quarta-feira, 12 de junho de 2024

A ELITE DO ATRASO - da escravidão à lava jato ( gota 04 - "b" )



Os conflitos de classe do Brasil moderno


Com a ajuda preciosa de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, ainda que parcialmente criticados e reconstruídos, temos a embocadura geral tanto de uma nova percepção do Brasil moderno quanto de suas raízes. A escravidão e seus efeitos passam a ser o ponto central e não mais a pretensa continuidade com Portugal. Mais importante ainda, o problema central do país deixa de ser a corrupção supostamente herdada de Portugal para se localizar no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas. As contradições e os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações de dominação entre classes sociais, desde que não utilizemos do mote da corrupção para esconder a verdade nem reduzamos as classes à mera dimensão econômica.

Para que percebamos, no entanto, os conflitos sociais e a dominação social oculta, é necessário o acesso a uma perspectiva que se abra a ideia de classe social. Em um contexto em que a direita demonizou o marxismo e a noção de luta de classes, e que a esquerda, por outro lado, banalizou e simplificou o que já era simplista em Marx, a tarefa não é fácil.

Mas a tese que pretendo defender é que a dinâmica das classes, ou seja, seus interesses e suas lutas, é a chave para a compreensão de tudo que é realmente importante na sociedade. Isso se aplica sempre que não percebamos as classes como meras relações econômicas, como o fazem tanto o liberalismo dominante quanto o marxismo. Pretendo comprovar essa tese ao mostrar que a percepção mais convincente da sociedade brasileira contemporânea só é possível pela reconstrução das lutas entre as classes sociais em disputa. Para isso, no entanto, é necessário que o leitor se despeça e suspenda tudo que ele ouviu ou leu sobre o que são as classes sociais. Afinal, como a classe social só é percebida como fato econômico, minha tese é que isso equivale simplesmente a não compreender coisa nenhuma sobre as classes.

A ideia de classe social é mal conhecida por boas razões. Primeiro porque ela, acima de qualquer outra ideia, nos dá a chave para compreender tudo aquilo que é cuidadosamente posto embaixo do tapete pelas pseudociências e pela imprensa enviesada. Como o pertencimento de classe prefigura e predetermina, pelo menos em grande medida, todas as chances que os indivíduos de cada classe específica vão ter na sua vida em todas as dimensões, negar a classe equivale também a negar tudo de importante nas formas modernas de produzir injustiça e desigualdade. Afinal, sem que se reconstrua a pré-história de classe de cada um de nós, temos apenas indivíduos competindo em condições de igualdade pelos bens e recursos escassos em disputa na sociedade. Tudo muito merecido e justo. Sem a ideia de classe e o desvelamento das injustiças que ela produz desde o berço, temos a legitimação perfeita para o engodo da meritocracia individual do indivíduo competitivo.

A forma mais eficaz e mais comum de se negar a importância do pertencimento de classe social para a vida de todos nós é (não) percebê-la apenas como realidade econômica. Essa é a fraude principal que permite que as pessoas (não) percebam a classe social e sua importância. Peguemos como exemplo a divisão da sociedade entre “faixas de renda” A, B, C, D e E. É assim que (não) se debate na imprensa de todos os dias o tema da classe. A ideia “brilhante” por trás dessa forma, na realidade arbitrária e ridícula, de se segmentar a população é a de que o comportamento diferencial – afinal é isso que se quer descobrir – entre os indivíduos deve ser explicado pelo tamanho de seu bolso.

Assim, todas as escolhas individuais obedeceriam a uma espécie de cálculo de chances e oportunidades universalmente compartilhado. Todas as pessoas são percebidas como produto em série rigorosamente igual, diferenciando-se unicamente pelo que possui no bolso. Ninguém se escandaliza com tamanha pobreza analítica porque um leitor de classe média percebe apenas a homogeneidade de sua própria classe. Melhor, de sua própria fração de classe. Como esse tipo de sujeito e de padrão de consumo é típico das classes médias – a classe também da esmagadora maioria dos pesquisadores e intelectuais –, o que temos aqui é a universalização do padrão de comportamento da classe média para todas as outras classes. O que fica nas sombras nesse tipo fajuto de análise social é o mais importante: por que existem algumas pessoas com R$ 500,00 no bolso no fim do mês e outras com R$ 500 mil ou até R$ 500 milhões? Como é produzida tamanha diferença? Afinal, ninguém escolhe ganhar R$ 500,00 se pode aspirar a R$ 500 mil. Como sempre, é a produção da “gênese da injustiça” que é tornada invisível.

Como se não bastasse, isso acontece mesmo com pessoas que ganham salário semelhante. Imaginemos um trabalhador da indústria automobilística e um professor universitário em início de carreira com seus eventuais R$ 8 mil de salário mensal. Por conta da incorporação diferencial de capital cultural de caráter “técnico” de um trabalhador qualificado e de capital cultural mais “literário” de um professor de ciências humanas, por exemplo, todas as escolhas individuais em cada caso tendem a ser distintas. Desde o padrão de consumo, do filme a que se assiste, ao tipo de lazer, à forma de se vestir, de escolher amizades e parceiros eróticos, todo um “estilo de vida”, enfim, tende a ser, e é de fato, muito diferente.

Como uma leitura tão arbitrária e tão tosca da realidade é tão difundida e transformada em “crença social” compartilhada? Ora, 90% do que se passa por ciência e que vai ser a substância do (falso) debate midiático são, na verdade, justificação social e política, sob o uso legitimador do “prestígio científico”, de relações fáticas de dominação, para que não se compreenda como o mundo social funciona, dando a impressão de que sabemos tudo e que somos adequadamente informados. Infelizmente, a leitura de esquerda, influenciada pelo marxismo, não é muito melhor que a leitura liberal da renda como fator determinante.

A leitura inspirada pelo marxismo é um pouco melhor que a leitura liberal dominante, que se concentra na mera diferença de renda, posto que foca no lugar ocupado na produção. Enquanto a leitura liberal, como sempre, só leva em consideração a distribuição e o consumo, a leitura inspirada pelo marxismo e dominante na esquerda entre nós concentra-se na produção e na ocupação. A ênfase na produção e na ocupação funcional permite ver aspectos completamente fora de visão quando se toma apenas a distribuição e o consumo. A principal vantagem é que o foco na produção e na ocupação permite perceber a distribuição e o consumo como variáveis dependentes da instância de produção. Ou seja, dependendo de seu lugar na produção de mercadorias, tem-se acesso diferenciado a dada renda, por exemplo. O foco na produção, de fato, aprofunda o vínculo genético que esclarece a razão da renda diferencial, que é o que importa saber e descobrir para que se entendam as lutas entre as classes.

Ao mesmo tempo, as versões marxista e liberal compartilham do mesmo ponto de partida. Ambas são economicistas, ou seja, estão firmemente convencidas de que a única motivação do comportamento humano é, em última instância, econômica, o que é uma grande bobagem. A versão marxista de perceber as classes, apesar de um pouco melhor que a versão liberal, não consegue explicar o principal: por que algumas pessoas escolhem certo tipo de ocupação ou de lugar na produção? O vínculo genético para na ocupação. Parte dela como dado absoluto e não explica o principal: por que alguns indivíduos que pertencem a algumas classes desempenham secularmente certo tipo de função nas relações produtivas?

É preciso partir, portanto, literalmente do “berço”, ou seja, da socialização familiar primária, para que se compreenda as classes e sua formação e como elas irão definir todas as chances relativas de cada um de nós na luta social por recursos escassos. As classes são reproduzidas no tempo pela família e pela transmissão afetiva de uma dada “economia emocional” pelos pais aos filhos. O sucesso escolar dependerá, por exemplo, se disciplina, pensamento prospectivo – ou seja, a capacidade de renúncia no presente em nome do futuro – e capacidade de concentração são efetivamente transmitidos aos filhos. Sem isso, os filhos se tornam no máximo analfabetos funcionais. É esse “patrimônio de disposições” para o comportamento prático, que é um privilégio de classe entre nós, que vai esclarecer tanto a ocupação quanto a renda diferencial mais tarde. Como cada classe social tem um tipo de socialização familiar específica, é nela que as diferenças entre as classes têm que ser encontradas e refletidas.

As classes sociais só podem ser adequadamente percebidas, portanto, como um fenômeno, antes de tudo, sociocultural e não apenas econômico. Sociocultural posto que o pertencimento de classe é um aprendizado que possibilita, em um caso, o sucesso, e, em outros, o fracasso social. São os estímulos que a criança de classe média recebe em casa para o hábito de leitura, para a imaginação, o reforço constante de sua capacidade e autoestima, que fazem com que os filhos dessa classe sejam destinados ao sucesso escolar e depois ao sucesso profissional no mercado de trabalho. Os filhos dos trabalhadores precários, sem os mesmos estímulos ao espírito e que brincam com o carrinho de mão do pai servente de pedreiro, aprendem a ser afetivamente, pela identificação com quem se ama, trabalhadores manuais desqualificados. A dificuldade na escola é muito maior pela falta de exemplos em casa, condenando essa classe ao fracasso escolar e mais tarde ao fracasso profissional no mercado de trabalho competitivo.

Como somos formados, como seres humanos, pela imitação e incorporação pré-reflexiva e inconsciente daqueles que amamos e que cuidam de nós, ou seja, os nossos pais ou quem exerça as mesmas funções, a classe e seus privilégios ou carências são reproduzidos a cada geração. Como ninguém escolhe o berço onde nasce, é a sociedade que deve se responsabilizar pelas classes que foram esquecidas e abandonadas. Foi isso que fizeram, sem exceção, todas as sociedades que lograram desenvolver sociedades minimamente igualitárias. No nosso caso, as classes populares não foram abandonadas simplesmente. Elas foram humilhadas, enganadas, tiveram sua formação familiar conscientemente prejudicada e foram vítimas de todo tipo de preconceito, seja na escravidão, seja hoje em dia. Essa é nossa diferença real em relação à Europa que admiramos. A nossa singularidade não é a corrupção que existe na Europa, ainda que de maneira diferente da que existe em um país empobrecido como o nosso. Mas a principal diferença é que a Europa tornou as precondições sociais de todas as classes muito mais homogêneas. Ainda que exista desigualdade social, ela não é abissal como aqui.

Não se trata apenas de acesso à boa escola o que nunca existiu para as classes populares. Trata-se de se criticar a nossa herança escravocrata, que agora é usada para oprimir todas as classes populares independentemente da cor da pele, ainda que a cor da pele negra implique uma maldade adicional. Como

esse mecanismo sociocultural de formação das classes sociais é tornado invisível, então o racismo da cor da pele passa a ser o único fator simbólico percebido na desigualdade do dia a dia. É importante, no entanto, que se percebam também as carências que reproduzem as misérias que são de pertencimento à classe, já que elas, ao contrário da cor da pele do indivíduo, podem ser modificadas.

As classes sociais, pela força da transmissão familiar, vão reproduzir, por sua vez, capitais que serão decisivos na luta de todos contra todos pelos recursos escassos. Quem luta são os indivíduos, mas quem predecide as lutas individuais são os pertencimentos diferenciais às classes sociais e seu acesso ou obstáculo típico aos capitais que facilitam a vida. O privilégio de uns e a carência de outros são decididos desde o berço. Quais são esses capitais que irão facilitar a vida de uns e atrapalhar a vida de outros? Por que não percebemos a ação desses capitais e prendemos nossa atenção aos meros “efeitos” deles como a renda?

O mundo moderno ou capitalista cria uma nova hierarquia social que é impessoal e opaca e não pessoal e facilmente visível, como nos tipos de sociedade anteriores a ele. Isso quer dizer que, ao contrário dos poderosos do passado, por exemplo, como os nossos senhores de terra e gente que tudo podia fazer e desfazer, até os homens mais ricos e poderosos de hoje têm que obedecer a regras que eles próprios não podem mudar.

Na base da nova hierarquia social moderna está a luta entre indivíduos e classes sociais pelo acesso a capitais, ou seja, tudo aquilo que funcione como facilitador na competição social de indivíduos e classes por todos os recursos escassos. Como, na verdade, todos os recursos são escassos e não apenas os recursos materiais como carros, roupas e casas, mas também os imateriais como prestígio, reconhecimento, respeito, charme ou beleza, toda a nossa vida é predecidida pela posse ou ausência desses capitais.

Exemplo desses capitais que predecidem a sorte que iremos ter na vida é o próprio capital econômico, que é o capital mais visível e efetivamente o mais importante, dado que a elite econômica pode comprar as outras elites não econômicas. Mas isso não implica perceber a economia como única instância importante na sociedade. Ao contrário. Sem a justificação da dominação econômica prestada por outras elites, como as elites intelectual e jurídica, por exemplo, não existe dominação econômica possível. Daí que existam outros capitais que desempenham funções semelhantes ao capital econômico.

O capital cultural,62 por exemplo, que significa basicamente incorporação pelo indivíduo de conhecimento útil ou de prestígio, é o outro capital fundamental para as chances de sucesso de qualquer um no mundo moderno. Isso porque o capital cultural é tão indispensável para a reprodução do capitalismo quanto o capital econômico. Não apenas a justificação do capitalismo é feita por elites que monopolizam certos tipos de capital cultural, mas também não existe nenhuma função de mercado ou no Estado que não exija capital cultural de algum tipo em alguma proporção. É a posse conjugada desses capitais, portanto, que predecidem em grande medida o acesso a todos os bens e recursos escassos do mundo.

Tudo que chamamos de sucesso ou fracasso na vida depende do acesso privilegiado ou não a esses capitais. Daí que todos os indivíduos e classes sociais lutem com tudo que têm para não apenas ter acesso a esses capitais, mas, principalmente, para monopolizá-los. É o monopólio dos capitais que irá fazer com que uma classe social possa reproduzir seus privilégios de modo permanente. O grau de desenvolvimento político e moral de uma sociedade deve ser avaliado, inclusive, não pelo PIB geral que esconde todas as desigualdades, mas, sim, pelo modo como impede a monopolização desses capitais e mantém um acesso comparativamente mais democrático a eles.

O terceiro capital mais importante é dependente da existência anterior desses dois que acabamos de falar: o capital social de relações pessoais. Esse capital se refere às relações pessoais que se criam no meio caminho entre interesse e afetividade – como de resto acontece com todas as relações humanas se formos sinceros – e que representam alguma vantagem na competição pelos recursos escassos para quem as possui.

Não podemos falar desse capital específico sem falar da leitura fajuta, superficial e conservadora que esse capital possui em terras tupiniquins. O culturalismo vira-lata racista entre nós, de Sérgio Buarque a Roberto DaMatta, vê o capital social de relações pessoais, apelidado por eles de “jeitinho brasileiro”, como se fosse uma jabuticaba que só existe no Brasil. Seria, inclusive, a marca de nosso atraso pré-moderno, marca principal da continuidade com Portugal, típico de um povo desonesto e corrupto que só quer levar vantagem em tudo.

Essa leitura absurda e ridícula, além de colonizada e servil, típica dos intelectuais do viralatismo que nos domina até hoje, não obstante se tornou uma espécie de segunda pele para os brasileiros. A maioria das pessoas em todas as classes sociais fala do país como se essa fosse sua singularidade maior. Uma farsa como a operação Lava Jato jamais teria tido prestígio sem essa ajuda dos intelectuais do viralatismo. Mais uma prova da importância de se desvendar o caminho percorrido pelas ideias que se tornam vida prática e pressuposto inquestionável e não mais refletido para a maioria.

Tudo funciona como se nos EUA e na Europa as pessoas não visassem vantagens pessoais, nem fossem, em medida variável, instrumentais nas suas relações como qualquer ser humano, em qualquer lugar e em qualquer época. É como se todos os privilégios nesses países não implicassem, também, em alguma medida, a entrada de relações pessoais decisivas para todo sucesso individual. Como se o filho de um poderoso nos EUA e na Europa já não tivesse uma network de relações herdadas que irá facilitar a sua vida de modo decisivo.

Mas esse engano do viralatismo até hoje francamente dominante entre nós, entre intelectuais e leigos, não para por aí. O “jeitinho” é pensado como algo generalizável para todos os brasileiros de todas as classes. Suprema maldade! O objetivo aqui é tornar invisível que só tem relações vantajosas socialmente quem já tem capital econômico e/ou capital cultural. Ou o leitor conhece alguém que tenha acesso a pessoas importantes sem capital econômico e/ou cultural anterior? Teste empírico fácil e infalível para descobrir uma verdade simples escondida de nós por quem tinha a obrigação de esclarecer, e não ocultar o mundo social.

O conceito fajuto de “jeitinho” esconde o trabalho da dominação de alguns sobre outros ao pressupor que todos o usam, criando as generalizações absurdas do viralatismo, e esconde ainda de lambuja toda a raiz de todas as desigualdades advindas, na verdade, do acesso desigual aos capitais econômico e cultural que se tornam um pressuposto invisível nessa teoria. Como esses capitais não são sequer percebidos, toda a hierarquia social no Brasil parece dependente de relações pessoais, do “jeitinho” do “quem indica”, do “QI”, etc. Desserviço maior de uma (pseudo)inteligência nacional eu desconheço.

Esses três capitais mais importantes na luta por recursos escassos andam, portanto, sempre juntos. Todas as classes dominantes devem possuir os três capitais em alguma medida para reproduzir seus privilégios no tempo. A luta pelo acesso a esses capitais constrange os muito ricos como constrange a todos. Daí eles serem – os capitais econômico e cultural – impessoais. Mesmo os seres humanos mais poderosos e ricos têm que obedecer, agora, a regras que eles não criaram e que mandam neles e na sua condução de vida prática.

Os muito ricos, por exemplo, são obrigados a conduzir a vida de modo a parecer que tudo que possuem representa uma distinção inata e não comprada com dinheiro. Eles precisam disso tanto para sua própria autoestima quanto para seu reconhecimento social e prestígio. O vinho de R$ 500 mil em sua adega deve exalar uma “personalidade sensível” e de “bom gosto” e o fato de possuir dinheiro para comprá-lo um mero acaso feliz.

Por conta disso, até o muito rico e poderoso tem que possuir um tipo de capital cultural quase sempre ligado ao gosto estético para que possa ter acesso a relações importantes com seus pares – em uma espécie de solidariedade do privilégio – que são fundamentais para o bom andamento dos negócios. O gosto estético é a praia de todo privilégio que se pretenda vender como inato mais que qualquer outro. Afinal, ele parece exalar da própria personalidade. Como no Ocidente a noção de interioridade sempre foi vista como porta de entrada para o sagrado e o espírito, e depois, com a secularização, para tudo que é superior e nobre, o que é virtude precisa ter relação com algo percebido como interno a cada um de nós.

Como o dinheiro, assim como a beleza, é percebido como algo externo ao sujeito, faz-se necessário desenvolver estratégias que transformem o dinheiro em expressão de algo inato e interno ao sujeito. Ao contrário do dinheiro, o bom gosto estético, como a inteligência, é percebido como algo inato e se presta, por conta disso, à legitimação do dinheiro como se esse fosse expressão de algo independente do mero valor monetário. Um rico que só tem dinheiro, como o rico bronco, é malvisto pelos pares e está sujeito a amizades e casamentos – principal forma de consolidar e aumentar fortunas em vez de fragmentá-las – menos vantajosos.

Se o rico e o poderoso estão submetidos a uma ordem impessoal que os constrange para que possam ter acesso eficaz à autolegitimação da própria vida e a relações vantajosas com seus pares, ou seja, o capital social de relações pessoais, imagine-se as classes com menos privilégios e poder relativo. Na verdade, o capital econômico e mais importante está concentrado de modo crescente – nas condições da atual dominância do capital financeiro – nas mãos de muito poucos.

Embora todas as classes tenham sua posição relativa de poder e prestígio determinada, em grande medida, pela conjunção peculiar desses três capitais fundamentais, abaixo da elite econômica a grande luta é, na verdade, por acesso ao capital cultural. Se pensarmos bem, veremos que o capital cultural, ou seja, a posse de conhecimento útil e reconhecido em suas mais variadas formas, foi, inclusive, o único capital que o capitalismo logrou em grau muito variável – entre nós, no entanto, muito circunscrito apenas à classe média – efetivamente democratizar.

Afinal, o capital econômico se torna cada dia mais concentrado e é transmitido “pelo sangue” – a marca mais perfeita do privilégio injusto –, como ele o foi desde tempos imemoriais. Como o conhecimento, daí seu caráter de capital impessoal, é tão indispensável à reprodução do capitalismo como o próprio capital econômico,63 o capital impessoal e fundamental que sobra para a disputa das outras classes entre si é o capital cultural. Se entendermos isso, entenderemos também a situação da classe média brasileira como tropa de choque dos poderosos de plantão. A classe média vai tender – do mesmo modo como os ricos fazem com o dinheiro – a perceber o conhecimento valorizado como algo que deve ser exclusivo à sua classe social. Sua participação nos golpes contra as classes populares tem muito a ver, portanto, com estratégias de reprodução de privilégios e muito pouco com moralidade e combate à corrupção.

Esse autoengano tende a ser, inclusive, maior na classe média que na elite econômica. É que o capital cultural, o conhecimento incorporado pelo indivíduo, exige sempre esforço para sua assimilação. Por isso, a incorporação de conhecimento arduamente obtido pelo esforço disciplinado aparece ao indivíduo como interna e inata, como fazendo parte da sua personalidade mesma e, portanto, indissociável de si, ao contrário do dinheiro percebido como algo externo à personalidade. Por conta disso, a classe média é a classe por excelência da falácia da meritocracia.

Isso comprova também que as relações de classe, ou seja, a luta de classes no sentido da obtenção de uma melhor posição na competição de todos contra todos pelos recursos escassos, exigem também justificativa para os privilégios. Não existem apenas capitais em disputa, mas também uma disputa pelas interpretações, legitimações e justificativas das posições alcançadas. O estudo da reprodução dos privilégios da classe média nos dá talvez o melhor ponto de partida para entender a luta de classes e seu ocultamento sistemático.

Nas pesquisas empíricas que conduzi sobre as classes sociais no Brasil, o aspecto que mais chamou atenção foi a diferença de ponto de partida de cada uma delas. É que o capital cultural, como símbolo de conhecimento útil e incorporado pelos sujeitos, possui uma série de pressupostos. Alguns desses pressupostos são visíveis, mas a maioria é desenvolvida de modo invisível e pré-refletido desde tenra infância. É um privilégio muito visível que a classe média possui capital econômico suficiente para comprar o tempo livre de seus filhos só para o estudo. Os filhos das classes populares precisam conciliar estudo e trabalho desde a primeira adolescência, geralmente a partir de 11 ou 12 anos.

Esse dado empírico já bastaria para mostrar a insensatez de se imaginar alguém da classe média como possuidor de um mérito individual que, na realidade, é socialmente construído sob a forma de privilégio herdado. Mas a desigualdade de ponto de partida não fica aí. Existem outros aspectos que são tornados ainda mais invisíveis. A desigualdade típica da apropriação diferencial do capital cultural de todas as classes abaixo da elite financeira decorre da socialização familiar.

Isso não significa, obviamente, que a culpa é da família. Primeiro não existe a família, mas sempre famílias, no plural, as quais, de acordo com seu pertencimento de classe específico, irão reproduzir em alguns casos o privilégio recebido de mão beijada – de modo no fundo semelhante à herança econômica – e reproduzir no tempo o monopólio do capital cultural. Ou, como no caso da “ralé de novos escravos”, irão reproduzir tão somente sua própria inadaptação social. Vamos comparar a socialização familiar na classe média e nos excluídos e ver como funciona a produção tornada invisível da desigualdade.

O material de entrevistas sobre a classe média nos mostra que seus filhos são estimulados para a escola desde muito novos. O hábito de leitura dos pais, o estímulo à fantasia por meio de livros, jogos e histórias contadas pelos pais, a familiaridade com línguas estrangeiras despertada desde cedo, tudo milita a favor da incorporação pré-reflexiva de uma atitude que valoriza pressupostos do capital cultural. Esses estímulos são pré-escolares, mas como nos tornamos humanos imitando a quem amamos – os pais ou quem os represente – são eles que irão forjar o sucesso escolar da classe média, assim como, mais tarde, o sucesso profissional no mercado de trabalho. Depois, como o sucesso escolar foi, quase sempre, decisivo para o sucesso dos pais, todo o estímulo da contrapartida amorosa exigida dos filhos é direcionado ao sucesso escolar e ao aprendizado de línguas estrangeiras e leitura.

A criança de classe média, afinal, chega na escola conseguindo se concentrar nos estudos, porque já havia recebido estímulos para direcionar sua atenção ao estudo e à leitura, antes, por estímulo familiar. Como a família também compra seu tempo livre para que possa se dedicar integralmente à escola, a préhistória do vencedor predestinado ao sucesso se completa. Todas as vantagens culturais e econômicas se juntam, mais tarde, para a produção, desde o berço, de um campeão na competição social.

Na família dos excluídos, tudo milita em sentido contrário. Mesmo quando a família é construída como pai e a mãe juntos, o que é minoria nas famílias pobres, e os pais insistem na via escolar como saída da pobreza, esse estímulo é ambíguo. A criança percebe que a escola pouco fez para mudar o destino de seus pais, por que ela iria ajudar a mudar o seu? Afinal, o exemplo, e não a palavra dita da boca para fora, é o decisivo no aprendizado infantil. A brincadeira de um filho de servente de pedreiro é com o carrinho de mão do pai. O aprendizado afetivo aqui aponta para a formação de um trabalhador manual e desqualificado mais tarde.

Como os estímulos à leitura e à imaginação são menores, os pobres possuem quase sempre enormes dificuldades de se concentrar na escola. Muitos relatam em entrevistas que fitavam o quadro-negro por horas sem conseguir aprender o conteúdo. A capacidade de concentração não é, portanto, um dado natural como ter dois ouvidos e uma boca e, sim, uma habilidade e disposição para o comportamento aprendida apenas quando adequadamente estimulada. Quem a recebe de berço passa a contar com precioso privilégio na luta social mais tarde. É assim que se formam os privilégios tipicamente de classe média para que seu monopólio sobre o conhecimento valorizado seja mantido através de gerações. Para o filho já adulto, com emprego bem pago e com prestígio social, tudo é percebido como se fosse o milagre do mérito individual.

Outra habilidade ou disposição para o comportamento fundamental é o pensamento prospectivo, ou seja, a percepção do futuro como mais importante que o presente. É com base nessa predisposição, tão pouco natural quanto a capacidade de se concentrar, que aceitamos renunciar ao prazer presente em nome de um prêmio futuro. Por conta disso, associadas ao pensamento prospectivo estão sempre as disposições à disciplina e ao autocontrole. Ambas são requeridas para que exista pensamento prospectivo. Sem pensamento prospectivo não se planeja a vida. E se uma vida cuidadosamente planejada e antecipada já é difícil, imagine-se uma vida sem qualquer planejamento consciente. Juntas, portanto, essas predisposições – todas fruto de aprendizado silencioso e invisível na família – formam o que poderíamos chamar de condução racional da vida, dado que ensejam a incorporação de uma instância de cálculo pragmático para a construção do futuro mais bem-sucedido possível.

Na classe média, esse aprendizado também é exemplar e não da boca para fora. Desde o berço é estimulado o aprendizado de um cálculo prático da vida que sopesa tudo de acordo com o melhor resultado futuro possível. Com o tempo, essa instância se torna independente dos conselhos dos pais e passa a operar como algo natural e automático para os indivíduos de classe média. Como o processo familiar que forma as pessoas é esquecido na vida adulta, também a produção desses tipos de privilégio parece algo natural e inato a esses indivíduos que se imaginam tendo nascido com eles. Se na elite dos endinheirados o capital econômico tem que parecer inato e, portanto, merecido, na classe média, a aquisição de conhecimento valorizado e das predisposições que permitem sua incorporação pelo sujeito tem que parecer também inata, sendo, portanto, por conta disso também percebida merecida e justa.

Nas nossas classes abandonadas, a produção desde o berço, ao contrário das classes do privilégio, é do inadaptado à competição social em todos os níveis. Primeiro, a herança vem de longe. Essa classe descende dos escravos “libertos” sem qualquer ajuda, que se junta a uma minoria de mestiços e pobres brancos também com histórico de abandono. Embora a dominação agora seja de classe e não de raça, a raça e o odioso e covarde preconceito racial continuam contando de um modo muito importante. A nossa “ralé” atual de todas as cores de pele é o inadaptado à competição social que herdou todo o ódio e desprezo que se devotava ao negro antes.

A escravidão, como vimos, dificultava a formação de famílias negras e combatia qualquer forma de independência e autonomia do escravo. Não é por acaso, portanto, que nossos pobres tenham famílias monoparentais e tenham dificuldades de desenvolver um padrão que reproduza a contento os papéis defilho, pai e irmão de toda família da classe média. A enorme estigmatização do preconceito escravocrata, que no nosso caso foi amplo e contava com o apoio de todas as classes acima dos abandonados, tende a se introjetar na própria vítima. Aos escravos e seus descendentes foi deixado o achaque, o deboche cotidiano, a piada suja, a provocação tolerada e incentivada por todos, as agressões e até os assassinatos impunes.

Em um contexto social de tamanha violência, que segue sem qualquer mudança expressiva até hoje, não é possível, salvo raras exceções, a construção de seres humanos com autoestima e com autoconfiança. Sem autoestima e autoconfiança, não se pode passar para os filhos os incentivos que a classe média possui e reproduz desde o berço. O ciclo aqui não é virtuoso, é vicioso e satânico. Quem é visto como lixo e só recebe ódio e desprezo tende a reproduzir no próprio ambiente familiar o mesmo contexto, atingindo os mais frágeis na família. Daí a naturalização do abuso sexual e do abuso instrumental dos mais frágeis pelos mais fortes nessas famílias. Florestan Fernandes já o havia detectado em sua pesquisa pioneira e nós comprovamos os mesmos efeitos dessa condenação perpétua em nossa pesquisa empírica realizada sessenta anos depois.64

À pobreza econômica foi acrescentada a pobreza em todas as outras dimensões da vida. Se a pobreza econômica, por exemplo, implica foco no aqui e no agora por conta das urgências da sobrevivência imediata, toda a atenção se concentra necessariamente no presente e nunca no futuro, posto que este é incerto. Por outro lado, a visada para o futuro é o que constrói o indivíduo racional moderno que sopesa suas chances e calcula constantemente onde deve investir seu tempo e suas habilidades. A prisão no aqui e no agora tende a reproduzir no tempo, portanto, a carência do hoje, e não a saída para um futuro melhor.

Produz-se, nesse contexto, seres humanos com carências cognitivas, afetivas e morais, advindo daí sua inaptidão para a competição social. O berço dessas classes não é o apoio incondicional de pais amorosos, como é a regra na classe média. Foi e é o tipo de ódio mais covarde que a humanidade já produziu. Aquele ódio e desprezo que se devota ao sub-humano em relação ao qual todas as classes, mesmo a classe dos trabalhadores semiqualificados e precarizados, vão querer se distinguir e se sentir superiores. E essa superioridade tem que ser proclamada e repetida todos os dias sob as mais variadas formas. A própria lei formal não vale para elas. Sabemos que matar um pobre nunca foi crime entre nós. Ao contrário, como os recentes massacres de inocentes nas prisões revelam, os aplausos e as celebrações para chacinas inomináveis são contados em proporções assustadoras.

Do mesmo modo que a violência em relação aos escravos era ilimitada – em um contexto, como no Brasil das minas, quando até os escravos que conseguiam comprar sua alforria, confiando na lei do branco, eram depois presos e vendidos como escravos em outras províncias –, hoje a matança dos pobres que herdaram a maldição do ódio devotado aos escravos comove poucos dentre os privilegiados.

É esse o berço dessa classe abandonada e odiada. Uma classe só tolerada para exercer os serviços mais penosos, sujos e perigosos, a baixo preço, para o conforto e para o uso do tempo poupado em atividades produtivas pela classe média e alta. Mas não apenas isso. Como essa tragédia diária é literalmente invisível e naturalizada como a coisa mais normal do mundo, o próprio pobre acredita na sua maldição eterna. O pobre e excluído, ao concluir a escola como analfabeto funcional, como tantos entre nós, se sente culpado pelo próprio fracasso e tão burro e preguiçoso como os privilegiados, que receberam tudo “de mão beijada” desde o berço, costumam percebê-lo. O círculo da dominação se fecha quando a própria vítima do preconceito e do abandono social se culpa por seu destino, que foi preparado secularmente por seus algozes.65

Se nos libertarmos dos conceitos de classe social baseada na renda, construídos para que falemos de classe e nunca compreendamos o que isso de fato significa, podemos reconstruir a história do Brasil de outra maneira. Podemos perceber como tradições e heranças de classe invisíveis predeterminam a vida dos indivíduos como um destino. É claro que existem exceções, mas a regra continua a mesma. O ódio também continua o mesmo. Como mostramos no A radiografia do golpe,66foi o ódio encoberto a essa classe de desprezados sem culpa – que foi o foco das políticas compensatórias do PT no poder – que possibilitou o uso como mero pretexto da corrupção seletiva comandada pela farsa da Lava Jato para derrubar um governo legítimo.

É hoje inegável para qualquer pessoa que tenha ido à avenida Paulista, ou a qualquer das grandes avenidas das grandes cidades brasileiras, protestar só contra Lula e o PT que a corrupção era fachada para o verdadeiro objetivo das classes médias, que era interromper o projeto de ascensão social dessas classes para que continuem sendo – exatamente como os escravos do passado – odiadas, superexploradas e desprezadas.

Assim, entre as classes sociais que formaram o Brasil moderno, foi a “ralé de novos escravos”, que soma ainda hoje em dia mais de um terço da população,67 agora de todas as cores de pele, mas, herdando o desprezo social de todos que era devotado ao escravo negro, o elemento mais importante para singularizar o Brasil. Essa classe vai construir um acordo de classes nunca explicitado entre nós. Na base desse acordo está a existência dos “sub-humanos” em relação aos quais todas as classes podem se diferenciar positivamente. O Brasil passou de um mercado de trabalho escravocrata para formalmente livre, mas manteve todas as virtualidades do escravismo na nova situação.

Os ex-escravos da “ralé de novos escravos” continuam sendo explorados na sua “tração muscular”, como cavalos aos quais os escravos de ontem e de hoje ainda se assemelham. Os carregadores de lixo das grandes cidades são chamados, literalmente, de cavalos. O recurso que as empregadas domésticas usam é, antes de tudo, o corpo, trabalhando horas de pé em funções repetitivas, com a barriga no fogão quente, do mesmo modo que faxineiras, motoboys, cortadores de cana, serventes de pedreiros, etc. Como o caminho do aprendizado escolar é fechado desde cedo para a imensa maioria dessa classe, não é o conhecimento incorporado no trabalhador que é a mercadoria vendida no mercado de trabalho, mas a capacidade muscular, comum a todos os animais. Uma classe reduzida ao corpo, que representa o que há de mais baixo na escala valorativa do Ocidente. Por conta disso, essa classe, do mesmo modo que os escravos, é desumanizada e animalizada. Passa a não valer como ser humano que vimos exigir, em alguma medida, a dimensão do espírito, ou seja, no nosso caso, do conhecimento útil incorporado.

A ralé de novos escravos será não só a classe que todas as outras vão procurar se distinguir e se afastar, mas, também, vão procurar explorar o trabalho farto e barato. Mais uma vez, nada de novo em relação ao passado escravista. Isso vale para as classes do privilégio, a elite econômica e a classe média, que monopolizam o capital econômico e o capital cultural mais valorizado e se utilizam da ralé como se utilizavam dos escravos domésticos, para serviços na família, posto serem pessoas que, por sua própria fragilidade social, são ansiosas por se identificarem com os desejos e objetivos dos patrões. Essa identificação com o opressor ao ponto de tornar os objetivos do patrão seus próprios objetivos também é uma continuidade sem cortes com o escravo doméstico do escravismo. A melhor situação do escravo doméstico em relação ao escravo da lavoura era paga com servidão espiritual, na qual o escravo abdica de ter interesses próprios para melhor satisfazer os desejos e as necessidades dos senhores. O caso muito comum de babás e empregadas que criam os filhos do patrão “como se fossem seus” reflete esse contexto.

Mas também a própria classe trabalhadora e os batalhadores do capitalismo financeiro, que lograram incorporar conhecimento útil em alguma medida significativa e, portanto, podem participar do mercado de trabalho competitivo, também procuram se distanciar da ralé. A título de ilustração, uma história verídica que nos foi contada por um informante que desenvolve trabalho político na periferia de São Paulo. Um casal de batalhadores – o marido, trabalhador especializado em assentar piso de mármore em construções, e a mulher, faxineira em bairros ricos da capital, ganhando R$ 3 mil cada um – devotava o mesmo preconceito aos pobres que a classe média. Pouco adiante do próprio barraco, o marido aponta para um barraco caindo aos pedaços, onde uma mulher abandonada pelo marido e mãe de seis filhos pequenos sobrevive com o Bolsa Família, e diz: “Olha lá, só não pode é ajudar quem não trabalha. Esse foi o maior erro do PT!”

O trabalho midiático de criminalização da esquerda e da própria ideia de igualdade foi aqui o ponto principal por essa arregimentação de setores expressivos das próprias classes populares e não apenas do seu público cativo da classe média. A reconquista dessa classe vai ser o principal desafio de qualquer discurso que contemple a igualdade social na nova quadra histórica. Parte dela tende a ser cooptada pelo discurso de estigmatização dos pobres, a mais longeva das tradições brasileiras. Certamente, existem também nichos importantes, tanto na classe trabalhadora quanto na própria classe média, que não refletem esse ódio de classe aos mais frágeis.

A ralé de novos escravos cumpre entre nós, assim, uma função semelhante àquela que as castas mais inferiores do hinduísmo cumpriam. Max Weber, em sua análise da religião hindu, percebia como uma das razões mais importantes para a longevidade milenar do sistema de castas precisamente o fato de que todas as castas podiam se considerar superiores em relação à que estava no último degrau da hierarquia social. O sistema era aberto, ou seja, sempre admitia a entrada de castas estrangeiras desde que aceitassem começar por baixo de todos. Desse modo, tinha sempre alguém abaixo precisamente para permitir que, inclusive, outras castas inferiores pudessem se sentir superiores a essa condenada aos serviços mais desprezíveis.68

Com a nossa ralé de novos escravos acontece rigorosamente a mesma coisa. Ela permite que todas as classes acima se sintam superiores a ela e possam explorá-la se possível sem limites legais. A reação violenta da classe média à lei das empregadas domésticas, que procura limitar e garantir direitos mínimos, comprova sobejamente o que estamos dizendo.

Na realidade, e venho dizendo isso há mais de vinte anos, a grande questão social, econômica e política do Brasil é a existência continuada dessa ralé de novos escravos. Nenhuma outra questão é mais importante e nada singulariza mais o Brasil do que ela. Como ela é estigmatizada e ninguém quer sequer chegar perto dela – exatamente como nas castas inferiores do hinduísmo –, a escola e a saúde, por exemplo, que se destinam a ela são aviltadas. A insegurança pública crônica, já que a ausência de oportunidades reais manda uma parte dessa classe para o crime – no homem a figura típica é o bandido, enquanto para a mulher é a prostituta –, decorre desse abandono. Afinal, existem aqueles entre os excluídos que não querem se identificar com o “pobre otário” que trabalha por migalhas para ser “tapete de bacana”. Tudo, enfim, que identificamos como os grandes problemas brasileiros – como, além dos elencados acima, a “baixa produtividade” do trabalhador brasileiro – tem relação com esse abandono secular.

Mas essa questão jamais chegou a ser considerada a mais importante entre nós. Um esforço como o feito pela França da terceira república – a França que saía despedaçada pela Comuna de Paris de 1870 e pelo sangue de lutas fratricidas decide transformar sua “ralé”, no caso especialmente os camponeses embrutecidos do interior, em cidadãos pela ação, antes de tudo, da escola republicana igual para todos –69 jamais aconteceu entre nós. Iniciativas semelhantes, como a escola de tempo integral de Brizola, foram destruídas no nascedouro com apoio da mídia elitista, como sempre, com a Rede Globo à frente. A tentativa light petista de melhorar minimamente as condições dessa classe levou ao golpe de 2016 com amplo apoio midiático, da classe média e até de setores populares.

O que permanece do escravismo é a sub-humanidade cevada e reproduzida, a crença de que existe gente criada para servir outra gente, e se um governo existir para redimi-los deve ser derrubado sob qualquer pretexto de ocasião. É necessário reproduzir uma classe de carentes pela ausência de pressupostos para o sucesso escolar como uma forma de continuar a escravidão com outros meios. Uma raça/classe condenada a serviços brutos e manuais desvalorizados. É isso que explica o golpe recente no seu conteúdo mais importante e mais assustador. A manipulação midiática mais grotesca só pôde existir por conta disso.

O grande pensador do processo civilizatório, Norbert Elias, analisou o processo europeu destacando, como ponto principal, não por acaso, o corte com a escravidão do mundo antigo. Na cabeça do grande sociólogo estava a crença de que o processo civilizador baseia-se na percepção e consideração da alteridade, de um “outro” que tem que ser respeitado. Elias interpreta a culpa freudianamente como o estopim da moralidade, como a base de um processo que leva ao Estado moderno e à democracia. E quando não se tem culpa no exercício da violência material e simbólica contra os mais frágeis, por que se considera que sejam sub-humanos, escravos e indignos de serem tratados e reconhecidos como humanos? Essa é a principal herança da escravidão para o Brasil moderno. Uma herança que foi tornada invisível e, portanto, nunca conscientizada.

Como tamanha naturalização de um ódio tão mesquinho foi possível entre nós? Essa é a grande questão brasileira do momento. Nenhuma outra se compara a ela em magnitude e urgência. Como se construiu esse câncer do Brasil moderno? Como foi e é possível tamanho ódio em circunstâncias modernas, circunstâncias essas que o nobre Florestan Fernandes imaginava que poderia, por si só, redimir a classe dos abandonados? Como foi tramada e projetada a continuidade de uma sociedade sem aprendizado moral e sem culpa?




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