O Diário Oficial registrou no dia 30 de setembro de 1998 a mais nova assessora do então deputado federal Jair Bolsonaro. No currículo, educação até a sexta série do ensino fundamental e o parentesco. Tratava-se de Andrea Siqueira Valle, sua cunhada mais recente, à época com 27 anos.
Naqueles dias,
Andrea nem sequer morava em Brasília ou na base eleitoral do deputado, o Rio de
Janeiro. Ela vivia com os pais e os irmãos no bairro Santa Catarina, em Juiz de
Fora, em Minas Gerais. Foi a primeira de uma lista de funcionários-fantasmas
que só cresceria. Desde que fora viver com Cristina, Bolsonaro passou a usar a
família da nova companheira para um negócio que estava desenvolvendo. De
quebra, ainda ia resolver a vida dos Siqueira Valle.
Meses antes da nomeação da irmã, Cristina aproveitou uma reuniãozinha de família e perguntou a seus pais e irmãos quem gostaria de um cargo no gabinete do Jair. Perguntaram o que era necessário. Bastava o número do CPF, o resto ela resolveria. Ninguém precisava cumprir nenhuma tarefa diária. No “acordo de trabalho”, Cristina explicou que Jair só queria duas coisas: a entrega de grande parte do salário (em alguns casos 90%) todos os meses e uma mãozinha na época da campanha eleitoral. De resto, era aproveitar a mesada sem fazer esforço. Aos poucos os Siqueira Valle foram dizendo sim e entregando o CPF para o Negócio do Jair.
Com o tempo, Cristina levou a proposta a mais parentes. Em 1º de outubro de 1999, Bolsonaro nomeou uma prima da mulher, Juliana Siqueira Guimarães Vargas; sua sogra assumiu no ano seguinte, em 2 de maio de 2000. Foi um período importante para dona Henriqueta, pois mais do que um cargo no gabinete do genro, ela, o marido e os filhos finalmente deixaram de viver de aluguel: Cristina lhes deu uma casa de 135 metros quadrados no bairro Morada da Colina, em Resende. A compra ficou registrada no 2º Ofício de Notas daquela cidade: pelo valor de 48 mil reais, quase 190 mil em 2022. A vendedora Anneli Lobo “declara haver recebido em moeda corrente e legal do país”.1 A expressão “moeda corrente” quer dizer que o pagamento foi feito em espécie, dinheiro vivo.
Quatro dias antes, Bolsonaro adquirira um apartamento de 69 metros quadrados na região sudoeste de Brasília por um total de 75 mil reais, cerca de 300 mil em valores atuais. No cartório, o deputado declarou que o valor foi pago “anteriormente em moeda corrente nacional”.
COM A UNIÃO, em 1998, Cristina se encarregou de organizar a vida financeira de Bolsonaro. Desde o nascimento de Jair Renan, eles moravam num apartamento cujos 190 metros quadrados logo pareceram exíguos para a nova família. Para ela, era preciso consolidar um patrimônio condizente com o tamanho da ambição do casal. E para aumentar a renda, Bolsonaro precisava do faturamento de um segundo mandato, além do seu. A separação de Rogéria havia dividido seus ganhos. Antes, nos corredores do Palácio Pedro Ernesto, não faltava quem suspeitasse que o deputado cobrava o “rachid”, outro apelido da “rachadinha”, dos assessores da primeira mulher. Quando ainda estavam casados, ele costumava até dar expediente no gabinete dela, às sextas-feiras, e atendia o telefone, como se estivesse no comando. Com o divórcio, os dois romperam e Bolsonaro perdeu a ascensão sobre a ex-mulher.
Para evitar novos problemas, Jair necessitava de alguém de sua extrema confiança e a quem ele pudesse domar. Um filho seria perfeito. Flávio, quem sabe, o primogênito. Seu eleitorado ficaria sabendo que ele deixara de apoiar Rogéria e agora o sobrenome seria replicado por um de seus herdeiros. Em determinado momento, o próprio Jair anunciou: “Vou ‘sarneyzar’ o Rio”.2 Óbvia referência à oligarquia política do ex-presidente José Sarney, com diversos familiares na vida pública.
Só que a separação havia provocado rusgas na família. Flávio e Eduardo continuaram morando com a mãe no apartamento de Vila Isabel, enquanto Carlos foi viver com o pai, a madrasta e o irmão caçula. O deputado e os dois filhos que viviam com Rogéria chegaram a passar meses sem conversar. O ex-vereador Ítalo Ciba, amigo de Queiroz, disse que foi num futebolzinho organizado por ele que os quatro, pai e filhos mais velhos, se viram todos pela primeira vez depois do divórcio. Ali voltaram a conversar e se reconciliaram.3
Mesmo feitas as pazes, Flávio, estudante de direito, não quis ficar no meio de uma nova guerra que surgia entre os pais por espaço político. Declinou do convite para disputar uma vaga na Câmara de Vereadores na eleição de 2000. Então Bolsonaro se voltou para o “02”. Na foto 3×4 que Carlos cedeu ao TRE para registrar a candidatura, vê-se um rapaz que ainda vivia o fim da adolescência. Pegava onda com Eduardo na praia da Joatinga, entre São Conrado e a Barra da Tijuca, e curtia os barzinhos da praça Varnhagen ou uma night na boate Terceiro Milênio, já extinta, ou em algum point do New York City Center, Shopping na Barra.
Alto como o pai, loiro como a mãe, Carluxo, apelido de família, era bastante magro e usava um corte de cabelo “tigelinha”, aquele que tem uma franja bem encorpada, comum nos anos 1990. O garoto tinha dezessete anos e foi emancipado pelo pai para concorrer naquela eleição. Na época da campanha, ainda cursando o terceiro ano do ensino médio no Colégio Batista do Rio de Janeiro, ele dividiu o início da carreira política com as apostilas e aulas preparatórias para o vestibular. Os planos do pai deram certo: Carlos teve 16 053 votos e se tornou o vereador mais jovem do Brasil. E Rogéria foi derrotada. Ao denunciar a agressão a um assessor, ela chamou o ex-marido de desequilibrado e queixou-se da disputa em família: “Chegou a colocar o filho (Carlos Bolsonaro), de dezessete anos de idade, para concorrer como vereador, pelo PPB, contra a própria mãe”.4
Logo depois da eleição, Carlos admitiu que iria precisar conciliar a faculdade com o mandato, mas já deixou claro que seguiria a cartilha do pai. Anunciou que iria consultá-lo a cada decisão importante e defendeu as mesmas medidas inconstitucionais e os mesmos preconceitos do pai.5 Declarou-se a favor da pena de morte, da tortura para traficantes de drogas, chamou de “vagabundos” os integrantes do Movimento dos Sem Terra e fez piada da luta pela união civil entre homossexuais. NA POSSE, o vereador disse ao microfone: “Falo não em nome do Partido Progressista, mas em nome do Partido do Papai Bolsonaro”.
Mas na chefia de
gabinete do filho, quem comandava tudo era Cristina, a nova sra. Bolsonaro.
Mal foi empossado, Carlos publicou a primeira lista de nomeações de seus funcionários, e dela constava Gilmar Marques, à época o companheiro de Andrea Siqueira Valle, cunhada de Bolsonaro. Passou batido naquele fevereiro de 2000. O casal vivia em Juiz de Fora e tinha acabado de ter uma filha. Para formalizar a contratação, o comprovante de residência trazia o endereço do apartamento onde Bolsonaro e Cristina viviam no Maracanã. Anos depois, quando confrontado com esses fatos, Marques diria que Cristina lhe ofereceu um emprego, mas ele só lembrava disso.6 Não sabia dizer nada dos colegas, das tarefas, do crachá (que nunca teve), e dos mais óbvios detalhes das atividades de um assessor parlamentar. Era como se tivesse sofrido uma amnésia.
Em 2001, isso não era notícia. Alguns meses depois da nomeação de Marques, chegou a vez de André Siqueira Valle, irmão de Cristina, nomeado em agosto daquele ano. Em novembro saiu o cargo para Marta Valle, cunhada de Cristina, que também vivia em Juiz de Fora. Apenas André deixou Resende e foi morar com a irmã na capital. Só que o trabalho dele não era exatamente como assessor, mas como cabo eleitoral: distribuía jornalzinho da família Bolsonaro na época de campanha.
No ano seguinte, outra campanha eleitoral, mais um filho de Jair na disputa. Flávio se convencera a conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio. A partir de 2003, Bolsonaro coordenava três gabinetes e tinha à disposição, entre o dele e os dos filhos, mais de sessenta nomeações. Eduardo, o “03”, ainda era adolescente, mas seguiria o caminho anos depois, em 2015.
Outra novidade, em novembro de 2002, foi a mudança de endereço de Jair e Cristina. O casal deixou a Zona Norte para trás e comprou uma casa com piscina na Barra da Tijuca, no mesmo condomínio de Zico, ídolo do Flamengo. A escritura registra que o imóvel saiu por 500 mil reais, ainda que o valor avaliado fosse de quase 900 mil reais. Dela não consta como os vendedores receberam parte do valor — 90 mil reais.
Pouco depois da mudança, Cristina chamou um ex-funcionário da campanha de Flávio para ajudar na organização da nova casa. Era Marcelo Luiz Nogueira dos Santos, um homem negro e gay, justo o perfil com o qual Bolsonaro costuma fazer piadas de cunho ofensivo. Os dois, porém, mantinham uma relação cordial e ele passaria a conviver com Jair e Cristina por quase seis anos dentro da mansão da Barra. “Marcelão”, como foi apelidado, ficou impressionado com o tamanho e a qualidade do imóvel. Ao limpar o escritório e organizar alguns papéis, viu a escritura e comentou com Cristina que o valor parecia uma pechincha, dadas as características da casa. “É que sempre tem um por fora, né?”, ela explicou. Atualmente a casa vale quase 3 milhões de reais.
O casal passou a organizar o mandato de Flávio, outro novato na política. Ao chegar na Alerj, ele ainda cursava direito. O pai designou uma amiga de Cristina, Mariana Mota, como sua chefe de gabinete. Mas o esquema todo tinha um comando central: Jair.
Obedecendo à lógica do “sempre tem um por fora”, Jair e Cristina usaram o gabinete de Flávio para pagar o salário de Marcelo Nogueira como empregado doméstico. No papel, ele foi nomeado assessor de Flávio na Alerj em fevereiro de 2003. Na prática, cuidava da casa de Jair e Cristina, e também do filho. Situação que permaneceu até 2007.
Marcelo lembra exatamente quando o convidaram a integrar o esquema. Ele havia ido a Angra, com Cristina e Jair, para passar as festas de fim de ano de 2002. Naquele tempo ele vivia de bicos e torcia por uma proposta de trabalho fixo. Aquele fim de semana oficializou o trabalho com o casal, então temporário. Ela o chamou para uma caminhada na beira da praia e começou a explicar que queria contratá-lo para cuidar da casa e de Jair Renan. Depois, disse que havia dois detalhes: no papel, ele ia aparecer como funcionário de Flávio na Alerj. Mas não ia ficar com todo o valor do contracheque: teria que sacar e entregar para ela cerca de 80% do total. Nos anos de 2003 e 2004, o salário bruto de Marcelo Nogueira como “assessor” era de 1,7 mil reais. A partir de 2005, passou para 4,25 mil reais, e no ano seguinte aumentou para 4,4 mil reais. Ao todo, em mais de quatro anos na Alerj, ele recebeu em salário bruto 176,7 mil reais, dos quais devolveu a maior parte. Um valor de quase 400 mil, em 2022.
A confiança da patroa no novo funcionário era tão grande que, além de admitir pagamentos escusos, ela lhe entregava maços de dinheiro vivo para a compra de móveis e objetos para a nova casa na Barra.
Nos anos 2000, e mesmo antes, a engrenagem do esquema funcionava devido à falta de transparência. Saber o nome dos assessores de cada parlamentar no Congresso Nacional ou mesmo nas assembleias e câmaras municipais era, e de certo modo ainda é, tarefa de investigação. As leis de transparência iriam demorar vários anos para existir no Brasil. A norma que estabeleceu os portais de divulgação de dados públicos é de 2009, e a que determinou a divulgação de salários de servidores estatais só saiu em 2011. Mas lá atrás, no início dos anos 2000, nenhuma dessas informações estava disponível de maneira organizada. A internet engatinhava. Para saber dados sobre funcionários e salários, o cidadão tinha de ler o Diário Oficial todo dia, coisa que eu e alguns colegas fizemos dezessete anos depois.
EM CASA, com o tempo e o crescimento do patrimônio, o choque entre as personalidades de Jair e Cristina começava a se fazer sentir. Quem conhece o capitão sabe que uma de suas manias é dar apelidos grosseiros a amigos e familiares. À mulher, coube “Cri-cri”, pelas intermináveis discussões entre os dois. André, o cunhado baixinho e um pouco tímido, era “Camundongo”. Nem os sogros foram poupados. Após uma viagem a Manaus, Bolsonaro mandou a seu José a foto de uma anta com uma mensagem: “Encontrei um parente seu aqui. Saudações”. Já a sogra, Henriqueta, ganhou a imagem de uma cobra com o texto: “Menos peçonhenta que você”.
Bolsonaro ria, só que ninguém mais achava graça.
André seguia a rotina combinada, mas não gostava de entregar tanto dinheiro ao cunhado. Passou a desabafar com amigos, em sigilo, que aquilo era errado. E observou com atenção algumas caixas de dinheiro vivo que o casal guardava em casa. Certa ocasião, contou: “Pô, você não tem ideia como que é. Chega dinheiro… Você só vê o Jair destruindo pacotão de dinheiro. ‘Toma, toma, toma.’ Um monte de caixa de dinheiro lá [na casa]. Você fica doidinho”. Quem frequentava aquela casa não conseguia ignorar tanta grana. Marcelo Nogueira também viu muitas notas por lá. O casal mantinha um cofre no quarto, bem abastecido quando das campanhas eleitorais.
Aquela dinheirama aguçou em André a sensação de que a mesada era uma merreca. E ele não era o único a ter essa impressão. A irmã Andrea, já separada de Gilmar e de volta a Resende, também reclamava. “Injusto. Empresto meu nome lá e só me dá um pouquinho. O salário é bem maior do que isso”, ela dizia.
No Negócio do Jair, existiam algumas regras. Se no princípio era preciso devolver o percentual combinado, com o tempo Cristina sugeriu que também os benefícios deveriam ser restituídos — assim, além do salário, era preciso entregar a maior parte do vale-alimentação e do auxílio-educação. E até da restituição do imposto de renda,7 pois, afinal, era parte do salário que retornava.
Cada integrante tinha que sacar o salário todo mês. O ideal era que o valor não fosse retirado integralmente, mas fracionado em saques de quinhentos reais ou mil reais. Anos mais tarde, uma análise das contas bancárias dos funcionários-fantasmas permitiu verificar um curioso padrão de saques de quinhentos reais que se repetiam ao longo do mês até beirar, em média, 90% do salário recebido.8 Todos esses saques mensais no decorrer do tempo se transformaram em uma montanha de dinheiro vivo. Anos depois, o MP iria calcular um montante de 4 milhões de reais nas retiradas dos fantasmas da família Siqueira Valle lotados no gabinete de Flávio.9 Os valores foram sacados durante o tempo em que as pessoas estiveram nomeadas — variando entre um e dez anos —, abrangendo o período de 2007 a 2018.
Depois dos saques, os valores eram entregues a pessoas de confiança. Em parte para a própria Cristina, que em alguns casos retinha os cartões bancários de parte dos familiares.10 Todo mês ela ia a Resende junto com Marcelo para a coleta.11 Ficava com os cartões da irmã Andrea e do pai: “Ela não confiava neles”, segundo Marcelo Nogueira. Mariana Mota,12 no gabinete de Flávio, recebia outro montante dos valores arrecadados.
E aquele tanto de dinheiro foi se transformando em imóveis: a partir de 2000, Cristina e Jair compraram catorze, entre apartamentos, casas e terrenos. Desses, cinco foram pagos em dinheiro vivo. O casal também adquiriu um pequeno barco, ações e carros. A prática foi adotada pela família. O estudante Carlos Bolsonaro resolveu pagar em espécie 150 mil reais, em 2003, por um apartamento na Tijuca. Carluxo e Cristina também alugaram cofres em bancos para guardar joias e dinheiro vivo.
Mas a ascensão do casal motivou o início da crise que levaria os dois ao rompimento. Ele adorava passar o tempo livre na casa em Angra, ela detestava. Certa vez Cristina queria ir à Riviera Maya, perto de Cancún, no México, e se irritou com as negativas do companheiro: “Jair, você é muito jacu. Só quer ficar em Mambucaba”. Conseguiu convencê-lo e registrou imagens de mergulhos em cavernas. Outro atrito veio quando ela exigiu uma suíte mais próxima à praia para ter privacidade em Angra. Bolsonaro cedeu. Tempos depois, outra briga quando Cristina cismou em comprar um iate. Ele estava satisfeito com o barco que tinha para pescar. “Tem dinheiro para isso”, Cristina dizia.
O casal já esbanjava. Eram tantos bens que Bolsonaro nem declarou tudo quando foi disputar a reeleição. Ele chegou a omitir dez bens da declaração ao Tribunal Superior Eleitoral em 2006.13 O principal era justamente a casa da Barra, à época já avaliada em 1,6 milhão de reais. O enriquecimento era evidente e incomodava quem estava perto. Em determinado momento, o cunhado que passava temporadas com o casal cansou de receber apenas uma mesada.
O período de André no gabinete de Carlos acabou em 2005. Ele ficou um ano sem ser nomeado e só voltou em fevereiro de 2006. Quando entrou novembro daquele ano, ocorreu uma troca. No papel, André passou para o gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Já a irmã Andrea foi oficialmente para seu lugar, como assessora na Câmara Municipal. O salário bruto dele na Câmara dos Deputados era de 6 mil reais. Um ano se passou até que ele acabou exonerado em outubro de 2007. Mas a saída não foi trivial ou amistosa. Nos dois meses anteriores à exoneração, André não devolveu o combinado e Bolsonaro quis tirar satisfação. André reclamou do valor da mesada, Bolsonaro não quis nem saber: “Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: ‘Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo’”, contou Andrea.14
OS MESES SE PASSARAM e os ânimos não arrefeceram. Brigas com o cunhado. Brigas por dinheiro. O casamento por um fio. Ele descobriu que Cristina tinha comprado um apartamento na Barra sem avisá-lo. Ele sentia ciúme dela. Ela não confiava mais nele. Para completar, Flávio já estava farto de ser controlado. Uma coisa era obedecer ao pai, outra, era ter a madrasta cuidando de seus funcionários e administrando seu dinheiro.
Cristina abrira um escritório de advocacia, Valle Advogados, no prédio ao lado da Câmara Municipal. Atuava em várias frentes: causas gerais, atendimento a militares e pensionistas, auxílio nos pagamentos de seguro Dpvat (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres). E aquele passou a ser um ponto de entrega da rachadinha.
O casal brigava tanto que Jair começou a estender suas temporadas em Brasília. E Cristina passou a sair à noite com amigos. Em certas ocasiões, para provocá-lo, ela ia para boates e, mesmo sabendo que ele a esperava do lado de fora, seguia na pista de dança. A crise foi escalando. Começaram os boatos sobre envolvimentos de ambos com terceiros. Havia algum tempo, conhecidos em Brasília falavam da proximidade do deputado com uma assessora, Michelle, que trabalhava no gabinete. Desconfiada, Cristina pagou um detetive e obteve a confirmação do caso. Bolsonaro, por seu lado, também contratou alguém para segui-la e descobriu: ela estava vivendo um relacionamento com um de seus motoristas.
Corria o mês de julho de 2007 quando Bolsonaro deu um basta no casamento e o assunto logo se espalhou entre os demais membros da família e até entre os funcionários do clã. Os dias se passaram e, apesar das brigas, Cristina ainda fez uma tentativa de reconciliação. Em 15 de julho, escreveu uma carta para o marido, que havia saído de casa para viver com Michelle. Em 2022, uma fonte me entregou uma cópia de duas páginas. Outras duas permanecem guardadas por essa pessoa em sigilo.
Jair Messias Bolsonaro
Desde já, eu agradeço porque sei que ele me ama e eu o amo e que tudo vai dar certo. Ele vai voltar melhor e eu vou ser melhor. Ele vai voltar melhor e ele me ama muito e eu também. Ele quer voltar e vai voltar. Ele está voltando e tudo vai ser bem melhor. Quero ele de volta para minha vida, uma vida melhor. Ele vai me amar muito e tudo vai ser diferente. Vou domá-lo com o meu carisma e a minha beleza. Ele vai se casar comigo como nos meus sonhos. Tudo que está acontecendo é para que fique melhor. Nós não vamos nos desgrudar. Confiaremos um no outro. Nos amamos.
Valle Reguladora vai se legalizar e se livrar daquela pessoa. Vamos ter muitos e muitos processos chegando. A minha meta até o fim do ano é de mil processos mês. Vou ganhar 50 mil reais por mês. Vou vender esta casa muito bem. Vou comprar a casa dos meus sonhos. A Valle Advogados vai dar muito dinheiro. O meu corpo e saúde vão estar sempre assim lindos e com saúde. O Dpvat vai dar muito dinheiro.
Depois, em outros trechos, a carta era mais melancólica e direta a Jair, abandonando o tom de “oração”:
Não tenho mais vontade de viver. Foram muitas as injustiças e ingratidões de sua parte. Nunca fiz nada que pudesse desabonar a minha conduta com você e nossa família. O primeiro ponto de tudo começou: Carlos. Por 2 anos, eu o amei, amparei e socorri todos os seus medos e em troca tive o título de sedutora de menor. Ah como dói, dói muito, fala para ele que meu amor era sincero e puro. Não pornográfico e nunca foi e se eu desabafei foi porque ele me passou confiança para me ajudar com você, Jair. Mas nada adiantou. […]
Segundo, o dinheiro nunca foi a minha intenção lesar ninguém e sim crescer o patrimônio da família. Presto conta de tudo, pois não tirei nada de vocês. Sou honesta e tenho orgulho disso […] podem ficar com tudo.
Terceiro, o bendito flat comprei sem sua autorização e fiquei com muito medo e tinha razão. Mas você tinha mudado, não queria mais investir mais nada. Errei. Perdão.
Bolsonaro não se sensibilizou. Terminava o casamento e começava a guerra.
BOLSONARO VIVEU COM CRISTINA por quase uma década, mas nunca formalizou a união. Os imóveis que acumularam somavam mais de 3 milhões de reais. Considerando os carros, as aplicações e as joias, o total ultrapassava 4 milhões de reais.15 Ele, porém, seguia a vida ignorando a ex. Fez um pacto antenupcial com a assessora parlamentar Michelle de Paula Firmo Reinaldo cerca de dois meses depois de sair da casa em que vivia com Cristina. Nesse meio-tempo, a ex-mulher ainda lamentava o fim da relação e desabafou com Mariana Mota, a quem escreveu uma carta em 7 de agosto:
Querida e amada Mariana
Está muito difícil falar e também não quero falar. Resolvi lhe escrever, espero que entenda ou não, mas não importa, o que importa é o que quero lhe dizer: Perdão por tudo, por palavras, por atitudes, por ações e o que mais possa ser perdoado. Eu te perdoo de tudo também pois eu sei que seria o que você falaria. Lhe agradeço por tudo, mas preciso continuar minha luta sozinha e lamento pelo Renan e as crianças, mas tá difícil, você deve saber me conhecendo. E não dá mais para escrever, beijos. Fique na paz.
Alguns dias depois, ainda parecendo bastante deprimida, Cristina escreveu uma carta para o filho Jair Renan, em 10 de setembro de 2007:
Querido filho, você é o que de mais precioso que a vida me deu. Lindo, com saúde, lindo, feliz, e com Deus no coração. Agradeço todos os dias por você, filho. Espero que você se torne um homem feliz, realizado, bem-sucedido e amado. Não gostaria de fazer filhos, mas está muito difícil e não quero ser um peso para você. Quero ser uma coisa boa na sua vida. Te amo tanto, tanto, mais que o infinito. Você é a minha vidinha. Estarei sempre com você em meu pensamento. Sua mãe, Ana Cristina. Te amo muito.
O tom seria para mexer com Bolsonaro, mas o capitão já estava em outra.
JAIR E MICHELLE FORMALIZARAM o casamento em 28 de novembro de 2007, num cartório da avenida W3 Sul, em Brasília. No dia seguinte partiram para Foz do Iguaçu. O noivo ainda botou os custos (1,7 mil reais) na verba da cota parlamentar e informou à Câmara que estaria ausente por sete dias devido às “núpcias”.16 Aos 52 anos, o deputado ia para o terceiro casamento. De novo uma bela assessora, magra, de cabelos claros e com 25 anos. Mesma idade de Cristina quando Bolsonaro a conheceu. Demonstrando certa preocupação financeira, porém, ele se casou em regime de separação total de bens.
Bolsonaro festejava e refazia a vida com Michelle em Brasília. No Rio, Cristina vivia em fúria. Uma fúria que culminou em 26 de outubro de 2007, quando ela foi a uma agência do Banco do Brasil onde tinha um cofre havia dois anos. Sua chave não abriu o cofre e chamaram Jalmir Araújo de Azevedo, especializado em cofres bancários.
Quem viu a cena conta que, se Cristina já estava possessa, a situação só piorou depois que o cofre foi aberto: “Quando viu que não tinha nada lá, a mulher do Bolsonaro disse que foi roubada e chamou todo mundo de ladrão. Ela endoideceu e começou a gritar que o Bolsonaro, mancomunado com o Banco do Brasil, foi lá e tirou tudo dela”, contou o chaveiro Azevedo, que não esqueceu o episódio. Até porque Cristina não o remunerou pelo trabalho.17
Cristina registrou
um boletim de ocorrência na 5ª Delegacia de Polícia do Rio. Declarou que havia
200 mil reais em espécie no cofre, além de 600 mil em joias e 30 mil dólares.
Um total de mais de 2 milhões de reais em 2022. Naquele dia, quando chegou à
casa da Barra, ela gritava a quem quisesse ouvir que Bolsonaro tinha roubado
suas coisas. A principal reclamação era sobre as joias. Mas eles tinham muito
mais para dividir: a casa, os apartamentos, terrenos, carros e dinheiro. Era
muita coisa e ela não estava disposta a ficar sem nada só porque não estavam
casados de papel passado.
Cristina sabia como proceder, e assim a guarda do filho e a divisão dos bens foram parar na 1ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no dia 18 de abril de 2008. Cristina queria parte do patrimônio que foi construído “ombro a ombro”. Ela sustentou que “participou tenazmente do acréscimo patrimonial” do companheiro e o tempo todo “prestou contínua assessoria em todos os projetos políticos” de Bolsonaro.18
Na ação de guarda, a advogada começou por cobrar uma boa pensão para custear as despesas do filho do casal, coisa de 14,5 mil reais. Disse que Bolsonaro tinha uma “próspera condição financeira” e uma renda de 100 mil reais — valor incompatível com o que era declarado formalmente. O salário bruto de Bolsonaro na Câmara era de quase 27 mil reais e ele ganhava outros 8,6 mil reais como militar da reserva. Na soma, 36 mil reais. Cristina só não explicou ao juiz seu cálculo para indicar a renda de Bolsonaro e a origem do restante dos ganhos do companheiro.
Apesar da crise do
casal, Cristina ainda se manteve como chefe de gabinete de Carlos outros nove
meses após a separação. Mas a relação com os demais membros da família Bolsonaro
foi ficando insustentável e ela finalmente deixou o cargo no gabinete do enteado
em 4 de abril de 2008, dias antes do protocolo da ação de separação de Jair. E
assim que ela saiu por uma porta, um primo seu entrou por outra: Guilherme de
Siqueira Hudson, filho do coronel Guilherme Henrique dos Santos Hudson,
ex-colega de Bolsonaro no Exército. Mesmo com todas as brigas do casal, os parentes
dela não deixaram de frequentar as listas de funcionários dos gabinetes dos
Bolsonaro, situação que perdurou por anos.
Era preciso que alguém fizesse a gestão dos servidores-fantasmas e de todo o resto no gabinete de Carlos. Naquele momento, porém, o primo de Cristina era apenas um jovem estudante de direito. Na prática, a função de chefe era exercida por Jorge Fernandes, outro militar da confiança de Bolsonaro. Guilherme parecia estar ali por causa do pai, o coronel Guilherme Hudson, que passou a fazer o recolhimento dos valores dos salários junto à família. Ainda que não fosse nomeado, o coronel Hudson andava por todo lado se apresentando como assessor da família Bolsonaro. Até escrevia à seção de cartas de O Globo defendendo as pautas do clã, em especial contra os radares para multar motoristas que excedem a velocidade ou cruzam o sinal vermelho.
Velho conhecido do capitão, de quem foi contemporâneo na Academia Militar das Agulhas Negras, o coronel Hudson lembra até hoje de quando a turma apelidou Jair de “Cavalão” devido ao “vigor físico” nas provas de pentatlo. Hudson seguiria a carreira no Exército até 1998, ano em que Bolsonaro se uniu a Cristina. Depois ele fixou residência em Resende e os dois retomaram o contato pela nova proximidade estabelecida. A separação do casal fez o coronel assumir aquela ponta do negócio. Ele começou a recolher o percentual dos salários da família. Todo mês levava Andrea para fazer os saques no banco. Passou também a centralizar as declarações de imposto de renda do grupo, de modo que fossem alinhadas.
SE O CLIMA ENTRE Cristina e Bolsonaro era ruim na separação, com o processo na vara de família as coisas ficaram especialmente horrorosas. Ela vivia tensa, tinha medo das reações do ex, considerava-o violento. Declarou tudo isso ao tribunal no processo de separação. Os dois ainda discutiam muito quando se encontravam. Com frequência, em meio aos gritos, louças, vasos e outros objetos eram quebrados.
Tempos depois, Cristina desabafou com amigos que havia sido ameaçada por Jair, que teria posto a prêmio a cabeça da ex: 50 mil reais. A um desses amigos, o enfermeiro Fernando Xavier, que vivia em Oslo, Cristina contou ter pagado por proteção. Preocupada, em 2007 ela enviou esse valor, os 50 mil reais, a um policial da Divisão Antissequestro, para garantir que nada lhe acontecesse.
Depois de muito estresse, Cristina e Bolsonaro chegaram a um acordo em 1º de junho de 2008. Dividiram os bens, e a guarda de Jair Renan coube a Cristina. O deputado ficou com a mansão na Barra, os carros, um apartamento em Brasília, o escritório político em Bento Ribeiro e a casa de Mambucaba, em Angra dos Reis. Ela levou os valiosos terrenos e a casa onde moravam seus pais em Resende, as salas comerciais do centro do Rio e um apartamento na Barra. Bolsonaro concordou com uma pensão de 10% de seu salário líquido, algo próximo de 2,6 mil reais.
Já separada, ela
passou a frequentar chats de namoro e começou a se relacionar com um norueguês.
Depois de algum tempo foi morar em Oslo. Partiu em julho de 2009. Mas para
bancar a vida em euro ela precisou voltar a trabalhar. Desprovida de valores em
espécie e das joias guardadas no cofre, ela estava sem liquidez. Acabou
trabalhando como babá na Europa. Foram quase dois anos vivendo com dinheiro
contado.
Quando Cristina foi para a Noruega, Jair Renan voltou a morar com o pai, na casa no Vivendas da Barra. A convivência com a nova família não foi fácil, ele não conseguia se entender com a madrasta, Michelle. Cristina sabia dos conflitos e usava a situação para espezinhar Bolsonaro. Com o tempo, passou a dizer que levaria o filho para a Europa.
Entre idas e vindas, em 2011 ela voltou ao país para ver o filho. Bolsonaro, atento à intenção dela de tentar convencer o filho a ir morar na Europa, entrou com uma ação de guarda e pediu o fim do pagamento da pensão para Cristina. Nos últimos dois anos ele continuava pagando a pensão, mesmo que Jair Renan vivesse com ele.
Só que Cristina seguia insatisfeita com os termos da divisão de bens e eles não chegaram a um acordo. E ao voltar para a Noruega, em julho de 2011, ela decidiu levar o filho. Para embarcar sem o consentimento do pai, Cristina foi à PF e fez um passaporte com a primeira certidão de nascimento do menino, na qual não constava o nome do capitão. Munida desse passaporte, ela tentou embarcar com Jair Renan. O plano estava armado, Cristina inclusive deixou pessoas esperando no Galeão caso ocorresse algum problema e o filho tivesse que voltar. O garoto tinha doze anos.
Bolsonaro ficou enlouquecido quando soube pelo chefe de gabinete, major Jorge Francisco, que o filho viajara, e ligou para Cristina. Na versão dele, Cristina teria dito que era “mais esperta do que ele” por ter conseguido ludibriá-lo; em seguida, ele teria falado com o filho, que lhe teria dito que queria voltar ao Brasil. Por fim, a conversa teria terminado com um ultimato: “Realmente ele quer voltar, mas antes precisamos negociar entre outras coisas a retirada de uma ação de guarda e extinção de pensão, um compromisso junto ao meu advogado para o Renan passar férias no exterior e a devolução das joias de família que você furtou por ocasião da separação”.
“Quanto você acha que valem as suas joias?”
“Inestimável.”
Furioso, Bolsonaro denunciou a ex-mulher em todas as instâncias que conseguiu. Primeiro, registrou um boletim de ocorrência no dia 26 de julho de 2011 e, seis dias depois, levou o caso à Polícia Federal e ainda mobilizou o Itamaraty em Brasília para atuar no que ele considerava ser um sequestro do filho. Não faz parte das funções do Ministério das Relações Exteriores interferir em assuntos particulares ou de família, mas não foi o que aconteceu. Como vice-cônsul do Brasil na Noruega, o diplomata Mateus Henrique Zóqui foi acionado e telefonou para Cristina. Ela deu sua versão da história, dizendo que fora “ameaçada de morte” pelo ex-marido e por isso havia deixado o Brasil. Estava até pensando em pedir asilo. Telegramas do Itamaraty registram esse relato.19
A versão de Jair Bolsonaro era diferente: a ex-mulher teria fugido ilegalmente do país com o filho dos dois e exigia certas condições para devolver o menino. Um impasse se fez. O ex-casal ficou brigando à distância ao longo de alguns dias. Bolsonaro então resolveu encontrar os advogados da ex-mulher e no dia 2 de agosto de 2011, acompanhado do advogado Antônio Mofato e do amigo Waldir Ferraz, ele foi ao escritório do advogado Paulo Faia e assinou um acordo.
No documento, extremamente desfavorável ao deputado, ele desistia da guarda, das denúncias que fez contra a mulher, mantinha a pensão, garantia recursos para Renan viajar à Noruega nas férias e ainda concordava em pagar 500 mil reais por um apartamento que ficaria em nome do garoto. Bolsonaro deu um cheque de 40 mil reais como sinal. Renan voltou ao Brasil no dia 5 de agosto. No dia seguinte Bolsonaro sustou o cheque e avisou aos proprietários o motivo da desistência da compra do apartamento no Barra Beach Residência. Ele disse que se sentira coagido a efetuar a compra. O ex-casal ainda ficou meses brigando na Justiça.
O acordo entre os dois só foi assinado em 10 de novembro de 2011. Bolsonaro ficou com a guarda do filho e se comprometeu a fazer uma poupança em nome dele até o garoto completar dezoito anos. Todo mês o pai teria de depositar 3% de seu salário líquido; e ele também assumiu o compromisso de custear 5 mil dólares por ano para que Cristina pudesse vir ao Brasil ver o filho, proibido de viajar até os quinze anos.
Fora do papel, outros acordos foram feitos. Em um de seus retornos à Noruega, ela desembarcou com diversas joias, além de muito dinheiro. Por essa época, conseguiu vender um conjunto de cinco terrenos e obteve 1,9 milhão de reais. Lá na Europa, também mudou de vida. Comprou duas casas e ajudou no negócio do novo marido, Jan Raymond Hansen.
O casamento de Jair e Cristina terminou, mas o Negócio do Jair seguiu, inclusive com os familiares dela que permaneciam como funcionários-fantasmas nos gabinetes.
Cristina perdeu o
posto de sócia e companheira de Jair Bolsonaro em tudo. Outras pessoas iriam
dividir o papel antes exercido apenas por ela. Sua saída de cena também
coincidiu com o período em que Flávio ascendeu nos negócios. O que ele
registrou para o Tribunal Regional Eleitoral do Rio, ao se candidatar em 2002,
foi um Gol 1.0.
Nas duas décadas
seguintes, o parlamentar negociaria vinte imóveis. Na disputa de poder que já
se delineava, o primogênito ia crescer e, com ele, Fabrício Queiroz.
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