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Portugal deverá considerar a importância de relações verdadeiramente equitativas com os restantes países de língua portuguesa, que são a única garantia da perpetuação global da sua memória no mundo do futuro.
João Carlos Graça
O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Paulo Rangel, declarou-se “surpreso” e “apreensivo” quando foi informado sobre um novo acordo estabelecido (através de uma reunião dos respetivos presidentes) entre São Tomé e Príncipe e a Federação Russa. Ao mesmo tempo, vários apresentadores da televisão portuguesa expressaram-se de forma semelhante relativamente à possibilidade de um acordo semelhante entre a Rússia e a Guiné-Bissau.
Devo começar por sublinhar que, considerando estas atitudes e comportamentos dos agentes políticos portugueses sub specie aeternitatis, parece óbvio que merecedores de uma reação de surpresa e apreensão são realmente estas atitudes e comportamentos… e claro estes agentes políticos. Afinal, e caso Paulo Rangel e tutti quanti ainda não o tenham percebido: São Tomé e Príncipe, a Guiné-Bissau e os restantes PALOP (países africanos de língua portuguesa) são, há cerca de meio século, países independentes, cuja soberania Portugal não só respeita, mas faz questão de respeitar escrupulosamente, dado o quanto o quadro constitucional português ficou intimamente ligado ao processo de descolonização que foi concomitante com a democratização da República Portuguesa.
Quase simultaneamente, o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, também se tornou recentemente notório e até escandaloso na vida política nacional, por argumentar publicamente que Portugal devia aos PALOP um pedido formal de desculpas e reparações pelos males causados pelo domínio colonial. Esta aparente esquizofrenia política portuguesa merece um exame mais atento e alguns breves comentários.
É evidente que Marcelo, ele próprio filho de um antigo Ministro das Províncias Ultramarinas do Estado Novo português (1933-74), expressa aqui uma intenção bastante clara de, com esta súbita mudança retórica, “ultrapassar pela esquerda” todos em Portugal, enquanto ao mesmo tempo, acenando ou piscando para o discurso “acordado” que foi recentemente importado entre nós, principalmente através da influência cultural norte-americana. Contudo, para além da espuma dos dias que é o terreno por excelência das atuações de Marcelo, o derradeiro Alcibíades português, creio que há aqui um assunto sério, genuinamente digno de meditação. A extrema-direita étnica portuguesa do Chega, aliás, farejou imediatamente a importância da questão, tendo em resposta lançado uma bombástica acusação formal de alta traição contra Marcelo, para ser debatida no Parlamento.
Tentando permanecer, tanto quanto possível, acima desta confusão, devo, no entanto, dizer que a ideia de um pedido formal de desculpas me parece genericamente correta, enquanto a noção de reparações é totalmente equivocada. Nos nossos tempos cínicos, talvez valha a pena recordar a famosa piada de Oscar Wilde sobre a condição daqueles que “sabem o preço de tudo, mas o valor de nada”. As avaliações históricas estão, e creio que há razões para pensar que permanecerão, permanentemente connosco. Contudo, em vez de tentar extrair deles um quantum de pagamento que supostamente resolveria os problemas, talvez seja melhor habituar-se ao que neles também há de irredutivelmente qualitativo. Deixemos, portanto, de lado as chamadas reparações; e, em vez disso, concentre-se na ideia de um pedido de desculpas.
A questão central, mesmo relativamente a esta última, é a descontinuidade patente das entidades a que nos referimos. O Portugal de hoje já não é obviamente o Portugal escravista dos séculos XV a XVIII , ou o Portugal colonizador dos séculos XIX e XX – mas há, no entanto, a este respeito, sem dúvida, também elementos de continuidade simbólica, que permitem-nos pensar numa possível atribuição de responsabilidades. O maior problema, porém, reside nas entidades africanas que temos em mente. As políticas anteriores à descolonização portuguesa foram por ela destruídas; e, além disso, os próprios movimentos descolonizadores, que foram também os produtores das novas nações e países, só puderam constituir-se plenamente quando, para além da diversidade étnica dos territórios submetidos à dominação colonial portuguesa, começaram a agir em nome da nova unidade nacional. Por outras palavras: quando deixaram de ser os Ovambos, Lundas ou Kimbundus a opor-se ao colonialismo português – e em vez disso os angolanos começaram a fazê-lo.
Além disso, os próprios movimentos de libertação proclamaram-no abertamente: foi a oposição comum ao colonizador português que verdadeiramente criou as novas nações. Várias inferências podem ser tiradas dessa suposição. A primeira é obviamente que, se o colonialismo outrora destruiu África sem respeitar a diversidade étnica do continente, essa mesma diversidade étnica pode agora ser invocada para fins neocoloniais visando redesenhar fronteiras em seu nome. Mais de um movimento separatista foi, de facto, promovido com base nestes propósitos neocoloniais. Daí o facto de a tonalidade predominante da descolonização africana ter sido, até agora, basicamente centrípeta, correspondendo à formação de novas nações por cimentação, e não centrífuga, promotora de secessões.
Este fato é extremamente relevante para os interesses portugueses: talvez não os relativos aos preços, mas certamente os relativos aos valores. O triunfo dos movimentos de libertação africanos deve, de facto, ser atribuído principalmente ao facto de a língua portuguesa se ter consolidado como língua oficial de áreas muito vastas, correspondendo já hoje (e previsivelmente muito mais no futuro) a uma imensa massa humana. Antes da descolonização, a pobreza, o analfabetismo quase universal, e o próprio culto (ante litam pós-moderno) do “tribalismo” por parte das autoridades portuguesas, do qual a componente de “dividir para reinar” nunca deixou de ser um condimento fundamental, tinham sido um inibidor muito forte da penetração da língua portuguesa. Pelo contrário, foi a descolonização que acabou por salvar os portugueses das águas do esquecimento.
Mas há ainda mais, em termos das implicações políticas da primeira, porque, bem considerada, a própria democratização portuguesa de 1974, mais do que explicável por causas estritamente endógenas, ou por uma alegada (mas meramente mítica) influência benevolente do nosso passado e atuais “parceiros ocidentais”, há que referir as implicações sociológicas que a guerra colonial teve em Portugal. Não é errado dizer que o desejo incontido de paz que prevaleceu na sociedade portuguesa em 1974, fruto do cansaço das guerras africanas que duram desde 1961, foi a principal razão para o enfraquecimento decisivo das bases sociais do Estado Novo – e, neste sentido, a principal causa da democratização.
Além disso, deve sublinhar-se que os próprios líderes anticoloniais africanos (Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane) estavam plenamente conscientes destas ramificações do significado das suas respectivas lutas. Não é necessária nenhuma “astúcia da Razão” a posteriori para poder ler as coisas desta forma. Os nossos amigos e irmãos africanos, que foram os verdadeiros libertadores dos nossos libertadores (as tropas portuguesas que se revoltaram no mágico Abril de 1974), já tinham consciência disso. Além do dom inestimável que foi o resgate daquilo que Fernando Pessoa notoriamente considerou a sua verdadeira Pátria (não o pequeno e ridículo Portugal, mas a língua portuguesa), devemos agradecer-lhes, também pela nossa libertação. Não apenas a nossa libertação política formal, mas a libertação mais profunda do peso dos nossos piores fantasmas colectivos – que, claro, ainda não foi concluída. E isso não pode ser concluído, enquanto a maioria dos portugueses não compreender o que Portugal e a cultura portuguesa (especialmente a Lusofonia) já representam verdadeiramente, ou podem representar: o que valem, para além de qualquer preço, colocando-o assim a salvo da instrumentalização manipulativa do Colectivo. Ocidente através dos seus vários tentáculos – NATO, UE, etc.
Em vez de discussões fantasiosas sobre reparações materiais imaginárias para os africanos, talvez fosse muito melhor e mais sensato começar por sublinhar estes outros reconhecimentos e proceder com base neles. Talvez os nossos “amigos” ocidentais não sejam assim tão amigáveis, e talvez a nossa verdadeira “família”, aquela à qual estamos mais profundamente unidos pelo destino colectivo, seja o Brasil e os PALOP. Portugal e os portugueses têm motivos profundos para apreciar e agradecer o acolhimento que estes países deram, e continuam a dar, ao legado lusitano, sobretudo ao legado cultural-idiomático. Em vez de ser um avô simultaneamente rabugento e arrogante, na verdade um avô completamente gago e demente, com ilusões “ocidentais” e “europeias” cada vez mais grotescas, talvez Portugal devesse aprender a cuidar melhor dos seus interesses permanentes, considerando a importância de uma situação verdadeiramente equitativa – e fraternal – relações com os demais países de língua portuguesa, que são a única garantia da perpetuação global da nossa memória no mundo do futuro.
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