segunda-feira, 17 de junho de 2024

A difusão global da produção e o conceito de imperialismo


Prabhat Patnaik [*]
resistir.info/

Tem-se registado uma significativa difusão da produção na economia mundial. Muitos chamam a este fenômeno uma mudança de uma economia mundial liderada pelos EUA para uma "economia mundial multipolar", mas independentemente do que se pense desta descrição, o facto da difusão é indubitável. Em 1994, por exemplo, os países do G-7 (EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Japão, Itália e Canadá) produziam 45,3 por cento da produção mundial, enquanto os países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, juntamente com os novos membros Irão, Emirados Árabes Unidos, Egito e Etiópia) produziam 18,9 por cento; em 2022, no entanto, os rácios passaram a ser de 29,3 e 35,2, respetivamente. (Estes são números do Banco Mundial citados pelo economista Jeffrey Sachs).

Mesmo se considerarmos um grupo um pouco maior, nomeadamente, os EUA, o Reino Unido, o Canadá, a UE, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia, a sua quota na produção mundial caiu de 56% em 1994 para 39,5% em 2022. A recusa dos EUA em reconhecer as ramificações desta difusão e a sua tentativa de manter o poder de que gozavam sobre o mundo nos velhos tempos torna-os extremamente agressivos em relação à Rússia, à China, ao Irão e a outros países; na verdade, a sua agressividade está a empurrar o mundo para perigosos confrontos militares.

Esta difusão da produção foi, sem dúvida, amplamente favorecida pela emergência do socialismo. Não só o facto da descolonização em si foi ajudado pela existência do socialismo, como também a construção de competências internas, de capacidades tecnológicas, de infra-estruturas e de capacidade produtiva nas sociedades pós-coloniais ocorreu inicialmente sob a égide de regimes dirigistas que só se sustentaram contra a hostilidade ocidental graças a uma ajuda soviética significativa; mais tarde, é claro, após o colapso do socialismo na União Soviética e na Europa de Leste e o fim do dirigismo no Terceiro Mundo, este processo de difusão foi levado por diante por fluxos internacionais de capital na produção que foram facilitados pela ordem global neoliberal, mas os pré-requisitos para esses fluxos tinham sido, em muitos casos importantes, criados pelos regimes dirigistas. A difusão da produção que está a ocorrer atualmente para países fora do bloco liderado pelos EUA verifica-se sob a égide do capitalismo (a China é, obviamente, um caso à parte).

A questão que se coloca é:   em que sentido podemos falar de imperialismo no contexto atual? O termo imperialismo tem sido associado a uma dicotomia na economia mundial, entre uma metrópole desenvolvida e uma periferia subdesenvolvida; se esta dicotomia está a ser obliterada, se os países que pertenciam à periferia estão agora a registar taxas de crescimento da produção ainda mais rápidas do que os próprios países metropolitanos, então como podemos ainda falar de imperialismo? A realidade parece, pelo contrário, apontar para uma "convergência" entre países, em que os países que pertenciam ao Sul global estão agora a alcançar os países do Norte global e, o que é mais importante, estão a fazê-lo (com exceção da China) sob o próprio modo de produção capitalista. O capitalismo já não é o culpado que está a perpetuar uma divisão do mundo num segmento desenvolvido e num segmento subdesenvolvido; já não pode, portanto, ser acusado de imperialismo. Coloca-se a questão: será isto correto?

Em primeiro lugar, se a difusão é incontestável, falar de "convergência" é um pouco exagerado. Até porque o próprio fenômeno de difusão não deve ser exagerado:   os países que assistiram a essa difusão são ainda pouco numerosos e muitos deles podem vir a sofrer uma reviravolta nos próximos tempos, porque a crise do neoliberalismo os apanha em armadilhas de endividamento que implicam "austeridade fiscal", deflação interna e, portanto, estagnação e recessão econômica. A história é um amplo testemunho de tais reviravoltas, que têm sido particularmente comuns nos países ricos em minerais. Myanmar é um exemplo clássico de um país que, em tempos, foi considerado como estando no limiar da prosperidade, mas que atualmente se encontra entre os "países menos desenvolvidos". Na nossa própria vizinhança, vemos países a regredir devido ao peso da dívida externa.

A segunda razão pela qual a "convergência" está fora de questão reside precisamente no imperialismo. Para o constatar, é preciso notar um segundo fenômeno que caracteriza a economia mundial, mas que, em vez de receber a atenção que tão obviamente merece, procura ser camuflado por organizações como o Banco Mundial, que apenas enfatizam o facto da difusão. Este consiste no facto de que, durante a era neoliberal, quando houve uma difusão de atividades do Norte global para o Sul global sob a égide do capitalismo, e este último apresentou, em média, uma taxa de crescimento do PIB mais elevada do que o primeiro, houve simultaneamente um aumento da extensão da privação nutricional neste último; e se a privação nutricional for considerada como um reflexo da privação global, para a qual existem muitas provas nos níveis de rendimento do Sul global, então houve um aumento da extensão da pobreza absoluta. Não há dúvida de que as pessoas do Sul beneficiaram das melhores estradas, eletricidade e outras infra-estruturas que foram construídas; mas o seu consumo privado sofreu precisamente durante o período em que o socialismo e os regimes dirigistas relativamente autónomos apoiados pelo socialismo entraram em colapso e a hegemonia do capitalismo neoliberal se estabeleceu na economia mundial.

Postular a "convergência" é portanto uma leitura equivocada da situação; tudo o que se pode dizer é que a linha divisória que existia no mundo capitalista entre a metrópole e a periferia agora se deslocou geograficamente para dentro da própria periferia. A grande burguesia e a elite do Sul global agora encontram-se do mesmo lado da linha divisória ao lado do capital metropolitano. Já não se encontra do mesmo lado que os povos do Sul global, como foi geralmente o caso durante a luta anti-colonial.

No entanto, o termo imperialismo nunca pretendeu referir-se a uma divisão geográfica; referia-se à coerção exercida pelo modo de produção capitalista sobre os seus arredores. Por outras palavras, o seu ponto de partida foi sempre a economia política e não as fronteiras geográficas. Vale a pena recapitular alguns pontos desta economia política.

O modo de produção capitalista atingiu a maioridade com a revolução industrial que ocorreu na indústria têxtil do algodão na Grã-Bretanha. Mas a Grã-Bretanha não pode cultivar algodão em bruto. A própria maturidade do modo de produção capitalista assentou, portanto, no facto de ter acesso a toda uma gama de produtos primários que não podem ser cultivados na sua base de origem, nem de todo, nem em quantidades suficientes, nem durante todo o ano; em vez disso, são tipicamente cultivados por milhões de camponeses e pequenos produtores em regiões tropicais e semi-tropicais do mundo que são, e têm sido historicamente, densamente povoadas. Estas regiões são, em termos gerais, co-terminais com a periferia; e mesmo quando o capitalismo se espalha para estas regiões, tanto este capitalismo local como o capitalismo da metrópole continuam a depender da obtenção de uma oferta crescente de uma série de mercadorias primárias destes milhões de produtores não-capitalistas, a preços que não só não aumentam, mas que, na verdade, têm mostrado um declínio absoluto em termos de unidade de dólar durante décadas.

Muito embora o valor de troca destas mercadorias seja relativamente baixo, o que é um legado do drástico esmagamento que tem sido imposto aos pequenos produtores destas commodities ao longo dos anos e que cria a impressão totalmente falsa de que estas mercadorias são muito pouco importantes para o sistema, o capitalismo simplesmente não pode dispensá-las como valores de uso. Ora, a obtenção dos fornecimentos necessários de tais mercadorias, especialmente de produtos agrícolas tropicais e semi-tropicais, a partir de uma massa de terra que já está mais ou menos plenamente utilizada, exigiria pouca coerção se os pequenos produtores aí localizados empreendessem práticas e inovações de "aumento da terra" ("land-augmenting") (isto é, de aumento do rendimento da terra). Mas tais inovações e práticas, quer se trate de irrigação, quer de investigação e popularização de variedades de sementes de elevado rendimento, exigem normalmente um esforço substancial do Estado, que o capitalismo, especialmente o capitalismo neoliberal, desaprova. Não quer que o Estado se envolva em qualquer atividade que promova os interesses de alguém que não seja o capital internacional e os seus aliados locais, a oligarquia empresarial-financeira do próprio Sul global. Não quer, certamente, que o Estado promova os interesses dos camponeses e dos pequenos produtores, razão pela qual as medidas de "aumento da terra" são evitadas e a exigências de fornecimentos de commodities primárias são obtidas através da compressão dos rendimentos locais e, consequentemente, da procura local desses bens, dentro do Sul global. Tal compressão é impossível sem, no mínimo, uma coerção implícita.

O declínio da produção de cereais alimentares per capita no Sul global e o declínio ainda mais acentuado da disponibilidade de cereais alimentares per capita (devido ao desvio, nos últimos anos, de cereais alimentares para biocombustíveis) são uma consequência desta coação, da qual a privação nutricional observada é uma manifestação. Por conseguinte, a difusão da produção para o Sul global não elimina de forma alguma o fenômeno do imperialismo.


16/Junho/2024

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

Este artigo encontra-se em resistir.info


 


Nenhum comentário:

Postar um comentário