Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA
Quando a direita captura um conceito essencial, um projeto emancipador precisa ressignificá-lo. Não a partir do individualismo, mas da justiça social e do resgate do tempo que o capital sequestra. Pois só uma vida digna pode ser livre
Este é um capítulo de Crônicas anticapitalistas, livro de David Harvey publicado pela Editora Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras. Quem apoia nosso jornalismo tem desconto de 20% em todos o catálogo da editora. Saiba como colaborador com o Outras Palavras
A direita sequestrou o conceito de liberdade; apropriou-se dele, como se este fosse seu, e passou a utilizá-lo como arma na luta de classes contra os socialistas, que supostamente representariam a “ausência de liberdade”. Esse fenômeno é bastante visível nos Estados Unidos, mas está longe de ser exclusivo do país. Estive há pouco tempo no Peru participando de uma série de conferências e foi levantado o tema da liberdade. Os estudantes estavam muito interessados na questão: “O socialismo exige abrir mão da liberdade individual?”. Eles traziam o discurso de que era preciso evitar a todo custo a submissão, imposta pelo socialismo/comunismo, do indivíduo ao controle estatal. Respondi que a liberdade individual não só faz parte como deve ter centralidade em qualquer projeto socialista emancipatório. Insisti que concretizar as liberdades individuais é um objetivo central dos projetos emancipatórios socialistas. Mas argumentei que para alcançar isso é preciso construir coletivamente uma sociedade na qual cada um de nós tenha oportunidades e possibilidades de vida adequadas para realizar plenamente as nossas potencialidades.
Marx tinha algumas coisas interessantes a dizer sobre essa questão. Uma delas é que “o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas” [1]. Liberdade não significa nada se você não tem o que comer. Liberdade é uma palavra oca se lhe é negado o acesso a saúde, moradia, transporte e educação decentes. A função do socialismo é fornecer essas necessidades básicas, satisfazer essas necessidades humanas básicas para que as pessoas fiquem livres para fazerem exatamente o que quiserem. O ponto de chegada de uma transição socialista, e o ponto de chegada da construção de uma sociedade comunista, é um mundo em que as capacidades e poderes individuais estão inteiramente libertos de vontades, necessidades e outras amarras políticas e sociais. Em vez de entregar à direita o monopólio da noção de liberdade individual, precisamos reivindicar a ideia de liberdade para o socialismo.
Mas Marx também observa que a liberdade é uma faca de dois gumes. Ele tem uma forma curiosa de olhar para isso do ponto de vista dos trabalhadores. Os trabalhadores em uma sociedade capitalista, diz Marx, são livres num duplo sentido. Eles têm a liberdade de oferecer sua força de trabalho para quem bem entenderem no mercado de trabalho. Podem oferecê-la em quaisquer condições contratuais que conseguirem negociar livremente. Ao mesmo tempo, eles estão “livres” de todo e qualquer controle ou acesso aos meios de produção. Precisam, portanto, entregar sua força de trabalho ao capitalista para conseguir seu sustento [2] .
Eis a sua liberdade de dois gumes. Para Marx, essa é a contradição central da liberdade sob o capitalismo. No capítulo d’O capital sobre a jornada de trabalho [3], ele oferece a seguinte formulação: o capitalista é livre para dizer ao trabalhador: “quero empregá-lo com o menor salário possível pelo maior número de horas possível fazendo exatamente o trabalho que eu especificar. É isso que exijo para contratá-lo”. E o capitalista tem liberdade de fazer isso numa sociedade de mercado porque, como sabemos, a sociedade de mercado tem a ver com oferta, demanda e negociação. Por outro lado, o trabalhador também tem a liberdade de dizer: “Você não tem direito de me fazer trabalhar catorze horas por dia. Você não tem o direito de fazer o que quiser com a minha força de trabalho, particularmente se isso encurtar a minha vida e colocar em risco a minha saúde e bem-estar. Só estou disposto a fazer uma jornada de trabalho justa por um salário justo”.
Dada a natureza da sociedade de mercado, tanto o capitalista quanto o trabalhador estão corretos em termos do que cada um está exigindo. “Ambos”, diz Marx, estão “igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força”[4]. Ou seja, é a luta de classes entre capital e trabalho que define a questão. O resultado repousa na relação de poder entre capital e trabalho, que pode sempre se tornar coercitiva e violenta. É a luta entre capital e trabalho que efetivamente determina a extensão da jornada de trabalho, o salário e as condições de trabalho. O capitalista é livre para maximizar a taxa de exploração dos trabalhadores sob a lei da troca de mercadorias; e o trabalhador é livre para resistir. A colisão entre as duas liberdades está embutida no dia a dia do capitalismo.
Essa ideia de liberdade como uma faca de dois gumes é muito importante de ser analisada em detalhes. Uma das melhores elaborações sobre o tema é de um historiador econômico chamado Karl Polanyi. Veja, Polanyi não era marxista. Não subscrevia à visão marxista das coisas, mas com certeza leu Marx e evidentemente refletiu bastante sobre essa questão de direitos e a questão da liberdade sob o capitalismo. Em A grande transformação, Polanyi diz que existem boas formas de liberdade e más formas de liberdade. Entre as más formas de liberdade que elenca estavam as liberdades de explorar sem limites os seus semelhantes; a liberdade de obter ganhos excessivos sem prestar um serviço proporcional à comunidade; a liberdade de impedir que invenções tecnológicas sejam usadas para benefício público; a liberdade de lucrar com calamidades públicas ou calamidades naturalmente induzidas, algumas das quais são secretamente projetadas para tanto (uma ideia que Naomi Klein discute em A doutrina do choque [5]). No entanto, continua Polanyi, a economia de mercado sob a qual essas liberdades se alastraram também produziu liberdades que prezamos muito: liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o próprio emprego. Por mais que valorizemos essas liberdades por si mesmas – e penso que muitos de nós ainda o fazemos, mesmo os marxistas (eu incluso) –, elas são, em grande medida, subprodutos da mesma economia que também é responsável pelas liberdades malignas.
A resposta de Polanyi a essa dualidade pode soar muito estranha dada a atual hegemonia do pensamento neoliberal e a forma pela qual a liberdade nos é apresentada pelo poder político existente. Ele escreve: “O fim da economia de mercado” – isto é, a superação da economia de mercado – “pode se tornar o início de uma era de liberdade sem precedentes” [6]. Ora, essa é uma afirmação um tanto chocante – dizer que a liberdade real começa a partir do momento que deixarmos a economia de mercado para trás. Ele continua:
A liberdade jurídica e real pode se tornar mais ampla e mais geral do que em qualquer tempo; a regulação e o controle podem atingir a liberdade, mas para todos e não apenas para alguns. Liberdade não como complemento do privilégio, contaminada em sua fonte, mas como um direito consagrado, que se estende muito além dos estreitos limites da esfera política e atinge a organização íntima da própria sociedade. Assim, as antigas liberdades e direitos civis serão acrescentados ao fundo da nova liberdade gerada pelo lazer e pela segurança que a sociedade oferece a todos. Uma tal sociedade pode-se permitir ser ao mesmo tempo justa e livre. [7]
Agora, essa ideia de uma sociedade baseada em justiça e liberdade me parece ter sido pauta política do movimento estudantil dos anos 1960, e da assim chamada Geração 68. Havia uma demanda generalizada por justiça e liberdade: liberdade da coerção estatal, liberdade da coerção imposta pelo capital corporativo, liberdade das coerções do mercado, mas também temperadas pela demanda por justiça social. Foi nesse contexto que escrevi o meu primeiro livro radical, Justiça social e a cidade [8]. A resposta política que o capitalismo deu a isso na década de 1970 foi interessante. Tratou-se, como vimos no capítulo 2, de “ceder” e incorporar certas pautas de liberdade individual como forma de escamotear as demandas de justiça social. Ceder no quesito liberdades foi um movimento circunscrito. Significou, basicamente, a liberdade de escolha no mercado. Ou seja, o livre-mercado e a liberdade em relação à regulação estatal foram as respostas dadas à questão da liberdade. Quanto à justiça social, o próprio mercado cuidaria disso com seus mecanismos de concorrência, supostamente tão organizados que garantiriam a cada um o que lhe seria justo e devido. O efeito, no entanto, foi fomentar muitas das liberdades malignas (por exemplo, a exploração dos outros) em nome das liberdades virtuosas.
Polanyi identificou com clareza essa guinada. A passagem ao futuro vislumbrado está bloqueada por um obstáculo moral que ele denomina “utopismo liberal”. Penso que ainda enfrentamos os problemas postos por essa utopia do livre-mercado. É uma ideologia muito presente na mídia e nos discursos políticos. O utopismo liberal do Partido Democrata, por exemplo, é uma das coisas que impede a realização de uma verdadeira liberdade. “O planejamento e o controle”, escreveu Polanyi, “vêm sendo atacados como negação da liberdade. A empresa livre e a propriedade privada são consideradas elementos essenciais à liberdade.” [9] Essa era a visão que os principais ideólogos do neoliberalismo promoviam. É isso que Milton Friedman e Friedrich Hayek vivam martelando: que a liberdade do indivíduo perante a dominação estatal só pode ser assegurada numa sociedade baseada nos direitos à propriedade privada e à liberdade individual em mercados livres e abertos.
O planejamento e o controle são, portanto, atacados como sendo negações da liberdade; e postula-se a propriedade privada como essencial à liberdade. Nas palavras de Polanyi: “Não é digna de ser chamada ‘livre’ qualquer sociedade construída sobre outros fundamentos. A liberdade que a regulação cria é denunciada como não liberdade; a justiça, a liberdade e o bem-estar que ela oferece são descritos como camuflagem da escravidão”. [10] Para mim, essa é uma das questões-chave do nosso tempo. Seremos capazes de ir além das liberdades limitadas do mercado, das suas determinações e da regulação das nossas vidas pelas leis da oferta e da demanda (aquilo que Marx denominou as leis do movimento do capital), ou simplesmente aceitaremos, como disse Margaret Thatcher, que não há alternativa? Tornamo-nos livres do controle estatal, mas escravos do mercado. A isso não há alternativa. Para além disso, não há liberdade. É o que prega a direita, e é o que muitas pessoas passaram a acreditar.
Eis o paradoxo da nossa atual situação: que em nome da liberdade acabamos no fundo adotando uma ideologia liberal utópica que efetivamente funciona como uma barreira à realização de uma liberdade real. Penso que não faz sentido falar em um mundo livre quando alguém que quer uma educação precisa desembolsar uma enorme quantia de dinheiro para obtê-la, a ponto de contrair dívidas estudantis que acabam por colonizar boa parte do seu futuro. Isso é servidão por dívida, é peonagem. E é algo que precisa ser evitado e circunscrito. A educação precisa ser gratuita; ninguém deveria pagar para se educar. O mesmo vale para saúde e moradia, bem como os elementos básicos para garantir uma nutrição saudável.
Observando de uma perspectiva histórica, passamos de um mundo, nos anos 1960, em que se oferecia moradia social, para um mundo em que isso não existe mais. Na Inglaterra, por exemplo, uma grande parcela da provisão habitacional na década de 1960 se encontrava no setor público; era moradia social. Na minha infância, essas moradias populares constituíam um fornecimento básico de uma necessidade, a um custo relativamente baixo. Depois veio Margaret Thatcher e privatizou tudo, com um discurso de que as pessoas seriam muito mais livres se pudessem ser donos dos seus imóveis de modo a participar de uma “democracia de proprietários”. E assim, em vez de 60% da moradia se concentrar no setor público, de repente passamos a uma situação em que apenas cerca de 20% (ou até menos que isso) da habitação é pública. A moradia vira uma mercadoria que, por sua vez, torna-se parte de uma atividade especulativa. À medida que se converte em veículo de especulação, o preço do imóvel sobe e o resultado é uma elevação no custo da moradia sem que haja um aumento efetivo na provisão habitacional direta.
Fui criado naquilo que se poderia denominar uma comunidade respeitável de classe trabalhadora em que as pessoas tinham casa própria. A maior parte das pessoas da classe trabalhadora não tinha casa própria, mas havia um segmento que tinha, e a comunidade em que cresci pertencia a esse segmento. A casa era vista como valor de uso; isto é, era um lugar em que morávamos e fazíamos coisas – nunca falávamos sobre seu valor de troca. Recentemente vi alguns dados que mostravam que, até a década de 1960, o valor das moradias de classe trabalhadora não apresentou nenhuma mudança ao longo de cem anos ou mais.
A partir dessa década, no entanto, a moradia começou a ser vista como valor de troca, em vez de valor de uso. As pessoas começaram a indagar sobre o valor monetário desses imóveis e a indagar se (e como) seria possível alavancar ele. Ou seja, de repente, começaram a aparecer considerações sobre valor de troca – o que foi totalmente ao encontro da política thatcheriana de privatizar a moradia social por completo com a promessa de que assim todos poderiam participar do mercado imobiliário e passar a se beneficiar da escalada dos valores de troca.
Uma das consequências disso é que quem estava nos estratos mais baixos da população, do ponto de vista de renda, passou a enfrentar uma dificuldade crescente de encontrar um lugar para morar. Em vez de viver em localizações muito centrais, onde havia fácil acesso a oportunidades de emprego, eles foram sendo expulsos dos centros das cidades e das melhores regiões e passaram a ter que se deslocar cada vez mais entre casa e trabalho. Mas quando chegamos à década de 1990, a casa já se converteu novamente em instrumento de ganhos especulativos. Sob pressões especulativas, os valores dos imóveis cresceram de maneiras muitas vezes vertiginosas (embora também erráticas). O resultado geral é que muitas das pessoas nos estratos mais baixos de renda não conseguem encontrar onde morar. O resultado é uma crise habitacional, e a produção de uma escassez de moradia a preços acessíveis.
Cresci na Inglaterra. Lembro que, na minha juventude, havia pessoas em situação de rua, mas muito poucas. Hoje, entretanto, em grandes cidades como Londres, você encontra cada vez mais moradores de rua. Em Nova York, temos cerca de 60 mil pessoas em situação de rua. Uma enorme quantidade de crianças não tem lar – não no sentido de que você as vê nas ruas, mas de que elas ficam pingando de casa em casa, dormindo no sofá de parentes ou amigos; o chamado “couch surfing”. Não se criam comunidades solidárias assim.
Hoje vemos muita atividade de construção civil acontecendo em cidades ao redor do mundo. Porém, é tudo especulativo. A verdade é que estamos construindo cidades para que as pessoas especulem, e não cidades para que as pessoas vivam. Quando criamos cidades visando investimento em vez de moradia, o resultado é o tipo de situação que vemos em Nova York, onde há uma enorme crise de falta de moradia a preços acessíveis em meio a uma explosão de construção de imóveis para o mercado de alta renda. Você precisa de ao menos 1 milhão de dólares para entrar nesse mercado. A esmagadora maioria da população está mal servida em termos de valores de uso de moradia; tem pouquíssimo acesso a valores de uso adequados. Ao mesmo tempo, estamos construindo enormes apartamentos de luxo para os ultrarricos. Michael Bloomberg, o ex-prefeito de Nova York, tinha a ambição de que todo bilionário do mundo viesse investir na cidade e tivesse seu apartamento de luxo em um lugar como Park Avenue. Foi de fato o que aconteceu: há xeiques árabes e bilionários indianos, russos ou chineses que não moram em Nova York; eles só vêm para cá uma ou duas vezes ao ano e pronto. Isso não é base para sustentar condições dignas de vida e moradia para a massa da população.
Estamos construindo cidades, construindo imóveis, de uma forma que proporciona uma enorme liberdade para as classes altas, ao mesmo tempo que produz uma falta de liberdade para o resto da população. Penso que era algo dessa ordem que Marx tinha em mente quando fez o referido comentário segundo o qual o reino da necessidade tem de ser superado para que o reino da liberdade seja alcançado. O que temos hoje em Nova York é liberdade de investimento, liberdade para as classes mais altas escolherem onde querem morar, enquanto a esmagadora maioria da população fica quase sem escolha alguma. É assim que as liberdades de mercado limitam as possibilidades e, desse ponto de vista, penso que a perspectiva socialista seria seguir a sugestão de Polanyi, isto é: coletivizar a questão do acesso à liberdade, do acesso à moradia. Fazer com que ela deixe de ser algo balizado pelo mercado ao recolocá-la na esfera pública. Nossa bandeira seria: moradia como um bem público.
Esta é uma das ideias básicas do socialismo no sistema contemporâneo: colocar as coisas no domínio público. Encoraja-me um pouco o fato de que, na Inglaterra, o Partido Trabalhista britânico – um dos poucos partidos tradicionais que ainda parece se pautar por alguma urgência democrática vigorosa [Este comentário foi feito em janeiro de 2019, quando Jeremy Corbyn ainda era líder do Partido Trabalhista britânico, e posteriormente revisto no início de 2020, ainda nos primeiros meses do mandato de seu sucessor, Keir Starmer. (N. E.)] – propôs que muitas áreas da vida pública fossem reavidas do mercado, recuperadas para o domínio público – por exemplo, os transportes. Se você chegar para qualquer um na Inglaterra e disser que a gestão privada dos trens e ferrovias está produzindo um sistema de transportes mais eficiente, certamente vão rir da sua cara. As pessoas conhecem muito bem as consequências da privatização. Ela tem sido um desastre, uma zona, uma descoordenação. O mesmo vale para o transporte público nas cidades. Também temos a privatização do abastecimento hídrico, que supostamente seria algo maravilhoso, mas no fundo o que vemos, claro, é que a água passa a ser cobrada. É uma necessidade básica; não deveria ser prestada pelo mercado. Você precisa pagar pelo seu consumo de água e o serviço sequer é bom.
Portanto o Partido Trabalhista insistiu que há uma série de áreas que representam necessidades básicas para a população e não devem ser providenciadas pelo mercado. Prometeu acabar com o endividamento estudantil, acabar com essa coisa de acesso à educação via privatização, e se comprometeu a trabalhar no sentido de atender necessidades básicas por meio do domínio público. Há um anseio, penso eu, por retirar necessidades básicas do domínio do mercado, bolar formas alternativas de providenciá-las. Dá para fazer isso com educação, saúde, moradia e inclusive insumos alimentares básicos. De fato, há experiências de alguns países latino-americanos que buscaram subsidiar uma alimentação básica a populações de baixa renda. Não vejo motivo algum para não termos uma configuração básica de fornecimento alimentar para a maior parte das pessoas do mundo hoje.
Isso é o que significa dizer que o reino da liberdade só é possível quando realmente atendemos a todas as necessidades básicas que precisaremos para que todos possam levar uma vida decente e adequada. É em função dessa ideia de liberdade que uma sociedade socialista se pautaria. Mas precisamos de uma forma e um esforço coletivos para fazer isso. Infelizmente, o Partido Trabalhista britânico perdeu as eleições de lavada [As eleições gerais britânicas de dezembro de 2019 deram uma vitória acachapante para o Partido Conservador, liderado por Boris Johnson. Foi o quarto revés consecutivo do Partido Trabalhista nas eleições gerais – e sua pior derrota desde 1935. (N. E.)]. Mas estou convicto de que a derrota não se deve ao seu programa progressista (que angariou muito apoio público), e sim ao fracasso do partido em assumir uma postura decisiva em relação ao Brexit e à sua incapacidade de lidar com os ataques coordenados dos meios de comunicação de massa.
Por fim, um último ponto. Costuma-se dizer que para alcançar o socialismo temos de renunciar à nossa individualidade e abrir mão de algo. Bem, até certo ponto talvez algo disso seja verdade; no entanto há, como insistiu Polanyi, uma liberdade mais ampla a ser alcançada quando ultrapassarmos as realidades cruéis das liberdades individualizadas do mercado. Na minha leitura, Marx está nos dizendo que a tarefa é maximizar o reino da liberdade individual, mas que isso só pode acontecer quando resolvermos o reino da necessidade. A tarefa de uma sociedade socialista não é regular tudo o que acontece em uma sociedade; de modo algum. A tarefa de uma sociedade socialista é garantir que todas as necessidades básicas sejam atendidas – fornecidas livremente – para que então as pessoas possam fazer exatamente o que quiserem, quando quiserem.
Não é só que os indivíduos precisam poder acessar os recursos para tanto; eles também precisam ter tempo para isso. A liberdade – o tempo livre, o verdadeiro tempo livre – é algo absolutamente crucial para a ideia de uma sociedade socialista. Tempo genuinamente livre para que todos possam fazer o que quiserem: eis a medida daquilo a que o socialismo aspira. Se você perguntar a qualquer um agora: “Quanto tempo livre você tem?”, a resposta típica é: “Praticamente nenhum. Meu tempo está todo tomado por isso, aquilo e tudo o mais”. Se a verdadeira liberdade é um mundo em que temos tempo livre para fazer o que quisermos, então o projeto emancipatório socialista propõe que esse seja um eixo central da sua missão política. Isso é algo para o qual todos nós podemos e devemos nos empenhar.
Notas:[1] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: O processo global da produção capitalista (trad. Rubens Enderle, Boitempo, 2017), p. 882.[2] “Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.” Idem, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 244.[3] Ibidem, p. 305-73.[4] Ibidem, p. 309.[5] Naomi Klein, A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (trad. Vânia Cury, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008).[6] Karl Polanyi, A grande transformação: origens da nossa época (trad. Fanny Wrobel, Rio de Janeiro, Campus, 2000), p. 297.[7] Ibidem.[8] David Harvey, Justiça social e a cidade (trad. Armando Corrêa da Silva, São Paulo, Hucitec, 1980).[9] Karl Polanyi, A grande transformação, cit., p. 297.[10] Ibidem.
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