Clare foram almoçar juntos, argumentando vigorosamente na defesa de suas crenças incompatíveis. Mas, 

* Para dar uma idéia da escala desse erro, é o equivalente a acreditar que a distância entre Nova York e San Francisco é de seis metros e quarenta centímetros.

é mesmo tão lindo assim? Não é, na verdade, um quadro deplorável o pintado pelo senhor McQuoid? Em que, afinal, Shaquille e Clare baseavam seus argumentos? Que evidências convincentes cada um deles podia apresentar em seu debate vigoroso e construtivo? Clare e Shaquille simplesmente declararam cada um que seu livro sagrado era superior, e ficou nisso. Aparentemente foi só o que disseram, e, pensando bem, é só isso que se pode dizer quando se aprende que a verdade vem das Escrituras, e não das evidências. Clare e Shaquille, e os colegas deles, não estavam sendo educados. Estavam sendo traídos pela escola, e o diretor estava cometendo um abuso, não sobre o corpo, mas sobre a mente deles. 

CONSCIENTIZAÇÃO DE NOVO 

E agora veja só mais um lindo quadro. Um ano, na época do Natal, meu jornal diário, The Independent, estava procurando uma imagem apropriada para período natalino e encontrou uma de um ecumenismo reconfortante, uma peça escolar sobre a natividade. Os Três Reis Magos eram representados, como dizia, radiante, a legenda, por Shadbreet (sikh), Musharaff (muçulmano) e Adele (cristã), todos de quatro anos de idade.

Lindo? Reconfortante? Não, não é, nenhum dos dois; é grotesco. Como qualquer pessoa decente pode achar certo rotular crianças de quatro anos com as opiniões cósmicas e teológicas de seus pais? Para entender, imagine uma foto idêntica, com a legenda modificada para o seguinte: "Shadbreet (keynesiano), Musharaff (monetarista) e Adele (marxista), todos de quatro anos de idade". Não seria essa legenda uma candidata a cartas iradas de protesto? Certamente. Mas, por causa do status estranhamente privilegiado da religião, não se ouviu nem um pio, como não se ouve em nenhuma ocasião semelhante. Só imagine a revolta se a legenda dissesse: "Shadbreet (ateu), Musharaff (agnóstico) e Adele (humanista laica), todos de quatro anos de idade". Os pais não poderiam até ser investigados para saber se eles estavam aptos a criar os filhos? Na Grã-Bretanha, onde não há uma separação constitucional entre a Igreja e o Estado, pais ateus normalmente seguem a corrente e deixam as escolas ensinar aos filhos a religião que prevalecer na cultura. A "The-Britghts.net" (uma iniciativa americana para redenominar os ateus como "Brilhantes", da mesma forma que os homossexuais conseguiram se redenominar como "gays") é escrupulosa ao estabelecer as regras para que as crianças se inscrevam: "A decisão de ser um Brilhante tem de ser da criança. Qualquer jovem que tiver ouvido que ele ou ela tem de ser, ou devia ser, Brilhante NÃO pode ser Brilhante". Você consegue imaginar uma igreja ou mesquita divulgando uma ordem tão abnegada? Mas elas não deviam ser obrigadas a fazer isso? Inscrevi-me nos Brilhantes, em parte porque estava genuinamente curioso de saber se a palavra conseguirá ou não ser memeticamente absorvida pela língua. Não sei, e gostaria de saber, se a transformação de "gay" foi deliberadamente fabricada ou se ela simplesmente aconteceu.150 A campanha dos Brilhantes enfrentou turbulências logo de cara, ao ser alvo de ataques furiosos por parte de alguns ateus, petrificados pelo medo de ser chamados de "arrogantes". O movimento do Orgulho Gay, felizmente, não sofre dessa falsa modéstia, e talvez por isso é que tenha sido bem-sucedido.

Num capítulo anterior, generalizei o tema da "conscientização", começando pela conquista das feministas de fazer com que fiquemos incomodados ao ouvir um termo como "homens de boa vontade" em vez de "pessoas de boa vontade". Aqui quero conscientizar de outra maneira. Acho que todos nós devemos nos sentir incomodados quando ouvirmos uma criança pequena sendo rotulada como pertencente a uma ou outra religião específica. Crianças pequenas são jovens demais para tomar decisões sobre suas opiniões a respeito da origem do cosmos, da vida ou da moral. O simples som do termo "criança cristã" ou "criança muçulmana" deveria soar como unhas arranhando uma lousa.

Abaixo está transcrita uma reportagem, datada de 3 de setembro de 2001, do programa Irish Aires da emissora americana de rádio KPFT-FM.

Meninas católicas enfrentaram protestos de unionistas quando tentavam entrar na Escola Primária para Meninas Santa Cruz, na Ardoyne Road, no norte de Belfast. Oficiais do Regimento Real do Ulster (Royal Ulster Constabulary — RUC) e soldados do Exército britânico tiveram de afastar os manifestantes que tentavam isolar a escola. Barreiras de contenção foram erguidas para permitir às crianças passar pelo protesto e chegar à escola. Os unionistas gritavam ofensas sectárias enquanto as crianças, algumas de quatro anos de idade, eram protegidas pelos pais ao entrar na instituição.

Enquanto crianças e pais entravam pelo portão principal da escola, os unionistas lançavam garrafas e pedras.

 É natural que qualquer pessoa de bem estremeça com tudo o que essas infelizes meninas tiveram que passar. Estou tentando fazer com que também estremeçamos com a simples idéia de chamá-las de "meninas católicas". ("Unionistas", como já afirmei no capítulo 1, não passa do eufemismo medroso da Irlanda do Norte para protestantes, assim como "nacionalistas" é o eufemismo para católicos. Gente que não hesita em classificar crianças como "católicas" e "protestantes" não tem coragem de aplicar os mesmos rótulos religiosos — de forma bem mais apropriada — a terroristas e gangues de adultos.)

Nossa sociedade, incluindo o setor não religioso, já aceitou a idéia absurda de que é normal e correto doutrinar crianças pequenas na religião de seus pais, e colar rótulos religiosos nelas — "criança católica", "criança protestante", "criança judia", "criança muçulmana" etc. —, embora não haja nenhum outro rótulo comparável: não existem crianças conservadoras, nem crianças liberais, nem crianças republicanas, nem crianças democratas. Por favor, conscientize-se e faça barulho sempre que vir isso acontecendo. Uma criança não é uma criança cristã, não é uma criança muçulmana, mas uma criança de pais cristãos ou uma criança de pais muçulmanos. Essa nomenclatura, aliás, seria um excelente instrumento de conscientização para as próprias crianças. Uma criança que ouve que é "filha de pais muçulmanos" perceberá imediatamente que a religião é algo que cabe a ela escolher — ou rejeitar — quando tiver idade suficiente para tal.

Na realidade, dá para fazer uma boa defesa dos benefícios educacionais do ensino de religião comparada. Minhas próprias dúvidas foram suscitadas, certamente, por volta dos nove anos, pela lição (que não foi dada pela escola, mas pelos meus pais) de que a religião cristã em que eu havia sido educado era apenas uma entre vários sistemas de crença incompatíveis entre si. Os apologistas da religião sabem disso e muitas vezes ficam com medo.

Depois da reportagem sobre a peça da natividade no The Independent, não houve nem uma única carta ao editor reclamando da rotulação religiosa de crianças de quatro anos. A única carta negativa veio da "Campanha pela Educação Real", cujo porta-voz, Nick Seaton, disse que a educação religiosa ecumênica era extremamente perigosa porque "as crianças hoje em dia aprendem que todas as religiões têm o mesmo valor, o que significa que a delas não tem nenhum valor especial". É, é verdade; é exatamente isso. Esse porta-voz tem razão de se preocupar. Em outra ocasião, o mesmo indivíduo disse: "Apresentar todas as fés como igualmente válidas é errado. Todo mundo tem o direito de achar que sua fé é superior às outras, sejam hindus, judeus, muçulmanos ou cristãos — senão, qual é a graça de ter fé?".151 

Qual é, mesmo? Que absurdo transparente! Essas fés são incompatíveis entre si. Senão qual é a graça de achar que sua fé é superior? A maioria delas, portanto, não pode ser "superior às outras". Deixemos que as crianças aprendam sobre as diferentes fés, deixemos que elas percebam sua incompatibilidade, e deixemos que tirem suas próprias conclusões sobre as conseqüências dessa incompatibilidade. Quanto a se alguma delas é "válida", deixemos que concluam quando tiverem idade suficiente. 

EDUCAÇÃO RELIGIOSA COMO PARTE DA CULTURA LITERÁRIA 

Tenho de admitir que até eu fico meio desconcertado com a ignorância bíblica normalmente demonstrada por pessoas educadas em décadas mais recentes que eu. Ou talvez não tenha a ver com a década. Já em 1954, segundo Robert Hinde em seu meticuloso livro Why gods persist, uma pesquisa da Gallup nos Estados Unidos mostrou o seguinte: três quartos dos católicos e protestantes não sabiam dizer o nome de sequer um único profeta do Antigo Testamento. Mais de dois terços não sabiam quem proferiu o Sermão da Montanha. Um número significativo achava que Moisés era um dos doze apóstolos de Jesus. Isso, repetindo, foi nos Estados Unidos, que são dramaticamente mais religiosos que outras partes do mundo desenvolvido. 

A Bíblia King James, de 1611 — a Versão Autorizada —, possui trechos de valor literário extraordinário por si só, como por exemplo o Cântico dos Cânticos e o sublime Eclesiastes (que já me disseram ser ótimo também no original em hebraico). Mas o principal motivo de a Bíblia ter de fazer parte de nossa educação é o fato de ela ser uma importante fonte de cultura literária. A mesma coisa aplica-se às lendas dos deuses gregos e romanos, e aprendemos sobre eles sem que ninguém peça que acreditemos neles. Leia abaixo uma lista rápida de frases e termos bíblicos, ou inspirados na Bíblia, que são comuns na língua literária ou coloquial, da poesia consagrada ao cliché banal, de provérbios a fofocas:

Crescei e multiplicai-vos — A leste do Éden—A costela de Adão — Acaso sou eu tutor do meu irmão? — A marca de Caim — Tão velho quanto Matusalém — Escada de Jacó — Terra alheia — Sem olhos em Gaza — A fartura da terra — Boi gordo — Estrangeiro em terra estranha — Terra que mana leite e mel — Deixa ir o meu povo — Olho por olho, dente por dente — Sabeis que vosso pecado vos há de achar — A menina-dos-olhos — As estrelas em sua órbita — Nata em taça de príncipes — Do forte saiu doçura — Filisteu — Davi e Golias — Ultrapassando o amor das mulheres — Como caíram os valentes? — Sabedoria salomônica — Jezebel — Rainha de Sabá — Não me contaram a metade — Paciência de Jó — A sabedoria vale mais que as riquezas — Leviatã — Boa palavra — Vaidade das vaidades — Tudo tem seu tempo — Não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória — Não há limite para fazer livros — Jardim fechado — Raposinhas — As muitas águas não poderiam apagar o amor — O lobo habitará com o cordeiro — Comamos e bebamos, que amanhã morreremos — Põe em ordem a tua casa — Pregar no deserto — Para os perversos não há paz — Ser tirado da terra dos viventes — O tigre não muda suas listras — A encruzilhada — Daniel na cova dos leões — Quem semeia vento colhe tempestade — Sodoma e Gomorra — Nem só de pão viverá o homem — O sal da terra — Dar a outra face — Onde a traça e a ferrugem corroem — Lançar pérolas aos porcos — Lobo em pele de cordeiro — Vinho novo em odre velho — Choro e ranger de dentes — Quem não está comigo está contra mim — Julgamento de Salomão — Cair em solo rochoso — A manada dos porcos desembestados — Sacudi o pó dos vossos pés — Um profeta só não é honrado em sua terra — As migalhas da mesa — Sinal dos tempos — Cova de ladrões — Fariseu — Sepulcros caiados — Guerras e rumores de guerras — Servo bom e fiel — Separar as ovelhas dos cabritos — Lavo minhas mãos — O Shabat foi feito para o homem, não o homem para o Shabat — Vinde a mim as criancinhas — As moedas da viúva pobre — Médico de si mesmo — Bom samaritano — Passar do outro lado da rua — Vinhas da ira — Ovelhas perdidas — Filho pródigo — Um grande abismo entre nós e vós — Não sou digno de desatar-lhes as correias das sandálias — Atire a primeira pedra — Jesus chorou — Ninguém tem amor maior do que este — Onde está, ó morte, teu aguilhão? — Espinho na carne — Lucro sujo — A raiz de todo mal — Lute o bom combate — Eu sou o princípio e o fim — Armageddon — De profundis — Quo vadis

Cada uma dessas expressões, frases ou clichés vem diretamente da Bíblia. Certamente a ignorância em relação à Bíblia empobrece o apreço à literatura. E não apenas da literatura séria e solene. O verso a seguir, do lorde Juiz Bowen, é de um humor engenhoso:

A chuva choveu sobre os justos, 
E também sobre os camaradas injustos. 
Mas mais sobre os justos, porque 
Os injustos tinham dos justos o guarda-chuva.*

Mas a diversão é menor se você não captar a alusão a Mateus 5,45 ("Porque ele faz nascer o seu sol sobre os maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos"). E a graça da fantasia de Eliza Dolittle em Myfair lady estaria perdida para quem ignorasse o fim de João Batista:

"Muito obrigada, rei", digo eu de modo educado, "Mas só o que quero é a cabeça de 'Enry 'Iggins."

 P. G. Wodehouse é, para mim, o maior autor de comédias da Inglaterra, e aposto que metade da minha lista de expressões bíblicas pode ser encontrada na forma de alusões em suas páginas. (Uma busca no Google, porém, não encontrará todas elas. Não detectará a derivação do título do conto "A tia e o preguiçoso",** de Provérbios 6,6.) O cânone de Wodehouse é rico em outras expressões bíblicas, que não pertencem à minha lista e que não foram incorporadas pela língua na forma de frases ou provérbios. Veja Bertie Wooster evocando como é acordar com uma bela ressaca: "Sonhei que estavam enfiando pregos na minha cabeça — mas não pregos comuns, como os usados por Jael, mulher de Héber, mas pregos em brasa". Bertie tinha um orgulho enorme de sua única realização acadêmica, o prêmio que ganhou uma vez por seu conhecimento das Escrituras. 

O que vale para os textos de comédia na Inglaterra vale de modo ainda mais óbvio para a literatura séria. A totalização de mais de 1300 referências bíblicas nas obras de Shakespeare, feita por Naseeb Shaheen, é amplamente citada e tem

* "The rain raineth on the just,/ And also on the unjust fella./ But chiefly on the just, because/ The unjust hath the just's umbrella." (N. T.) 

** O autor refere-se ao trocadilho aunt (tia)/ant (formiga), relativo à citação bíblica "Vai ter com a formiga, ó preguiçoso". (N. T.)

grande credibilidade.152 O Bible Literacy Report, publicado em Fairfax, Virgínia (confessadamente financiado pela famigerada Fundação Templeton), fornece muitos exemplos, e cita um consenso avassalador de professores de literatura em língua inglesa de que o conhecimento bíblico é essencial para a plena apreciação de seu objeto de estudo.153 Sem dúvida o equivalente também acontece com o francês, o alemão, o russo, o italiano, o espanhol e outras grandes literaturas europeias. E, para os falantes de línguas arábicas ou indianas, o conhecimento do Corão ou do Bhagavad Gita é presumivelmente tão essencial quanto, para a apreciação plena de seu patrimônio literário. Por fim, para completar a lista, não dá para apreciar Wagner (cuja música, como já se disse, é melhor do que soa) sem conhecer os deuses nórdicos.

Não vou martelar o assunto. Provavelmente já disse o suficiente para convencer pelo menos meus leitores mais velhos de que uma visão de mundo ateísta não é justificativa para excluir a Bíblia, e outros livros sagrados, de nossa educação. E é claro que podemos manter uma lealdade sentimental às tradições culturais e literárias, por exemplo, do judaísmo, do anglicanismo ou do islã, e até participar de rituais religiosos como casamentos e enterros, sem aderir às crenças sobrenaturais que historicamente acompanham essas tradições. Podemos abrir mão de acreditar em Deus sem perder contato com uma história valiosa.


 



 
 



 



































 




















 



 



 





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