terça-feira, 18 de junho de 2024

A ELITE DO ATRASO - da escravidão à lava jato ( gota 04 - "e" )



O moralismo patrimonialista e a crítica ao populismo como núcleo do pacto antipopular


A criação da classe média entre nós se deu de modo distinto, tanto temporal quanto qualitativamente, do exemplo europeu. É isso que ajuda a explicar a diferença dos processos de aprendizado coletivo aqui e lá e não supostas heranças culturais imutáveis, como nosso culturalismo racista dominante apregoa. Como nos mostra Gilberto Freyre, em sua reconstrução empírica singular do século XIX entre nós, uma classe média em semente já começa a existir nas grandes cidades que sofrem influência do capitalismo comercial, que começa a chegar ao país a partir da abertura dos portos. Ele se refere àquele elemento que, certamente de modo ainda muito incipiente, começa a surgir nos interstícios da velha sociedade escravocrata baseada na grande lavoura. Seus nichos principais são tanto o pequeno comércio quanto os ofícios mecânicos que passam a ser uma nova demanda urbana.

Mesmo sob essa forma incompleta e pontual, os setores de classe média merecem essa denominação, posto que já apontam para um primeiro aparecimento do elemento distintivo da classe média em relação a todas as outras classes sociais: a classe que se forma a partir da reprodução do capital cultural sob a forma de conhecimento útil e valorizado em termos comparativos com as classes populares. Mas aqui os nichos de atuação são quantitativamente pequenos e politicamente ainda pouco relevantes.

A primeira metade do século XX testemunha avanço significativo, tanto de atividades industriais e comerciais quanto do tamanho e da efetividade do Estado na vida social. Essas são, classicamente, as mudanças estruturais na sociedade moderna que criam a classe média. Ela nasce e se reproduz como aquele segmento intermédio entre os proprietários e as classes populares do trabalho manual ou menos qualificado em termos comparativos.

A classe média não é uma classe necessariamente conservadora. Também não é uma classe homogênea. O movimento tenentista, conhecido como o primeiro movimento político comandado pelos setores médios no Brasil, revela bem essas características. Ainda que tenha sido protagonizado por oficiais militares de baixa e média patente (daí o nome tenentismo), a partir dos anos 1920, esse movimento refletia já a nova sociedade mais urbana e moderna que se criava. A parte rebelde da instituição militar era uma expressão desses novos anseios.

A oposição ao pacto conservador da República Velha, com suas eleições fraudadas e restritas, era o ponto de união entre os tenentistas. Dentro do movimento, no entanto, conviviam desde as demandas liberais por voto secreto e por maior liberdade de imprensa até o desejo de um Estado forte como meio de se contrapor ao mandonismo rural. Parte do grupo se radicalizou politicamente na Coluna Prestes, cujo líder, Carlos Prestes, seria o fundador do Partido Comunista Brasileiro. Parte do grupo se alinhou desde a Revolução de 30 com Getúlio Vargas, enquanto outra parte ainda lhe exerceu ferrenha oposição todo o tempo. O nosso primeiro movimento político com claro suporte e apoio da classe média já mostra a extraordinária multiplicidade de posições políticas que essa classe pode abrigar.

Quando Sérgio Buarque elegia o patrimonialismo das elites que habitam o Estado como o grande problema nacional, ele não estava dando vida, portanto, a nenhum sentimento novo. A corrupção do Estado era uma das bandeiras centrais do tenentismo. A falta de homogeneidade de pensamento dos tenentes, sua confusão em relação à hierarquia das questões principais, refletiam uma carência real. Poder-se-ia, por exemplo, perceber a corrupção do Estado como efeito da captura do mesmo pela própria elite econômica que o usa para defender e aprofundar seus privilégios. Isso teria levado a uma conscientização coletiva dos desmandos de uma elite apenas interessada na perpetuação de seus privilégios.

Não foi essa a interpretação que prevaleceu. A elite do dinheiro paulista, que havia perdido o poder político ainda que mantido o poder econômico, agiu de modo astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente os sinais do novo tempo. A truculência do voto de cabresto estava com os dias contados. Em vez da violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios. Com o Estado na mão dos inimigos, a elite do dinheiro paulistana descobre a esfera pública como arma. Se não se controla mais a sociedade com a farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O domínio da opinião pública parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos.

O que os novos tempos pedem é, portanto, um liberalismo repaginado e construído para convencer e não apenas oprimir. O moralismo da nascente classe média urbana seria a melhor maneira de adaptar o mandonismo privado aos novos tempos. O domínio do campo na cidade tem que ser agora civilizado, adquirindo as cores da liberdade e da decência, os mantras da classe média citadina. O que estava em jogo aqui era a captura agora intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, formando a aliança de classe dominante que marcaria o Brasil daí em diante.

Como se construiu esse projeto no alvorecer do século XX? A USP, a Universidade do Estado de São Paulo, foi criada por essa mesma elite desbancada do poder político, e pensada como a base simbólica, uma espécie de think tank gigantesco, do liberalismo brasileiro a partir de então. E também desse projeto bem urdido de contrapor a força das ideias generalizadas na sociedade contra o poder estatal desde que este seja ocupado pelo inimigo político à época representado por Getúlio Vargas. Sérgio Buarque é menos o criador e mais o sistematizador mais convincente do moralismo vira-lata que irá valer, a partir de então, como versão oficial pseudocrítica do país acerca de si mesmo. Como o Estado corrupto passa a ser identificado como o mal maior da nação, a elite do dinheiro ganha uma espécie de carta na manga que pode ser usada a partir de então sempre que a soberania popular ponha, inadvertidamente, alguém contrário aos interesses do poder econômico.

A partir desse eixo intelectual eivado de prestígio, essa concepção se torna dominante no país inteiro. Toda a vida intelectual e letrada vai respirar os novos ares. Isso não significa obviamente dizer que a USP não tenha produzido coisa distinta do liberalismo conservador das elites. Florestan Fernandes e sua atenção aos conflitos sociais realmente fundamentais provam o contrário. Existe uma tradição nesse sentido também por lá. Mas é uma tendência dominada por duas razões: é menos poderosa que a versão dominante, posto que sem a network com as editoras, agências de financiamento, a grande imprensa e seus mecanismos de consagração; além de ela própria ter assimilado aspectos importantes da tradição conservadora elitista visíveis até no caso do próprio Florestan Fernandes.

Desde essa época, o liberalismo conservador, baseado no falso moralismo da higiene moral da nação, vai ser a pedra de toque da arregimentação da classe média que se cria nessa quadra histórica pela elite do dinheiro. O discurso moralista havia mostrado todo seu potencial de arregimentar e convencer sua clientela já na década de 1920 com o movimento tenentista. Os tenentes, oficiais das forças armadas mais jovens de baixa e de média patente, pretendiam a renovação moral da nação de cima para baixo. O Estado Novo de Vargas foi um lócus privilegiado para vários deles, ainda que disputas intestinas tenham levado vários a trocarem de lado com o tempo. O tenentismo havia mostrado a eficácia desse novo discurso típico da classe média.

Isso não significa dizer que o moralismo não tenha eco também nas outras classes. Em alguma medida esse discurso nos toca a todos. Mas na classe média ele está em casa. É que as classes sociais estão sempre disputando não apenas bens materiais e salários, mas, também, prestígio e reconhecimento, ou melhor: legitimação do próprio comportamento e da própria vida. As classes superiores, que monopolizam capital econômico e cultural, têm que justificar, portanto, seus privilégios. O capital econômico se legitima com o empreendedorismo, de quem dá emprego e ergue impérios, e com o suposto bom gosto inato de seu estilo de vida, como se a posse do dinheiro fosse mero detalhe sem importância.

A legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é invisível pela reprodução da socialização familiar que esconde seu trabalho prévio de formar vencedores, a classe média é a classe por excelência da meritocracia e da superioridade moral. Eles servem tanto para distingui-la e para justificar seus privilégios em relação aos pobres como também em relação aos ricos. É que, se os pobres são desprezados, os ricos são invejados. Existe uma ambiguidade nesse sentimento, em relação aos ricos, que vincula admiração e ressentimento. A suposta superioridade moral da classe média dá a sua clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representarem o melhor da sociedade. Não só a classe que merece o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia da meritocracia propicia; mas, também, a classe que tem algo que ninguém tem, nem os ricos, que é a certeza de sua perfeição moral.

É claro que perfeição moral pode muito bem tomar o caminho que enseje uma abertura ao tema da responsabilidade social com os estratos mais frágeis, como aconteceu no caso europeu em muitos países. Um caminho aliás já aberto pelo cristianismo que foi secularizado em proposições políticas. Que entre nós perfeição moral tenha tomado a forma estreita de reação à corrupção apenas no Estado – e aí apenas quando ocupado por líderes populares – é reflexo da bem perpetrada manipulação intelectual e política destinada a tornar a classe média massa de manobra dos endinheirados.

A elite do dinheiro soube muito bem aproveitar as necessidades de justificação e de auto justificação dos setores médios. Comprou uma inteligência para formular uma teoria liberal moralista feita com precisão de alfaiate para as necessidades do público que queria arregimentar e controlar. Esse tipo de “compra” da elite intelectual pela elite do dinheiro não se dá apenas, nem principalmente, com dinheiro. São os mecanismos de consagração de um autor e de uma ideia seguindo, aparentemente, todas as regras específicas do campo científico. Mas a quem pertencem os jornais, as editoras e os bancos e empresas que financiam os prêmios científicos? Desse modo, sem parecer compra, o expediente é muito mais bem-sucedido. Depois, usou sua posição de proprietária dos meios de produção material para se apropriar dos meios simbólicos de produção e reprodução da sociedade. É aqui que entra o contexto que existe até hoje entre imprensa, universidade, editoras e capital econômico.

Como o dinheiro não pode aparecer comprando diretamente os valores que guiam as esferas da cultura, do conhecimento e da informação, essas esferas precisam construir mecanismos de consagração internos a ela como se fossem infensos à autoridade do dinheiro e do poder. Isso explica, em grande parte, que tanto a direita quanto a esquerda tenham se deixado colonizar por esse tipo de prática e de discurso.

Todo o discurso elitista e conservador do liberalismo brasileiro está contido em duas noções que foram desenvolvidas na USP e que depois ganharam o Brasil: as ideias de patrimonialismo e de populismo. Ganhar o mundo não significa que os intelectuais e o campo científico passam a estudá-la seriamente e tê-las como referência em seus trabalhos. Embora isso também aconteça, não é nem de longe o aspecto mais significativo. Significativo é que a esfera pública passa a pensar o país a partir dessas categorias.

Isso não acontece, como aliás nada no mundo social, espontaneamente. Isso só ocorre porque a grande imprensa irá reverberar essas categorias em praticamente todas as análises e torná-las consagradas, ou seja, ideias evidentes para além de debate e discussão. É assim que se consegue transformar uma ideia em uma arma política letal: quando ela passa a ser aceita como evidência não refletida, inclusive, por quem não tem nada a ganhar com elas.

As principais pessoas ligadas ao surgimento dessas ideias já comprovam nossa tese de sua influência avassaladora: Sérgio Buarque como criador da noção de patrimonialismo – continuada por Raymundo Faoro e vários outros – entre nós, e Francisco Weffort, um pouco mais tarde, como adaptador da ideia de populismo ao contexto brasileiro. Que essas ideias conservadoras passam a dominar tanto a direita quanto a esquerda do espectro político fica claro como a luz do Sol. É do livro clássico de Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, que o PSDB, o partido orgânico das elites paulistanas, hoje associado ao rentismo, retira todo o seu ideário e seu programa partidário. Ao mesmo tempo, a sala nobre da fundação Perseu Abramo, do PT, tem também seu nome. Maior símbolo da colonização da esquerda pelo liberalismo conservador da elite conservadora parece-me impossível.

Francisco Weffort, que foi também um dos fundadores do PT – como o próprio Sérgio Buarque – e depois ministro da cultura de FHC, sistematizou entre nós a outra ideia-força do liberalismo conservador: a do populismo75 como categoria explicativa do comportamento das classes populares na política. Como a ideia de patrimonialismo e de corrupção apenas estatal, a ideia de populismo também é pensada, inicialmente, para estigmatizar o legado de Vargas. Por extensão ela será usada para estigmatizar qualquer presença das massas na política.

Efetivamente, adornado com o prestígio científico da noção de populismo, o desprezo secular e escravocrata pelas classes populares ganha uma autoridade inaudita e passa a ser usado com pose de quem sabe muito. Juntas, a demonização da política e do Estado e a estigmatização das classes populares constituem o alfa e o ômega do conservadorismo da sociedade brasileira cevado midiaticamente todos os dias desde então.

Além dessas similitudes entre seus criadores que navegam com o mesmo impulso na direita e na esquerda, as duas ideias possuem outra semelhança que salta aos olhos: ambas não valem um tostão furado sob o ponto de vista científico. A noção de patrimonialismo é falsa por duas razões: primeiro as elites que privatizam o público não estão apenas nem principalmente no Estado, e o real assalto ao Estado é feito por agentes que estão fora dele, principalmente no mercado. A elite que efetivamente rapina o trabalho coletivo da sociedade está fora do Estado e se materializa na elite do dinheiro, ou seja, do mercado, que abarca a parte do leão do saque.

A elite estatal e política fica literalmente com as sobras, uma mera percentagem, mínima em termos quantitativos, dos negócios realizados. Cria-se aí a corrupção dos tolos, que vemos hoje no Brasil. A atenção se foca na propina, nos “3% dos Sérgio Cabral” da vida, e torna invisível o assalto ao trabalho coletivo como um todo em favor de meia dúzia de atravessadores financeiros. O principal efeito da noção de patrimonialismo é tornar esse dado, que é o mais importante, literalmente invisível; depois o patrimonialismo como privatização do bem público, suprema “viralatice”, é percebido como singularidade brasileira, como se o Estado apenas aqui fosse privatizado.

Na verdade, o Estado é privatizado em todo lugar, e a noção de patrimonialismo apenas esconde mais esse fato fundamental, possibilitando uma dupla invisibilização: dos interesses privados que realmente dominam o Estado; e do rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas os estrangeiros, mas os interesses estrangeiros, como superiores e produto de uma moralidade superior. A atual destruição da Petrobras – sob acusação de corrupção patrimonialista, como se as petroleiras estrangeiras que irão substituí-la também não o fossem e em grau seguramente muito maior – é um perfeito exemplo prático dos efeitos vira-latas dessa teoria.

O cidadão, devidamente imbecilizado pela repetição do veneno midiático, pensa consigo: “é melhor entregar a Petrobras aos estrangeiros do que ela ficar na mão de políticos corruptos”. Tudo como se a suprema corrupção não fosse entregar a uma meia dúzia a riqueza de todos que poderia ser usada, como estava previsto o pré-sal, para alavancar a educação de dezenas de milhões.

De resto, a oposição entre o público e o privado assume a forma do senso comum que percebe apenas o Estado como uma configuração de interesses organizados. Assim, se oporia ao Estado e representaria a esfera privada apenas os sujeitos privados, pensados como instância de uma intencionalidade individual. Sendo a esfera privada percebida como individual, o homem cordial de Sérgio Buarque, então o mercado capitalista e competitivo é tornado literalmente invisível na sua positividade e eficácia. A partir de Raymundo Faoro, inclusive, o mercado é percebido como o verdadeiro céu na terra, prenhe de virtudes democráticas que apenas o Estado não permite florescer.

Em resumo, a real e efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses organizados do mercado sob a forma de cartéis e oligopólios, e sob a forma de atuação dos atravessadores financeiros, se torna completamente invisível conceitualmente. Melhor legitimação dos piores interesses de uma elite do saque e da rapina do trabalho coletivo me parece impossível. No entanto, boa parte da esquerda – além de toda a direita obviamente – tem esses autores e suas ideias como interpretações intocáveis e irretocáveis para o Brasil de hoje.

Já a noção de populismo evoca a mobilização manipulativa das massas urbanas a partir “de cima”, quase sempre por meio de um líder carismático, a carapuça perfeita para a demonização de figuras como Getúlio Vargas e Lula. O interessante nessa ideia é que ela parte do princípio nunca demonstrado de que as outras classes sociais não são manipuladas por ninguém, como, por exemplo, a evidente manipulação midiática da classe média brasileira, que é um dos temas principais deste livro. Na verdade, a ideia que se quer passar aqui por conhecimento válido é a de que existem “classes inteligentes”, com consciência de seus interesses e por conta disso não são manipuladas por ninguém; e as classes do povo, iletradas, um pessoal que não foi à universidade, e que são facilmente iludidas por um líder carismático ardiloso.

A noção de populismo, atrelada a qualquer política de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de qualquer sociedade democrática. Afinal, como os pobres, coitadinhos, não têm mesmo nenhuma consciência política, a soberania popular e sua validade podem ser sempre, em graus variados, postas em questão. O voto inconsciente corromperia a validade do princípio democrático por dentro. A proliferação dessa ideia na esfera pública, a partir da sua respeitabilidade científica e depois pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados, é impressionante. Os best-sellers da ciência política conservadora comprovam a eficácia dessa balela.76

Isso justifica a proliferação de ideias como a de que o povo não sabe votar, que seu voto vale menos, posto que menos instruído, e vai funcionar, na prática, como condenação da democracia e da soberania popular. Isso, quando sua validade científica é menor que zero. Como mostra o caso brasileiro recente, a classe média letrada só agora começa a perceber que deu um tiro no pé apoiando o golpe do “sindicato de ladrões” para acabar com a corrupção. Alguns deles, inclusive, não vão admitir isso nunca, o que só mostra como inteligência nunca teve nada a ver com anos na universidade.

Já as classes populares desconfiam, com razão, de uma política que percebem como “jogo de ricos” e adotam uma postura pragmática de esperar para ver o que sobra para eles. Para mim, confesso, esse racionalismo prático das classes populares me parece bem mais sensato e inteligente do que uma classe média ressentida e insegura, vítima fácil de qualquer moralismo que a faça se sentir melhor do que ela é.

Na verdade, afora as épocas históricas que lograram organizar as classes populares ou as camadas médias por algum período breve de tempo, a única classe consciente de seus interesses entre nós foi e é ainda a ínfima elite do dinheiro. Foi ela que construiu esquemas gigantescos de distorção sistemática da realidade, como os que estamos reconstruindo neste livro, apenas para manter o padrão de rapina selvagem do trabalho de todos para seus bolsos. Foi ela, ao fim e ao cabo, que, com satânica inteligência e clarividência de seus melhores interesses de classe, percebeu que o assalto ao bolso coletivo e ao trabalho alheio só poderia se dar pela colonização da capacidade de reflexão da classe média.

A tese do populismo e a do patrimonialismo servem, precisamente, como uma luva para os interesses dessa elite. Elas servem primeiro para tornar invisível a ação predatória de um mercado desregulado como o nosso. Depois, para culpar o Estado e suas elites corruptas – especialmente de esquerda – de tudo que aconteça sempre que se faça necessário. A responsabilidade da elite e de seus instrumentos, como a mídia, fica também invisível; eles não são chamados nunca à responsabilidade. Depois, eles deslegitimam as demandas populares como demagogia e populismo. Hoje em dia, essas são as duas ideias mais repetidas por todos os jornais e canais de televisão. Elas estão hoje, com gradações diversas de clareza, na cabeça de todo brasileiro.

Como isso foi possível? Como tantos foram e ainda são enganados por tão poucos? Ora, a habilidade das teorias explicativas dominantes descritas acima reside, precisamente, no fato de serem aparentemente críticas, ou seja, elas parecem críticas, mas estão sistematizando e conferindo prestígio às ideias mais conservadoras. Elas são repetidas, inclusive, por intelectuais refinados da esquerda. O patrimonialismo aponta o dedo acusador apenas às elites aparentes, ligadas ao Estado, mas que no fundo só fazem o trabalho sujo da verdadeira elite do dinheiro, que manda no mercado e permanece invisível.

O populismo, por sua vez, se disfarça de leitura crítica da manipulação das massas, aparentemente em favor de uma organização consciente das massas, por elas mesmas, assumindo o controle do próprio destino. A grande fraude aqui é esconder o principal: que as massas lutam com as armas dos mais frágeis, tendo toda a organização institucionalizada da violência simbólica e da violência física do Estado e do mercado contra elas. Essa é a fragilidade de seus líderes carismáticos também. Eles têm que andar na corda bamba dos interesses contraditórios e dos inúmeros compromissos, já que o que as massas podem sonhar é apenas uma fatia menor do bolo. Ainda assim, isso só acontece raramente entre nós.

O tema da esfera pública colonizada é fundamental para nosso argumento, posto que foi e é o lócus onde a classe média é arregimentada para os interesses da elite do dinheiro. Tudo acontece, nessa esfera da informação seletiva e da opinião instrumentalizada, como se o mundo fosse um prolongamento das fantasias e da autoimagem da classe média. A decência e a virtude passam a ser percebidas dentro do estreito contexto da moralidade dessa classe. Para uma classe que explora as outras abaixo dela sob formas cruéis e humilhantes, moralidade não pode ser, por exemplo, o tratamento igualitário dos outros seres humanos, ou o comprometimento com chances e oportunidades para todos. Ora, em um contexto de sociedades influenciadas pelo cristianismo, moralidade deveria ser, antes de tudo, igualdade e fraternidade.

Mas não é essa a moralidade que foi cevada pela grande imprensa e por nossos intelectuais mais influentes. “Moralidade” significa, aqui, unicamente se indignar com as falcatruas – sempre seletivas e cuidadosamente selecionadas pela imprensa – do sistema político, de resto montado para ser corrupto, já que montado para ser comprado pelo dinheiro da elite do dinheiro. A classe média pode ganhar sua “boa consciência”, mesmo humilhando e explorando os mais frágeis, apenas se escandalizando com a suposta imoralidade estatal.

Nesse sentido, a elite do dinheiro e seus comandados na vida intelectual e na imprensa passam a possuir o coração e a mente da classe média e podem recorrer a esse capital na luta política sempre que necessário. Como as classes populares são menos influenciáveis por esse tipo de mecanismo – protegidas pelo seu racionalismo prático –, a vida política do Brasil, desde então, é dominada por golpes de Estado movidos pela elite do dinheiro, com o apoio da imprensa e da base social da classe média, sempre que a soberania popular ameaçar ou efetivar, por pouco que seja, interesses das classes populares.

Já nos anos 1950, o embate se dá entre a elite do dinheiro aliado à imprensa que ela, elite do dinheiro, não só construiu materialmente, mas também lhe deu o discurso simbólico que a caracteriza. O embate desigual se deu, já nessa época, como se dá ainda hoje, entre a elite do dinheiro e a fração conservadora dominante na classe média, como sua “base popular”, contra as classes populares e suas lideranças. Todo o esquema que operou no recente “golpeachment” de 2016 já estava armado desde o segundo governo Vargas.

Muito especialmente o tema da corrupção seletiva passa a ser usado sistematicamente já contra Getúlio Vargas com retumbante sucesso. Carlos Lacerda e toda a mídia conservadora cerram fileiras e provocam comoção popular já se utilizando de dispositivos que hoje são conhecidos como pós-verdade, ou seja, a construção de versões sem prova com o intuito de produzir determinado efeito difamatório. Mesmo que a mentira se revele enquanto tal mais tarde, seu efeito destrutivo já foi realizado. O suicídio de Vargas a partir de comprovadas inverdades ditas contra ele mostra a eficácia do esquema.

As ideias dominantes para a reprodução do elitismo brasileiro, como a do patrimonialismo que demoniza seletivamente o ocupante do Estado e a do populismo que demoniza as classes populares, não são apenas ensinadas nas escolas e nas universidades. Seu ensino nas universidades é importante pois confere o prestígio do conhecimento científico, com seu apanágio de universalidade e neutralidade objetiva, a essas visões muito particulares da vida social e política. Armadas dessa consagração do campo científico, elas passam a ter ainda mais peso na formação de uma opinião pública manipulada ao se transformarem em motes usados como arma política pela grande imprensa.

Dependendo do caso específico, às vezes temos a corrupção apenas do Estado, o patrimonialismo como mote principal, ou o populismo, o velho medo da ascensão das classes populares. Mas os dois estão sempre presentes. Afinal, essa é sua função enquanto mecanismo que sempre pode ser ativado ao sabor das circunstâncias: sempre que a regra democrática ferir o mandonismo e privatismo da elite do dinheiro, o dispositivo pode ser ativado, permitindo a captura da classe média moralista e a estigmatização das classes populares e suas demandas. A esfera pública comprada é o dado decisivo de todo o processo. Por conta disso, sua análise é tão importante.

Mais ainda que a queda de Getúlio Vargas, foi o golpe de 1964, que mostrou as entranhas e os perigos desse mecanismo. Nesse caso, o populismo foi mais importante que o mote do patrimonialismo e da corrupção. Ainda que ambos tenham andado de mãos dadas como sempre. Em um contexto de ebulição social e clamor por reformas de base que tornassem o país mais inclusivo, a acusação de populismo casa-se com a de comunismo e mobiliza as Forças Armadas chamadas pela imprensa e pela elite do dinheiro a desempenhar seu “papel constitucional”. A fração conservadora majoritária da classe média faz sua parte e confere a aparência de base popular do golpe. Como os golpes precisam ter a aparência de legalidade, as Forças Armadas desempenharam esse papel interpretando a seu modo dispositivos constitucionais. Mesma função exercida pelo aparelho jurídico-policial do Estado no golpe atual.

Foram mais de vinte anos de ditadura feroz e de aprofundamento da já abissal desigualdade brasileira. Desenvolveu-se um modelo econômico e social que beneficiou unicamente a elite do dinheiro, que ganhou novos parceiros internacionais na exploração de um mercado interno cativo e de pouca produtividade. A classe média, que somava no máximo 20% do país, tornou-se a consumidora dos automóveis e dos bens duráveis mais caros e de menor qualidade, na comparação internacional, que o país passou a produzir, relegando as classes populares ao arrocho salarial. O Brasil da elite do dinheiro realizou o seu ideal e se converteu em um país para 20% de sua população, que era e ainda é o tamanho da classe média entre nós.

O golpe de 1964 realiza na prática o acordo antipopular da elite e da classe média ao levar ao paroxismo a constituição de uma sociedade baseada no mais completo apartheid de classes. Passa a existir um mercado de produtos restritos para as classes do privilégio e outro mercado pior e mais precário para as classes populares. Além disso, também todos os serviços, inclusive os do Estado, passam a institucionalizar e separar a escola de classe média da escola dos pobres, hospital da classe média e hospital para pobres, bairros de classe média e bairros para pobres, e assim por diante.

Passam a subsistir dois países dentro do mesmo espaço, que o economista Edmar Bacha chamou de “Belíndia”, uma pequena Bélgica para os 20% de privilegiados e uma grande Índia empobrecida e carente para os 80% restantes. É possível agora ser de classe média e não mais compartilhar espaços sociais com as classes populares. O brasileiro de classe média passa a se ver efetivamente como um belga e só ver os “indianos”, em casa obedientes e domesticados, como os velhos escravos domésticos. Essa passa a ser a normalidade da vida social brasileira.

A modernização conservadora dos militares construiu a classe média que hoje conhecemos. A expansão do mercado e do Estado nesse período aumentou não só quantitativamente a classe média que servia às funções de supervisão, controle, amparo legal, planejamento e administração, funções típicas do white collar por oposição ao blue collar dos trabalhadores, nessas duas esferas da sociedade. Uma outra fração da classe média, com outro tipo de capital cultural, menos técnico e mais literário, ligado ao novo público de consumo de bens culturais, entra em cena. Essa nova fração da classe média assume, nessa época, um perfil mais crítico e é o público consumidor da pequena revolução cultural que se estabelece no Brasil nos anos 1960 e 1970. Chico Buarque e Caetano Veloso são expressões dessa fração nascente e mais crítica.

A classe média se fraciona e se diferencia internamente, aumentando sua complexidade. A própria expansão e aprofundamento do capitalismo no país, que irá, por exemplo, criar o agronegócio com alta produtividade para exportação, começa a construir também um setor da classe média ligado à produção de bens simbólicos no país. A posse de conhecimento legítimo, facilitada pela notável ampliação das universidades públicas no Brasil sob os militares, era o fator distintivo – como ainda hoje – para uma classe média que se diferencia de modo fundamental. A classe média, a partir daí, já assume sua feição mais heterogênea, como hoje em dia no Brasil.

Parte importante da cultura de resistência desse período vem, mais uma vez, como no tenentismo antes dele, das frações da classe média menos tradicionais e conformistas contra o governo militar. Muitas delas ligadas às novas elites e vanguardas culturais de uma classe média que então se diferenciava internamente. A elite do dinheiro não tinha, até então, nada com isso. A democracia sempre havia sido para ela um estorvo e um grande mal-entendido. Ela tinha o que desejava e dizia muito obrigado aos golpistas armados incentivados por ela mesma por meio da “sua imprensa”.

Os anos 1960 e 1970 no Brasil presenciaram uma luta desigual contra a Ditadura Militar de frações mais críticas e rebeldes da classe média, especialmente no campo da cultura, ainda que alguns tenham chegado à radicalidade da luta armada. Foi apenas a entrada das classes trabalhadoras organizadas, semente do PT, já no fim dos anos 1970, que propiciou a esses setores descontentes o aliado de que necessitavam.

Para a elite do dinheiro, o arranjo com os militares azedou quando eles propuseram, ainda que de cima para baixo e de modo autoritário, um interessante projeto nacional de desenvolvimento, o II PND da era Geisel. Uma série de investimentos na área de mineração e tecnologia, com a abertura de universidades e centros de pesquisa em todo o país, deveria proporcionar uma base vigorosa para um desenvolvimento econômico nacional autônomo. Ainda que o Estado fosse o condutor do processo, ele era aberto à iniciativa privada.

Isto é tudo que jamais interessou a nossa elite do dinheiro e da rapina fácil e do aqui e do agora: um processo nacional de desenvolvimento de longo prazo sob a condução do Estado. A grande imprensa a seu serviço começa a bombardear o projeto e a minar por dentro o acordo que havia propiciado o golpe.77 O apoio dessa elite do dinheiro e de sua imprensa ao Diretas Já vem daí.78 Para a grande imprensa, a ressaca foi grande. Censurada e manietada, teve seu prestígio e sua influência decisivamente reduzidos. Alguns órgãos mais liberais, como a Folha de S. Paulo, assumem uma forma mais plural na década de 1990 e permitem que outras vozes sejam ouvidas.79 As classes médias das Diretas Já abrem-se para um experimento democrático mais uma vez pela mão dos interesses dos proprietários.




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