quarta-feira, 22 de maio de 2024

O NEGÓCIO DO JAIR - A História secreta do clã Bolsonaro (gota 12)

 

No sítio de Wassef, Queiroz tomava uma série de cuidados. Desligava o celular pouco antes de chegar ao endereço onde estava escondido e instruiu os familiares a fazer o mesmo. Dizia para a família apagar as mensagens e evitava ligações na linha convencional do telefone.

Quando já estava recuperado da cirurgia, ele resolveu encontrar seu advogado, o criminalista Paulo Klein, para redigir alguns esclarecimentos ao fluminense. Ninguém é obrigado a falar durante a fase de investigação. No entanto, soava como admissão de culpa a ausência de explicações de alguém que queria parecer inocente. Depois que a entrevista que dera ao SBT fora avaliada como desastrosa, a defesa achou melhor tomar precauções e fez um depoimento por escrito. Assim, Klein e Queiroz se reuniram no Hotel Ibis, perto do aeroporto de Congonhas, e elaboraram um documento.

Luis Gustavo Botto Maia, um dos advogados de Flávio, havia sugerido que Queiroz dissesse que, para melhorar a votação do deputado, o policial teria passado a atuar como chefe de gabinete informal e começara a coletar dinheiro dos assessores para, posteriormente, fazer outras contratações de funcionários “por fora”. Sua intenção era ampliar o trabalho de base e o eleitorado, e, nessa fábula, Flávio não saberia de nada.

E foi isso que constou do documento que Klein protocolou junto ao MP. Surgia outra justificativa para os “rolos” que apareceram no relatório do Coaf. Só que a história, além de admitir uma ilegalidade, parecia uma anedota. Ainda mais depois que Agostinho Moraes da Silva, outro policial que fora assessor de Flávio, prestou depoimento no MP em janeiro de 2019 e confessou entregar dois terços do salário para Queiroz. Mas a versão do assessor para a entrega era outra: investimento na compra e venda de carros.

Nos corredores do MP, aqueles depoimentos soaram como confissões. Avaliava-se, porém, que as investigações precisavam se aprofundar para mostrar e identificar o destino do dinheiro depois que era depositado para Queiroz. E o policial, mais que à sua própria defesa, ouvia Frederick Wassef. O advogado da família Bolsonaro usava-o como marionete e garantia que cuidaria do problema: em breve ele iria resolver o caso no STF.

LONGE DA POLÍTICA, Queiroz reclamava do ócio e da falta de dinheiro. A família vivia dias duros. Todos tinham perdido o emprego no gabinete de Flávio e agora dependiam da aposentadoria de Queiroz. Nathália, a personal trainer, estava sem alunos por causa do escândalo. Contra a vontade de Wassef, ela voltou ao Rio, mas não durava nos empregos. Assim que descobriam quem era seu pai, ela acabava saindo.

Depois de uma década ao lado de Flávio, Queiroz sentia falta do cotidiano dos gabinetes e da Alerj. O sonho de acompanhar os Bolsonaro na presidência havia se frustrado, sentia-se enjaulado. E, para se envolver um pouco na antiga rotina, gradualmente voltou a se comunicar pelo celular com mais frequência e menos cuidado. A partir de março de 2019, passou a enviar mensagens aos amigos, em geral por áudios de WhatsApp. Via aquilo tudo “atrasando” a vida dele e da família. Recluso no sítio de Atibaia, torcia pelos movimentos de Wassef: “Torcendo para essa pica passar. Vamos ver no que vai dar isso aí para voltar a trabalhar, que já estou agoniado”, confessou.1

Queiroz desabafava com amigos que seu sonho era voltar para a política, fazia planos dentro do PSL. Em um áudio a um conhecido, disse: “Politicamente, eu só posso ir para o partido. Trabalha isso aí com o chefe aí. Passando essa ventania aí, ficamos eu e você de frente. A gente nunca vai trair o cara. Ele sabe disso. E a gente blinda, a gente blinda legal essa porra aí. Espertalhão não vai se criar com a gente”.2

Como evitava contato direto com Bolsonaro, Queiroz acompanhava pelo noticiário o desenrolar das brigas entre o governo e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Não entendia o uso do Twitter para anúncio de medidas e ataques a adversários, iniciativa implementada por Carlos Bolsonaro. O policial então opinava e enviava recados para “parar com esse lance de Twitter” porque estava “pegando mal pra caralho”. Na visão do policial, Bolsonaro tinha que “focar no governo”.

Pouco afeito à institucionalidade dos cargos, sugeria que o presidente usasse Moro para atacar Maia — que se servisse de um órgão de Estado para perseguir um adversário político: “Estão fazendo chacota do governo dele. Rodrigo Maia está esculachando. As declarações dele humilham o Jair. Jair tinha que dar uma porrada nesse filha da puta. Botar o Sergio Moro para ir no encalço dele”.

Queiroz falava, falava, falava, e Nathália desaprovava. A personal tinha se tornado braço direito do pai para resolver os problemas no Rio de Janeiro, já que Márcia vivia viajando. Era da primogênita, por exemplo, a responsabilidade de lidar com os advogados e cuidar de documentos do processo. Ao se ver envolvida no escândalo, ela se arrependeu de ter confiado no pai, mas precisava ajudar a família a lidar com as consequências. O problema é que ela notava que o pai continuava metido a fazer contatos com políticos e discutindo indicações a cargos, e isso a irritava e causava discussões entre os dois.

Queiroz continuava fazendo o que pensava ser melhor. Em junho de 2019, matutava soluções para ajudar a família a pagar as contas. Também era um jeito de se manter no jogo. Então, numa conversa com um amigo, sugeriu em um áudio: “Tem mais de quinhentos cargos lá, cara, na Câmara, no Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles [família Bolsonaro] em nada. Vinte continho para gente caía bem para caralho. […] Caía igual uma uva”. O amigo ouviu. Os dois avaliavam que Bolsonaro estava se distanciando do grupo mais antigo e deixando para trás pessoas que eles consideravam de confiança. Ambos se sentiam perdendo espaço.

O dinheiro andava curto e chegava alguma ajuda pelo antigo amigo da polícia, o miliciano Adriano da Nóbrega e ainda por pessoas que só Queiroz e a família sabem quem são.3 Quando Márcia não estava no Rio, era Evelyn Mayara, filha dela, a responsável por receber os valores para pagar as contas da casa e as despesas das filhas de Queiroz. A mãe orientava a filha por mensagens no celular. Em 3 de setembro de 2019, Márcia escreveu para Evelyn Mayara: “Sabe me dizer se deram o dinheiro do mercado e das coisas da Melissa? Não manda áudio”. Na sequência, a filha disse: “Deram”.4

Quase sempre valores recebidos em dinheiro vivo, o que não permite um rastreio da origem. No hospital Albert Einstein, eles já tinham feito pagamentos assim, como descobriu o jornalista Chico Otavio, do Globo. Mais tarde, Julia Lotufo contaria que o marido, Adriano da Nóbrega, entregaria uma parte dos 135 mil de que Queiroz precisava para custear o tratamento inicial do câncer.

Por todas essas coisas que eles não podiam ou não queriam explicar, os Queiroz continuavam fugindo da imprensa. Ou se escondendo, como o próprio ex-assessor. Eu e boa parte da imprensa continuávamos com a missão de tentar saber onde Queiroz estava. Fui então atrás de antigos companheiros dele na polícia e na Alerj.

Perguntei o que pude. Onde ele estava? “São Paulo.” Como está de dinheiro? “Mal, vive reclamando.” Conversa vai, conversa vem, semanas se passaram até que um deles me enviou um áudio de Queiroz. Era a primeira vez que se ouvia a voz dele em quase dez meses. O policial citava a existência de “Tem mais de quinhentos cargos lá, cara, na Câmara e [no] Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles [família Bolsonaro] em nada. Vinte continho aí para gente caía bem para caralho. Caía como uva”. Com a publicação, o Brasil conseguiu ouvir Queiroz, finalmente sem filtro. Era outubro de 2019.

Na véspera da publicação, ao pedir uma nota para a assessoria de Flávio, ouvi de um desesperado Frederick Wassef insinuações a respeito da proximidade do julgamento do STF — ele queria perícia da PF para determinar se era Queiroz na gravação. A sugestão era risível, já que o ex-assessor havia me enviado uma nota, por meio de seus advogados, confirmando que o áudio era dele, e também que ele seguia indicando cargos, uma vez que tinha ajudado a eleger muitos parlamentares da base bolsonarista. Queiroz não se importava em continuar sendo visto como alguém influente. Ao saber da posição do policial para a reportagem, Wassef ficou furioso. Foi ver o policial e o repreendeu. E também disse que ele, Queiroz, havia sido “traído”.

Quando o áudio vazou e mostrou Queiroz atuando na política, a despeito de todas as investigações, a história pegou mal para os Bolsonaro em um momento avaliado como calmo. Nem em sua família Queiroz conseguiu apoio. Como sua mulher e suas filhas também estavam sendo investigadas, a exposição dele gerou até briga. Nathália ficou indignada e não poupou o pai para a madrasta, Márcia Aguiar. As duas também tinham como hábito trocar áudios no WhatsApp: “Márcia, na boa, cara. Meu pai é muito burro. O que que ele tem que falar essas coisas? Ele não aprendeu com esse monte de merda que aconteceu? Aí vai e ainda fica falando mais de política, gente? Que prazer é esse que ele tem?”.

“Agora eu levantei e vi esse negócio [a reportagem] que a Melissa me mostrou aí, eu tô no Rio. Cara, é foda. Não sei quando é que teu pai vai aprender a fechar o caralho da boca dele. Foda. Quando a gente está prestes a conseguir alguma coisa, vem essa bomba aí. Sabe, eu fico puta com ele, mas eu fico com pena. Mas tem que estar do lado dele agora. Vamos pedir a Deus. Apesar que não tem nada comprometendo ele falando de nada, de nenhum deputado, mas já perceberam que ele tem acesso com outros deputados também. Enfim, Nathália, é foda, cara.”

“Márcia, eu vou te falar. De coração. Eu não consigo mais ter pena do meu pai, porque ele não aprende. Meu pai é burro! Meu pai é burro! Ele não ouve. Ele não faz as coisas que tem que fazer. Ele continua falando de política. Ele continua se achando o cara da política. Então, assim, parece que ele gosta de estar no holofote, de estar no site, de aparecer. Não é possível. Isso não é normal. Não consigo ter pena mais. Antes eu tinha. Agora, não consigo, porque isso daí é toda hora que eu vejo é ele falando de política, é ele falando negócio de vaga, é não sei mais o quê. No aniversário dele foi isso. Quando eu encontro com ele, toda vez é isso. Então, ele não sossega. Parece que não aprendeu. Tomou uma porrada dessa e não aprendeu. E continua fazendo a mesma coisa. Cara, eu fico com vergonha.”

“É chato também, concordo. É que ainda não caiu a ficha dele que agora voltar para a política, voltar para o que ele fazia tão cedo, esquece. Bota anos para ele voltar. Até porque o 01, o Jair, não vai deixar. Tá entendendo? Não pelo Flávio, mas, enfim, ainda não caiu essa ficha dele. Fazer o quê? E eu tenho que estar do lado [dele]. Eu fico puta, Nathália. Concordo com o que você tá falando, também acho. Mas hoje já falei com ele, dei um esporro nele. Aí ele: ‘pô, eu tô na merda, mesmo...’. Tá na merda porra nenhuma, pode ficar muito pior. Mas enfim. É foda, cara. Cada hora é uma. Confiar em amigos, entendeu? Nessa vida, a gente não tem que confiar em ninguém. Se bobear, nem na própria família. Ainda mais num caso desse daí. Ele fala da política como se ele tivesse lá dentro, trabalhando e resolvendo. Um exemplo que eu tenho, que parece. Parece aquele bandido que tá preso dando ordens aqui fora. Resolvendo tudo. Mas é foda. Eu tô com pena dele, sim. Ele não escuta, mas quando está na merda, fazer o quê? Se eu der as costas, fudeu, né?”

“É foda, Marcinha, é foda. É foda. Quando tá tudo quietinho, aí vem uma bomba vindo do meu pai. Para piorar as coisas, o advogado, o 01, todo mundo fica puto, revoltado, com certeza todo mundo vai comer o cu dele falando. Não tenho dúvidas. E ele ainda vai achar normal. Porque você conhece meu pai. Vai falar ‘não falei nada demais’. Sempre acha que não é nada demais.”

“Mas enfim, pedir a Deus aí pra… Eu tô acendendo minhas velas, fui pagar a minha promessa, ano passado eu fiz, eu acendi vela do começo de outubro até dezembro e agora tô acendendo também. Acaba uma acende outra de sete dias até dia 21 de novembro, pedir a Deus aí pra… Esse negócio qualquer coisa é motivo para falar, né? Vamos ver”, desabafou Márcia.

A divulgação do áudio de Queiroz sobre os cargos era o segundo problema de Wassef em menos de dois meses. Pouco antes, nós havíamos noticiado a existência de mensagens entre Queiroz e Danielle Nóbrega, identificadas no celular dela apreendido na Operação Intocáveis. Na conversa, os dois falavam sobre a demissão da ex-mulher de Adriano Nóbrega do gabinete de Flávio. Wassef sentia como se tudo estivesse sendo feito para minar o clima pré-julgamento do Coaf e alimentava suas teorias da conspiração.

NO INÍCIO DE DEZEMBRO DE 2019, o STF terminou de julgar a questão do compartilhamento de dados e a tese de Wassef saiu derrotada. Por unanimidade, o STF decidiu manter o que já funcionava no Brasil havia muito tempo: a legalidade de o Coaf comunicar aos órgãos de investigação eventuais movimentações atípicas. Quando o Supremo estava finalizando esse julgamento, o desespero bateu forte na família Queiroz. Era preciso tomar várias providências. Uma delas seria pedir ajuda ao miliciano Adriano da Nóbrega por meio da mãe dele, Raimunda Veras Magalhães, a Vera (ela odeia o nome Raimunda). De certa forma, ela também estava escondida em Astolfo Dutra, uma cidade no interior de Minas Gerais, esperando pelo fim do julgamento.

Nas primeiras instruções, Queiroz pediu a Márcia para, com o advogado Luis Gustavo Botto Maia, ir encontrar Vera, mas até para discutir um assunto complicado como esse Gustavo sempre tinha certo deboche:

“Bom dia minha amiga, tudo bem? Falando nisso, tem uma reunião amanhã e é importante eu levar cerveja ou já tem cerveja lá?” Mais tarde, na casa de Vera, os três posaram para uma foto segurando uma garrafa de bebida e enviaram o registro para Queiroz pelo celular.

Apesar de o clima parecer festivo, o assunto entre eles era bastante pesado. O MP avaliou, em um primeiro momento, que eles foram à casa da mãe de Nóbrega discutir um plano de fuga. O que se debateu nesse encontro teria sido uma coisa muito diferente: Queiroz queria saber de Nóbrega quem, entre as autoridades públicas do Rio, estava em sua lista de propina e de Bernardo Bello, bicheiro e ex-presidente da Vila Isabel, acusado por assassinatos no Rio. Ele tinha informações de que alguém do Escritório do Crime poderia ter feito pagamentos ao ex-governador Wilson Witzel durante a campanha de 2018. Queiroz queria saber o nome do contato. E de posse da informação, o ex-assessor de Flávio pretendia, numa tentativa escusa, enterrar a investigação da rachadinha.5

Ao saber do pedido de Queiroz, Vera chamou Julia, companheira de Nóbrega. Ele não podia participar já que estava foragido da Justiça havia quase um ano. Ela era o contato para chegar ao miliciano. Tempos depois, Julia disse a conhecidos que ficou muito irritada quando chegou ao local do encontro e viu Márcia e Gustavo. Ela não fora informada de que a sogra estava com aquelas visitas, o que não colaborou para a situação de Queiroz. Apesar da contrariedade, Julia informou ao marido o que se passava na casa da mãe dele, e Nóbrega chegou a falar com Gustavo, por telefone, para ouvir o pedido de Queiroz. Mas o miliciano não quis entregar a informação.6 Anos depois, Julia tentaria contar a história desse encontro em MG para as autoridades, mas não conseguiu.

Naquele dezembro de 2019, Márcia voltou ao Rio sem a informação pedida por Queiroz. E continuou tentando convencer Nóbrega a ajudar a família. Por isso, foi encontrar Vera e Gustavo alguns dias mais tarde, já na capital carioca, para reiterar os pedidos de Queiroz. Mas enquanto eles estavam se articulando, o Ministério Público queria recuperar o tempo perdido. Então, com todos os dados das quebras de sigilo totalizados, fez um pedido de busca e apreensão e entregou ao juiz Flávio Itabaiana, dias depois do julgamento do STF. Os alvos eram vários endereços da família de Queiroz na capital fluminense, e também os parentes de Cristina, a ex-mulher de Bolsonaro, em Resende.

No dia 18 de dezembro de 2019, a operação pegou todo mundo de surpresa. Ninguém imaginava que alguma coisa desse tipo poderia ocorrer naquela semana, dias antes do Natal. Apesar de Queiroz ter sempre pedido aos parentes que destruíssem as mensagens, ninguém se preocupou com isso. Foi assim que os promotores conseguiram uma das principais provas da investigação: o celular de Márcia Aguiar. Além dos áudios, o telefone dela continha registros da localização do casal por todo o ano de 2019. Esses dados levariam os promotores ao paradeiro de Queiroz em Atibaia.




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