quinta-feira, 20 de junho de 2024

A ELITE DO ATRASO - da escravidão à lava jato ( gota 04 - "f" )

 


O pacto elitista e sua violência simbólica


Como discutimos anteriormente, a classe média como conceito genérico e homogêneo não existe. Como a classe social não pode ser compreendida pela renda, mas pelos capitais que estão a seu alcance e que servirão como armas dos indivíduos separados por classes na competição social pelos recursos escassos, a classe média é uma classe do privilégio. É a socialização familiar diferencial da classe média, como já vimos, que a capacita privilegiadamente, em relação às classes populares, para o sucesso escolar e, depois, para o sucesso no mercado de trabalho.

Afinal, é ela que monopoliza a reprodução do capital cultural valorizado que tanto o mercado quanto o Estado irão necessitar para se reproduzir. Advogados, economistas, publicitários, artistas, administradores, contadores, e assim por diante são, em sua esmagadora maioria, especialistas desse capital cultural valorizado que caracteriza a classe média.

Não existe nenhuma função do mercado ou do Estado que possa ser exercida sem o concurso desses especialistas. Em grande medida, essas funções são todas de controle, direção, supervisão e legitimação do sistema econômico, social e político. Daí que a classe média seja uma classe do privilégio. Ela tem o salário e o prestígio correspondente de quem realiza no dia a dia a dominação social, econômica e política em nome da elite do dinheiro. Traçando um paralelo com nosso passado escravista, a classe média é o capataz da elite do dinheiro de modo a subjugar a sociedade como um todo.

Obviamente, não é esse o modo como a classe média se vê. Todas as classes do privilégio tendem, necessariamente, a ver seu privilégio como inato ou merecido. Como diria Weber, os privilegiados não querem apenas exercer o privilégio, mas querem também que esse mesmo privilégio seja percebido como merecido e como um direito. Já as classes populares estão condenadas às armas frágeis dos dominados. Sua ação tende a ser reativa e construída contra os valores das classes dominantes sob o domínio do discurso do inimigo. Assim, se o individualismo é o valor máximo das classes dominantes, nas classes populares a solidariedade e o espírito de grupo tende a ser, por exemplo, mais importante. Se a noção de sensibilidade tende a ser dominante nas classes superiores, a ética da virilidade tende a ser o seu contraponto perfeito nas classes populares.

A situação dos excluídos sociais, que chamamos provocativamente de ralé de novos escravos, é ainda mais precária. Se a classe trabalhadora qualificada e semiqualificada ainda tem perspectivas, ainda que restritas, de futuro e de ascensão social, a ralé foi tão secularmente desprezada e humilhada que, sem contexto político favorável, ela está condenada ao fracasso. Toda a importância do lulismo recente reside aí. Foi com ele iniciado um esforço que, caso fosse levado adiante, redimiria essa classe condenada pelo ódio covarde devotado ao escravo no espaço de poucas gerações.

O desprezo e a humilhação que essa classe sofre desde o berço, unindo socialização familiar precária, que é o essencial do seu aspecto de classe, com o preconceito covarde e secular contra o escravo, que é seu aspecto de raça, a levam a fantasiar sua realidade intolerável. A fantasia, que assume a forma da fuga na droga, especialmente no álcool, ou dos tipos de religiosidade mágica que prometem o que não se pode realizar, é exemplo do escapismo de quem não tem futuro.80

Essa não é a situação das classes do privilégio. A elite do dinheiro tende a perceber seu privilégio como decorrente de uma superioridade inata. Essa ancestralidade do privilégio tem a ver, por um lado, com a herança de sangue, que implica, não só o desfrute da riqueza, mas também o dever de aumentar o patrimônio e a influência. Por outro lado, os ricos são o habitat natural da noção de bom gosto inato, como se a posse do dinheiro, que possibilita o consumo das coisas melhores e mais caras, fosse mero detalhe sem importância. O consumo diferenciado deve aparecer como expressão de uma sensibilidade também diferenciada. O rico que só tem dinheiro é um rico bronco.

A classe média tende a imitar a elite endinheirada na sua autopercepção de classe como sensível e de bom gosto, mostrando que essa forma é essencial para toda a separação das classes do privilégio em relação às classes populares. Mas a classe média adiciona a noção de meritocracia, de merecimento de sua posição privilegiada pelo estudo e pelo trabalho duro, mérito percebido como construção individual.

Ainda que a meritocracia, como a noção de sensibilidade também, seja transclassista, a classe média é seu habitat natural. Como a socialização familiar que produz os indivíduos com capacidades diferenciais é cuidadosamente escondida e nunca lembrada, não se lembra que os filhos das classes populares não só não recebem os mesmos estímulos desde o berço, mas também têm que trabalhar e estudar desde a tenra adolescência. Na classe média, não só se transmitem os estímulos privilegiados que se recebeu dos pais aos filhos, como capacidade de concentração e pensamento prospectivo, como também se compra o tempo livre dos filhos só para os estudos. Os filhos da classe média quando crescem, não obstante, olham para os filhos das classes populares menos afortunados e consideram seu sucesso fruto de mérito individual.

Toda essa luta pela distinção social é tão importante quanto a luta pelos bens materiais. Quem não percebe isso não percebe nada de importante na vida social. Mais ainda. São os mecanismos de distinção social que legitimam para si e para os outros o acesso privilegiado a todos os bens escassos, sejam eles materiais ou ideais. Os seres humanos, em qualquer época e em qualquer lugar, querem não apenas ser ricos e felizes, mas também saber que têm direito à felicidade, mesmo às custas da infelicidade alheia.

No mundo ocidental moderno, não existem duzentas formas, como quer o liberalismo vulgar, para produzir distinção social considerada legítima. A forma é única, apesar de invisível em um mundo onde se percebe apenas a ação do dinheiro e do poder. Ela tem a ver com a dominação de certa visão da moralidade e da virtude como o predomínio da noção de espírito sobre a noção de corpo. Essa forma muito singular de se perceber a moralidade e a virtude não caiu do céu. Ela está associada à história do cristianismo e ao fato de o cristianismo ter incorporado a noção platônica de virtude, que defende o controle das paixões do corpo pelo espírito, ao caminho de salvação exigido daí em diante de todo cristão.

Essa é a gênese. Mas a caminhada dessa noção de virtude assume formas seculares e capitalistas depois. Essas formas de perceber a virtude são, no Ocidente, duas: ela se transforma em dignidade do trabalhador útil e produtivo, e em sensibilidade da personalidade expressiva. A noção de dignidade do trabalhador útil, daquele que contribui com seu trabalho para o bem comum, é protestante no começo – quando o trabalho é visto como sagrado pela primeira vez – e depois genericamente capitalista. A noção de meritocracia nasce, portanto, aqui, como contribuição individual de cada um à riqueza social compartilhada por todos. A partir de então, quer queiramos ou não – não existe criação individual na moralidade que sentimos –, passamos a admirar quem contribui com seu trabalho para o bem comum e a não admirar quem não o faz.

A noção de sensibilidade é mais tardia e nasce como fruto de vanguardas intelectuais em parte como reação ao mundo percebido apenas como trabalho e acumulação de riquezas. Nasce a ideia que o ser humano deve expressar sua natureza interior e não apenas trabalhar e acumular dinheiro. O que passa a ser dito agora é que realizar-se como ser humano envolve não apenas a disciplina do trabalho produtivo, mas também e, até principalmente, a expressão autêntica de suas emoções e sentimentos.

Tendo sido forjada nas elites literárias e intelectuais do século XVIII, essa noção de virtude se massifica nos anos 1960 com os movimentos da juventude contracultural e é hoje em dia patrimônio de nós todos. Todos nós – queiramos ou não e tenhamos ou não consciência disso – somos seres dominados para o bem e para o mal por esses valores.

Quando se fala no mundo do trabalho e no casamento e na família como as duas instâncias fundamentais da vida de cada um, estamos apenas repetindo, com a linguagem da vida cotidiana, a centralidade dessa noção bipartida de virtude. Todos nós nos vemos como fracasso ou como sucesso, dependendo do nosso desempenho diferencial nessas duas áreas.

Isso significa que toda forma de autorreconhecimento e de reconhecimento social dos outros tem, necessariamente, a ver com essas duas fontes ocidentais da noção de virtude. Por conta disso, também, não existem centenas de formas diferentes de dotar a vida de sentido, como acreditam o liberalismo e os livros de autoajuda, mas apenas essas ideias criadas historicamente. Os valores que regem nossa vida são, portanto, sociais e compartilhados e nunca criação individual.

Normalmente, as pessoas no dia a dia não têm a menor ideia disso. Quando não se percebe conscientemente o que determina nossa ação e nosso comportamento, isso apenas significa que sua eficácia é ainda maior. Somos comandados por essa hierarquia de valores no nosso dia a dia e não temos a menor ideia disso. Isso só faz com que a força dessa hierarquia moral seja ainda maior apesar de invisível. Nesse caso, não temos literalmente nenhuma defesa em relação a ela, posto que ela nos comanda pré-reflexivamente e antes de qualquer tomada de consciência.

Foi, inclusive, minha intuição inicial como pesquisador de que essa hierarquia comanda toda a representação social do capitalismo ocidental, seja no centro, seja na periferia do capitalismo, que me fez desconfiar da validade de nossa teoria dominante: o culturalismo racista e vira-lata. Afinal, essa hierarquia constrói toda a legitimação da hierarquia social aqui no Brasil, no México e na Argentina do mesmo modo que o faz na Alemanha, na Suécia ou nos EUA. Nossa singularidade é outra.

O passado que nos domina não é a continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia. Foi precisamente porque a Europa não teve escravidão que Norbert Elias pôde construir o processo civilizatório europeu a partir da ruptura com a escravidão da antiguidade.

O processo civilizatório para Elias é precisamente um gigantesco processo de homogeneização social que abrangeu todas as classes sociais dos principais países europeus, permitindo a construção de patamar mínimo universalizado para todos. Ele foi resultado, portanto, de um processo de aprendizado coletivo de grandes proporções. Houve uma universalização dos pressupostos psicossociais daquilo que chamamos de “dignidade do produtor útil”, que pressupõe internalização de disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo.

Nesse contexto, é isso que explica que não há “subgente” nas grandes democracias europeias, já que as precondições do sucesso escolar e depois no mercado de trabalho competitivo para a esmagadora maioria das pessoas estão alcançadas. No linguajar freudiano de Elias, ele se refere à internalização do superego, representando a instância do autocontrole – que pressupõe disciplina e pensamento prospectivo – individual independente de coerção externa. É isso que propicia uma condução racional da vida, com foco no futuro. Tudo que associamos à noção de personalidade tem aqui sua base material.

O mesmo processo de aprendizado esclarece porque lá se desenvolveu uma sensibilidade em relação ao sofrimento alheio, transformando mecanismos psicossociais, como culpa e remorso, em gatilho para uma sensibilidade política que possibilita representar nos sujeitos a dor e o sofrimento dos mais frágeis. Como esse processo de homogeneização jamais aconteceu entre nós, temos, aqui, ao contrário, ódio aos mais frágeis, e a culpabilização da própria vítima pelo seu infortúnio construído socialmente.

É a ausência de processos de aprendizado coletivo e de sua institucionalização social e política que explica nossa abissal desigualdade e indiferença ao sofrimento. Não tem nada a ver com corrupção viralata herdada dos portugueses e estoques culturais imutáveis. São, afinal, processos de aprendizado coletivo que garantem uma economia emocional/moral e cognitiva, em alguma medida, efetivamente compartilhada e, portanto, um patamar comum para todos os indivíduos de todas as classes sociais.

Em um contexto como esse, a lei jurídica da igualdade formal não funciona perfeitamente, mas possui uma eficácia comparativa com relação a países como o Brasil que é inegável. Isso não significa, como sabemos depois de estudar as hierarquias opacas do capitalismo, que todos são iguais nos principais países europeus. Obviamente não o são. A suposta virtude da sensibilidade separa as classes superiores das classes populares na Europa como em todo lugar. A noção de dignidade meritocrática também hierarquiza os desempenhos na esfera do trabalho de modo muito visível.

Mas o que lá não se tem é a divisão entre “gente” e “não gente” típica de países escravocratas que nunca criticaram essa herança. No nosso caso, criamos, inclusive, uma herança fantasiosa, como se os 350 anos de escravidão não valessem nada e uma continuidade fictícia com Portugal houvesse definido a nação e explicado ao modo dos vira-latas a distância em relação aos EUA. O que precisa ser compreendido de uma vez por todas é que ser “gente”, ser considerado “ser humano”, não é um dado natural, mas, sim, uma construção social. Existem características básicas, como consensos sociais compartilhados, que precisam ser universalizadas para que a igualdade jurídica formal tenha alguma eficácia.

Sem a efetiva generalização de uma economia emocional que permita o aprendizado escolar e o trabalho produtivo, cria-se uma classe de “sub-humanos” para todos os efeitos práticos. Pode-se chacinar e massacrar pessoas dessa classe sem que parcelas da opinião pública sequer se comovam. Ao contrário, celebra-se o ocorrido como higiene da sociedade. São pessoas que levam uma subvida em todas as esferas da vida, fato que é aceito como natural pela população. A subvida só é aceita porque essas pessoas são percebidas como subgente e subgente merece ter subvida. Simples assim, ainda que a naturalização dessa desigualdade monstruosa no dia a dia nos cegue quanto a isso.

O que singulariza nossa sociedade como um todo, a intuição inicial que guiou todos os meus trabalhos, é, portanto, a subclasse dos sub-humanos. A economia, a sociedade e a política vão ser singulares no nosso caso decorrente, antes de tudo, desse fato. Assim, para compreendermos o que existe de singular entre nós e que nos diferencia da França, Suécia ou Alemanha e até mesmo de Portugal, Espanha ou Itália, temos que acrescentar à hierarquia social compartilhada por todo o capitalismo moderno nossa história singular escravocrata.

Afinal, o moralismo seletivo de nossas classes do privilégio vem daí e foi cevado para construir a solidariedade entre a elite do dinheiro e a classe média contra qualquer pretensão das classes populares. É aqui que entram os temas do patrimonialismo, segundo o qual a suposta elite que rapina o país estaria no Estado e não no mercado, e do populismo, tornando suspeita qualquer ação política popular no Brasil. É a ação combinada desses pilares da hierarquia moralista, esta sim, genuinamente brasileira, que pode esclarecer os instantes mais dramáticos de nossa história social e política.

O “golpeachment” de 2016 permite analisar a singularidade da situação social e política brasileira de modo cristalino. Nas situações limite, os preconceitos sociais que nos guiam na vida prática vêm à tona sem fingimento ou vergonha. Os interesses inconfessos dos atores e das classes sociais também são assumidos ou se mostram para a análise de modo especialmente claro. A seguir, analisarei, a partir do papel que desempenharam no “golpeachment”, as quatro classes sociais que compõem o Brasil moderno: a elite do dinheiro, a classe média e suas frações, a classe trabalhadora precária e os excluídos da ralé de novos escravos.

Como esse golpe foi reacionário, ou seja, uma reação de cima à pequena ascensão social de setores populares, o decisivo é compreender a ação das classes do privilégio: a elite do dinheiro e a classe média e suas frações. É isso que iremos fazer a seguir. As classes populares permaneceram, fora instantes episódicos importantes,81 passivas e algumas vezes, inclusive, açodando e participando do movimento. O golpe de 2016, como aliás todos os outros, foi gestado e posto em prática pela elite do dinheiro e cabe analisar e perceber seus motivos e compreender a ação de seu “partido político” específico: a grande imprensa.

A grande imprensa é uma grande empresa que se disfarça, mentindo para seus leitores e telespectadores, e tira onda de serviço público. Como “partido político” é a instituição que consegue arregimentar e convencer sua clientela, coisa que os partidos elitistas como o PSDB só conseguem hoje em dia em bolsões regionais, o partido verdadeiramente nacional da elite endinheirada é a grande imprensa. A “política” do golpe foi midiaticamente produzida e os partidos só tiveram que ratificar os consensos sociais produzidos midiaticamente. Por conta disso, chamar o golpe de “parlamentar” é se prender às aparências e esquecer o principal.

Iremos a seguir analisar os motivos inconfessos da elite do dinheiro para o golpe e a ação das diversas frações da classe média como massa de manobra das elites a partir da arregimentação midiática. Digo que a classe média foi massa de manobra dado que não havia, exceto para as capas superiores da classe média associadas ao pacto rentista, nenhum motivo racional para isso. A classe média não ganhou nada e só vai perder com o golpe. Mas ela agiu como se fosse a protagonista do processo. Esse é afinal o acordo elitista do Brasil desde Getúlio Vargas. O incrível é que ele foi ativado em um contexto socioeconômico positivo e até único na história brasileira. É isso que precisa ser aprofundado e melhor compreendido.

Depois analisaremos as frações da classe média para compreender sua diferenciação interna e sua complexidade. Em seguida, examinaremos a forma que a manipulação midiática se deu possibilitando o engajamento ativo da maioria da classe média em um processo realizado contra seus melhores interesses.




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