segunda-feira, 8 de abril de 2024

MEMÓRIA - Luto por Marielle


Seis anos depois, revivemos um luto com a prisão dos possíveis mandantes. Agora, a luta segue por justiça para o estado do Rio

Priscilla Brito

Começo este texto chorando, revisitando lembranças com as quais eu não me debatia há um muito tempo. Um conjunto de sentimentos que finalmente tocam uma resposta, precária e ainda parcial, sobre a motivação do crime contra Marielle Franco e que também vitimou o Anderson.

As notícias do fim de março, da prisão dos possíveis mandantes, vieram acompanhadas de uma inundação na minha cabeça: imagens, vozes, fragmentos de uma história. Uma correnteza que me arrastou de volta ao Rio de Janeiro de 2018. Principalmente para 15 de março, dia seguinte ao assassinato. Lembrei do momento em que saí do velório na Câmara Municipal e me deparei com uma multidão. Era como se todos os 46 mil eleitores dela tivessem decidido ir até a Praça da Cinelândia.

As pessoas choravam, seguravam velas, bandeiras, cartazes e de tempos em tempos entoavam juntas a frase “Marielle, presente!”. Hoje soa comovente, mas no dia aquilo me causou uma raiva colossal. Tudo o que as pessoas me diziam parecia falso, desconexo. Eu buscava o que dizer e não conseguia, me sentia totalmente despreparada para elaborar qualquer coisa. Aprendi ali como a morte derrota as palavras e desperta emoções que não sabemos nomear.

Meu corpo doeu por dias, um efeito duradouro da batalha contra o medo. Mais alguém estava em risco? Matariam outra pessoa? Onde a Fernanda estava? Será que ela viu alguma coisa e isso a colocava em perigo? Alguém amparava a Luyara ou a família do Anderson?

Eu e todo mundo que trabalhávamos com ela perdemos não só a nossa chefe e liderança política, mas também nosso espaço de trabalho, nosso emprego, nossa rotina, nossos projetos conjuntos. Uma experiência peculiar, que conviveu com as de outras pessoas, às vezes públicas, às vezes insondáveis.

Hoje, longe da maior parte das pessoas com quem convivia naquele momento, eu tenho vontade de perguntar: agora vocês estão sentindo isso também, estão atravessando esse luto reprisado, a raiva de uma resposta tão tardia? Estão sentindo como se voltassem para a madrugada do 15 de março de 2018, quando nada fazia sentido?

A experiência humana é infinitamente particular, mesmo quando vivemos algo radicalmente coletivo. Podemos contar as mesmas histórias e a perspectiva é sempre única. A Mari não era para mim a mesma pessoa que era para as outras pessoas da equipe, nem para a Luyara, a filha, ou para a Monica, a companheira de vida, para a Fernanda, sobrevivente do assassinato, ou ainda para alguém que trabalhou com ela antes ou que votou nela. Ao mesmo tempo, ela era todas essas pessoas em um corpo, um todo impossível de ser conhecido por um único olhar.

Os dias que se seguiram foram marcados por atos de memória, reuniões intermináveis e grandes manifestações, mas também pelos efeitos físicos e mentais de um trauma. Organizamos muitas atividades e logo entramos de cabeça na pré-campanha eleitoral. Todo mundo que vivia em torno dela precisou aprender a construir algo público em torno de um vazio muito íntimo. Um processo penoso, que abriu novas feridas.

Lentamente veio a consciência de que aquele assassinato político talvez se tornasse um dos mais importantes da nossa democracia, um caso exposto nos jornais e nas redes sociais por meses, anos. A indignação se espraiou, se misturou às lutas de vários lugares do mundo. O caso tomou uma dimensão não imaginada pelos mandantes, condenando-os a lidar com a presença insistente da imagem dela. Uma ameaça para eles, por mais de seis anos.

A gente acreditava que a Marielle podia se tornar presidenta da República um dia, ou que ela ajudaria a eleger uma mulher negra e feminista para esse lugar. Ela fazia muita gente sonhar que a vida no Rio de Janeiro podia ser melhor, mais digna, menos violenta. Seu projeto político sempre foi múltiplo, polissêmico (e por isso dele surgiram tantos outros): negro, favelado, feminista, dos direitos humanos, da música, da festa, do Rio, da ancestralidade, de muitas religiões, da raiva e do amor.

Mas ela não é a mesma pessoa para quem a conheceu e para quem soube da existência dela depois do seu assassinato. Sua imagem tem algo de mítico agora, construído por um país que ainda não reconhece o “sangue retinto pisado por trás do herói emoldurado”, como entoou o samba-enredo da Mangueira (mas que talvez queira conhecer mais a cada dia).

Imagem do projeto A voz de Marielle, do Instituto Marielle Franco.

Dissociar a memória presente, viva, alegre e colorida, da vereadora assassinada e do símbolo político, foi e ainda é um processo doloroso. Uma dor que reapareceu em mim desde a manhã do dia 24 de março de 2024, dia em que se anunciou a prisão dos possíveis mandantes do seu assassinato. Imagino que também tenha ressurgido em muitas pessoas do Rio, em quem penso enquanto estou escrevendo.

Em delação à Polícia Federal, Ronnie Lessa acusou os irmãos Brazão de serem os mandantes do crime (algo que já imaginávamos pelo vazamento da primeira informação sobre a delação dele). A surpresa foi a prisão de Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil à época, e a busca e apreensão na casa de Giniton Lajes, delegado que conduziu a investigação logo depois do assassinato. A publicização do relatório da Polícia Federal, horas depois das prisões, revirou o estômago de todas nós.

Vi a Anielle, a Dona Marinete e o Freixo ficarem desnorteados com a notícia pela tela da TV, ao vivo. Não era só o absurdo da polícia estar envolvida. Rivaldo era um delegado próximo ao trabalho da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, onde Marielle trabalhou antes de ser vereadora. Foi ele que consolou a família e se comprometeu publicamente a solucionar o caso. Giniton colheu os depoimentos e chegou a escrever um livro sobre a investigação. Com o possível envolvimento deles, o crime ganhou uma arquitetura mais sofisticada, embora ainda seja, para nós, uma resposta muito precária.

No dia das prisões, Anielle disse:

“Vou repetir algumas vezes da importância da gente estar num governo progressista e democrático, num governo que dá resposta. Antes eles zombavam da morte da Mari. Recebi hoje ligação do presidente dando força para família, do comprometimento da Polícia Federal. Isso faz diferença. A gente está brigando pela democracia. Estamos próximos, mas ainda sabemos que falta coisa, mas é importante dizer que isso tá acontecendo nesse governo.” (Anielle Franco, em entrevista no dia 24 de março de 2024).

Eu queria que o caso fosse solucionado com um enredo mais tangível, uma história de vingança que tivesse um motivo forte o suficiente e que justificasse alguém querer assassiná-la. Mas se ela foi um alvo em um plano para eliminar uma oposição, um projeto político em curso (mas ainda incipiente), como afirma Lessa, a resposta que temos é complexa.

Na verdade, estamos lidando com algo que é muito concreto: há grupos de interesses que querem eliminar tudo aquilo que nos conecta a ela, pessoal e politicamente. Tudo aquilo que a memória da Mari evoca em nós é alvo do ódio e de pessoas que dirigem o estado do Rio.

Se finalmente encontramos a resposta sobre quem mandou matar Marielle, agora precisamos descobrir como enfrentar o mal que assola o Rio de Janeiro. O choro cessa quando me dou conta de que o luto não se encerra com as prisões. Na verdade, se abre um novo capítulo dessa história. Como disse, em nota, Fernanda Chaves:

“Seguimos, agora, na luta pela devida responsabilização dos envolvidos nesse assassinato, mas também na luta para que o estado do Rio de Janeiro supere o caos a que está submetido, que impacta sobretudo a população mais pobre, subjugada pela atuação de grupos criminosos que dominam quase a totalidade do território fluminense.” (Fernanda Chaves, jornalista e sobrevivente do atentado, em nota do dia 24/3/2024).

Afinal, o nosso luto segue se convertendo em uma luta que faz a gente continuar. Quem a conheceu em vida e quem a conheceu depois do assassinato tem a mesma tarefa de honrar seu legado e de construir um país melhor.

Para conhecer mais a Marielle e seu legado:


Mataram Marielle: Como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca: Jornalistas incansáveis na investigação do caso, Vera Araújo e Chico Otávio desvelam diversos aspectos do Rio de Janeiro que nos ajudam a entender o contexto do assassinato.


Marielle: uma biografia: um dos mais completos trabalhos biográficos disponíveis é o de Audrey Furlaneto para o Storytel.


Marielle Franco – Fotobiografia: organizada pelo Instituto Marielle Franco, o livro traz diversas fotos dos arquivos da família e de fotógrafos do Rio de Janeiro.


Marielle e Mônica: uma história de amor e luta: Recém-lançado, é um relato da viúva de Marielle sobre a história das duas.


Minha irmã e eu: Diário, memórias e conversas sobre Marielle: escrito por Anielle Franco, irmã, é um livro de pequenos relatos escritos após o assassinato.


Marielle Franco nesse lugar da política: tive a honra de organizar junto com a Fernanda Chaves, sobrevivente do assassinato, uma exposição em homenagem à Marielle. Parte dela está disponível virtualmente e deu origem a um livro de memórias sobre o seu mandato, em tiragem gratuita distribuída pela Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, como parte do seu projeto de memória.


Documentário “Vale o Escrito”, da Globoplay: no documentário sobre o Jogo do Bicho no Rio, o assassinato de Marielle é retratado no quinto episódio por conta da ligação de Adriano da Nóbrega com Ronnie Lessa, que executou a então vereadora em 14 de março de 2018.


Priscilla Brito é cientista política, feminista e escritora.

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