A ESCRAVIDÃO É NOSSO BERÇO
O mundo que a escravidão criou
A explicação dominante do vira-lata brasileiro, emotivo, corrupto e da corrupção só do Estado – que sempre possibilitou toda a manipulação midiática e política contra a democracia e contra os interesses populares – tem sua força na história e na sociologia do vira-lata. Uma explicação, para ser dominante, tem que esclarecer a totalidade da realidade social. Ou seja, ela tem que esclarecer as três questões principais tanto para os indivíduos quanto para as sociedades: de onde viemos, quem somos e para onde vamos. A teoria que responde a essas três questões de forma convincente é aquela que se candidata à interpretação dominante, definindo a forma como toda uma sociedade se vê. Não por acaso, eram também as três questões que todas as religiões bem-sucedidas respondiam a seus fiéis.
A única teoria brasileira que responde a essas três questões de modo convincente é a teoria implicitamente racista do culturalismo conservador entre nós. Não existe nenhuma outra teoria nacional com essa abrangência. A esquerda, por exemplo, jamais desenvolveu uma concepção crítica a essa teoria e, por conta disso, sempre foi colonizada no coração e na mente pelo culturalismo racista conservador com efeitos práticos devastadores, como os recorrentes golpes de Estado mostram tão bem. Como muita gente inteligente, inclusive especialistas, não percebe a importância da noção de totalidade para a eficácia de uma explicação, se imagina que qualquer explicação sobre tópicos específicos – por mais geniais e importantes que sejam – constitua uma teoria abrangente que daria conta da totalidade referida acima.
Assim se imagina, por exemplo, que o grande Celso Furtado teria criado uma teoria alternativa por ter desenvolvido a teoria das trocas desiguais entre países industrializados e exportadores de matéria-prima. Ele é um dos pioneiros de uma explicação fundamental e muito importante, mas ela é localizada e muito longe de construir o sentido de totalidade do culturalismo racista conservador. O mesmo acontece com grandes figuras como Florestan Fernandes e outros tantos.12 Como a totalidade não é explicada para que se substitua o culturalismo conservador, é o próprio culturalismo conservador que entra por todos os poros nos espaços vazios da explicação que se pretende alternativa. O caso de Florestan, como já mostrei em detalhe em outros livros, exemplifica bem o que acontece com todas as explicações alternativas que não reconstroem a totalidade.
Assim, para criticar o Brasil de hoje e compreender o que está em jogo na política e na manipulação da política como forma de dominação econômica e simbólica, é necessário reconstruir uma totalidade alternativa que desconstrua o culturalismo racista conservador e reconstrua a sociedade brasileira em um sentido novo e crítico. Esse é o desafio que pretendo realizar nesta primeira parte deste livro, ainda que resumidamente. Será uma etapa necessária, ainda que não suficiente, para reconstruir o trabalho de manipulação simbólica em favor da elite do atraso entre nós e esclarecer por que ele foi tão bem-sucedido. Ao mesmo tempo, este esforço parece-me também fundamental para apontar os caminhos de uma nova crítica social entre nós que não se deixe colonizar pelo culturalismo conservador e seu racismo implícito.
A ambição deste livro é dotar a esquerda, ou seja, a visão que expressa os interesses da maioria esquecida, de uma reflexão que supere a mera proposição de um programa econômico alternativo, que tem sido o que as esquerdas apresentam quando chegam ao poder. É necessária uma reflexão independente, também acerca do Estado e da sociedade, para que o culturalismo conservador de direita não colonize a esquerda como acontece até hoje. Todos os golpes de Estado contra a esquerda se baseiam na dominância de uma interpretação totalizante e conservadora, que contamina e fragiliza a esquerda mortalmente.
Para evitar que isso aconteça no futuro, é necessário desconstruir a leitura conservadora dominante e construir uma teoria explicativa nova tão abrangente quanto a versão conservadora o é. Daí a importância de as três questões essenciais a que toda religião ou ciência totalizadora respondem terem que ser respondidas agora refletindo os interesses da crítica social que a “esquerda” pretende representar. Interesses que tenham a ver com a crítica da desigualdade e da injustiça social e não com sua reprodução.
Para responder às três questões essenciais para a compreensão da singularidade de qualquer sociedade – de onde viemos, quem somos e para onde vamos –, o culturalismo racista constrói uma fantasia da continuidade cultural com Portugal que é falsa da cabeça aos pés. Ela se baseia em uma tese clássica do senso comum – que é uma espécie de sociologia espontânea dos leigos – que imagina que a transmissão cultural se dá de modo automático como o código genético. Nessa leitura de senso comum, imagina-se que alguém é, por exemplo, italiano apenas porque o avô era italiano. Depende. Se as condições sociais forem outras, ele não tem nada de italiano a não ser o código genético.
A influência cultural não se transmite, afinal, nas nuvens nem pelo simples contato corporal. Os seres humanos são construídos por influência de instituições. É fácil perceber isso com simples exemplos cotidianos. Pensemos na família, na escola ou no mercado de trabalho. Disposições para o comportamento fundamentais, como a disciplina, o autocontrole, o pensamento prospectivo, são ensinadas por meio de prêmios e castigos institucionais não necessariamente físicos, nem muito menos necessariamente conscientes.
Na família, desde a tenra idade, são os olhares de aprovação e reprovação dos pais – ou de quem exerça o papel – que mostram aos filhos os comportamentos apropriados e as disposições para o comportamento que eles devem reprimir ou desenvolver. A agressividade, por exemplo, uma disposição fundamental que todos temos, deve ser reprimida e controlada para que a criança possa ter sucesso na sua socialização. A disciplina, por outro lado, é incutida dos mais variados modos, como a partir da imposição de horários para dormir, comer e brincar.
A escola prolonga e aprofunda com os mesmos métodos a socialização familiar. Depois, no indivíduo adulto, seu sucesso no mercado de trabalho irá depender do mesmo mecanismo de formatação e disciplina da personalidade em um sentido ainda mais aprofundado. As instituições fundamentais para qualquer um de nós nos amoldam e nos constroem em certo sentido, seja pelo direcionamento explícito, seja pelo incentivo para a criação de disposições que irão construir o comportamento prático. Isso tudo não vem com o código genético como imagina o senso comum e nossa interpretação “científica” dominante. Se todos nascemos com uma pulsão sexual, por exemplo, será, no entanto, o conjunto de instituições, no caso, especialmente a instituição familiar, que irá determinar a singularidade e a direção específica desse impulso em cada um de nós. É assim que somos construídos. Não pelo sangue ou por heranças fantasiosas que desconsideram todo efeito institucional.
No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. Mas nossa autointerpretação dominante nos vê como continuidade perfeita de uma sociedade que jamais conheceu a escravidão a não ser de modo muito datado e localizado. Como tamanho efeito de autodesconhecimento foi possível? Não é que os criadores e discípulos do culturalismo racista nunca tenham falado de escravidão. Ao contrário, todos falam. No entanto, dizer o nome não significa compreender o conceito.
A diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência. Pode-se falar de escravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que somos continuação de uma sociedade não escravista. É como tornar secundário e invisível o que é principal e construir uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o país e seus conflitos reais, mas, sim, para reproduzir todo tipo de privilégio escravista ainda que sob condições modernas. E, toque satânico, demonizar o Estado como repositório da suposta herança maldita portuguesa e sempre que o mesmo for ocupado pela esquerda e reverberar seletivamente a acusação moralista já pronta. Vejamos mais de perto como isso foi feito e como estamos até hoje sob a égide de tamanha farsa.
Utilizarei a obra do criador do culturalismo racista, Gilberto Freyre, contra ele mesmo para demonstrar como, a partir de suas descrições históricas, podemos ter acesso a uma interpretação muito mais verdadeira acerca de quem somos e de onde viemos. Embora Freyre tenha pavimentado o caminho para a construção de uma identidade luso-brasileira como nenhum outro, seu talento de historiador e sua genial descrição do Brasil colonial e imperial podem nos ensejar uma interpretação no caminho contrário daquela que ele mesmo engendrou.
Freyre contra ele mesmo
Quando iniciei o estudo sistemático dos grandes intérpretes brasileiros na década de 1990, Freyre foi o primeiro ao qual me dediquei. Armado de meus 15 anos anteriores de estudo devotados a alguns dos grandes clássicos da sociologia, seus textos me pareceram frágeis em seus pressupostos e generalizações cheias de preconceitos pré-científicos. Como, aliás, a bem da verdade, a imensa maioria de nossos clássicos, salvo pouquíssimas exceções como Florestan Fernandes. Por outro lado, suas observações pontuais quase sempre brilhantes e suas descrições e reconstruções históricas cheias de talento e atenção ao detalhe me fascinaram e me ajudaram a pensar a história e a modernização brasileira de modo novo e mais crítico.
Imaginei, então, como jovem pesquisador, um experimento: e se retirarmos toda síntese teórica de Freyre e todo fardo avaliativo de seus textos e prestarmos atenção tão somente a sua empiria, ou seja, a suas impecáveis reconstruções históricas e observações tópicas e pontuais? E se, além disso, usar o que aprendi com os grandes clássicos para rearticular de modo teoricamente novo seu belo trabalho empírico? Esse passo foi a semente, acrescida pelos trabalhos empíricos sobre as classes sociais realizados nos anos 2000,13 que me possibilitou, acredito, forjar uma nova forma de pensar o Brasil, sua história e seus conflitos contemporâneos principais.
Pensemos de início naquele que foi talvez o livro mais importante e influente do Brasil no século XX: Casa-grande e senzala.14 Deixaremos de lado seu objetivo principal, que foi construir um “romance da identidade nacional” brasileira, e, dado seu retumbante sucesso, construir a autocompreensão que hoje em dia todo brasileiro tem de si mesmo. Aqui nos interessa a leitura reprimida de Casa-grande e senzala, que faz da escravidão sadomasoquista o ponto principal e não o congraçamento de raças e culturas, que foi o ponto que o próprio Freyre privilegiou.
Como ele afirma nas primeiras páginas da obra, em 1532, data da organização econômica e civil do Brasil, os portugueses, que já possuíam cem anos de experiência colonizadora em regiões tropicais, assumiram o desafio de mudar a empreitada colonizadora comercial e extrativa no sentido mais permanente e estável da atividade agrícola. As bases dessa empreitada seriam, no aspecto econômico, a agricultura da monocultura baseada no trabalho escravo e, no aspecto social, a família patriarcal fundada na união do português e da mulher índia.
Na política e na cultura, essa sociedade estaria fundamentada no particularismo da família patriarcal para Gilberto Freyre. O chefe da família e senhor de terras e escravos era autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até “El Rei” a compromissos, dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios.15 O patriarcalismo de que nos fala Freyre tem esse sentido de apontar para a extraordinária influência da família como alfa e ômega da organização social do Brasil colonial. Dado o caráter mais ritual e litúrgico do catolicismo português, acrescido no Brasil do elemento de dependência política e econômica do padre leigo em relação ao senhor de terras e escravos, o patriarcalismo familiar pôde desenvolver-se sem limites ou resistências materiais ou simbólicas.
A família patriarcal reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas também os elementos intermediários constituídos pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala da hierarquia, os escravos da lavoura. Embora todos os sistemas escravistas guardem semelhanças entre si, Freyre pensa a escravidão brasileira como uma mistura da escravidão semi-industrial das plantations típicas do continente americano com a escravidão familiar e sexual moura e muçulmana.
Embora muitos não saibam, a escravidão sexual, cujo epicentro eram os países muçulmanos do Norte da África, escravizou 7,5 milhões de mulheres do século VII ao século XIX. Isso sem contar cerca de 1 milhão de eunucos para guardar os harens.16 Se pensarmos que a escravidão americana é estimada em 10 milhões de almas, as grandezas são comparáveis.
O dado familiar e sexual é o mais interessante por engendrar uma forma de sociabilidade entre desiguais que mistura cordialidade, sedução, afeto, inveja, ódio reprimido e praticamente todas as nuances da emoção humana. Em Novo mundo nos trópicos, 17 esse ponto é referido com toda a clareza:
Em toda parte, fiquei impressionado pelo fato de que o parentesco sociológico entre os sistemas português e maometano de escravidão parece responsável por certas características do sistema brasileiro. Características que não são encontradas em nenhuma outra região da América onde existiu a escravidão [...].
E mais adiante:
Sabemos que os portugueses, apesar de intensamente cristãos – mais do que isso até, campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã – imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em certas técnicas e em certos costumes, assimilando deles inúmeros valores culturais. A concepção maometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à organização da família, inclusive às atividades domésticas, sem ser decisivamente dominada por um propósito econômico-industrial, foi um dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à colonização predominantemente, mas não exclusivamente cristã, do Brasil.18
Sendo uma espécie de
instituição total no Brasil, a forma peculiar da escravidão traria consigo a semente
da forma social que se desenvolveria mais tarde. Qual seria essa semente? Ao se
referir a uma conversa sobre o assunto com seu mestre Franz Boas, Freyre nos dá
pista interessante para a questão:
Quando, em 1938, falei ao meu velho professor da Universidade Columbia, o grande Franz Boas, sobre as ideias que tinha a esse respeito, ele me disse que as mesmas poderiam servir de base à nova compreensão e mesmo interpretação da situação brasileira; e que eu devia continuar minhas pesquisas relativas à conexão existente entre a cultura portuguesa e a moura – ou maometana – particularmente entre seus sistemas de escravidão. Argumentou ainda que os maometanos, árabes e mouros, durante muitos séculos, haviam sido superiores aos europeus e cristãos em seus métodos de assimilação de culturas africanas à sua civilização.19
Essa influência
cultural, não obstante, parece não ter agido sozinha. Um outro fator
sociológico estrutural teria agido combinadamente, qual seja: a necessidade de
povoamento de tão grandes terras por um país pequeno e relativamente pouco
populoso:
Daí a forma de escravidão que os portugueses adotaram no Oriente e no Brasil ter se desenvolvido mais à maneira árabe que à maneira europeia; e haver incluído, a seu modo, a própria poligamia, a fim de aumentar-se, por esse meio maometano, a população.20
O tema da família aumentada é aqui a chave da especificidade que Freyre pretende construir. Para Freyre, essa instituição não estava ligada primeiramente à necessidade funcional e instrumental de aumentar o número de escravos. A família polígama maometana tinha uma característica muito peculiar: bastava ao filho da ligação de árabe com mulher escrava adotar a fé, os rituais e os costumes do seu pai, para se tornar igual ao pai, socialmente falando.21
Sobre a versão
portuguesa da aplicação desse princípio cultural, Freyre discorre:
Os portugueses [...] assim que se estabeleceram no Brasil começaram a anexar ao seu sistema de organização agrária de economia e de família uma dissimulada imitação de poligamia, permitida pela adoção legal, por pai cristão, quando este incluía, em seu testamento, os filhos naturais, ou ilegítimos, resultantes de mães índias e também de escravas negras. Filhos que, nesses testamentos, eram socialmente iguais, ou quase iguais, aos filhos legítimos. Aliás, não raras vezes, os filhos naturais, de cor, foram mesmo instruídos na casa-grande pelos frades ou pelos mesmos capelães que educavam a prole legítima, explicando-se assim a ascensão social de alguns desses mestiços.22
O ponto principal aqui é o fato de que o filho da escrava africana com o senhor europeu poderia, ou seja, existia a possibilidade real, quer ela fosse atualizada ou não, ser aceito como europeizado, no caso de aceitação da fé, dos rituais e dos costumes do pai.
Meu experimento sociológico parte dessa ideia de uma escravidão peculiar, ao mesmo tempo semi-industrial e sexual, como semente das relações de classe e de gênero no Brasil. A noção de sadomasoquismo é essencial aqui. Qualquer leitor com suficiente paciência poderia contar às dezenas as referências de Freyre a relações sadomasoquistas, seja em Casa-grande e senzala, seja em Sobrados e mucambos, seja ainda em livros como Nordeste. No entanto, esse esforço pode ser também seguido segundo um princípio antes sistemático do que tópico, tentando-se perceber, acima de tudo, o alcance analítico dessa noção para a empreitada interpretativa a que Freyre se propõe.
O fim do primeiro capítulo de Casa-grande e senzala fornece uma interessante chave explicativa social-psicológica do patriarcalismo. Esse capítulo é um esforço de síntese, que abrange o período de formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro, que constitui o período histórico analisado no livro. De certa forma, Freyre retira todas as consequências do fato de que a família é a unidade básica, dada a distância do Estado português e de suas instituições, da formação brasileira e interpreta o drama social da época sob a égide de um conceito psicoanalítico: o de sadomasoquismo.23
Na construção desse conceito, Freyre se concentra em condicionamentos estritamente macrossociológicos, semelhantes àqueles que guiariam a reflexão de Norbert Elias (apenas seis anos mais tarde) acerca do processo civilizatório europeu na passagem da baixa à alta Idade Média. No contexto da teoria sociológica desenvolvida por Norbert Elias a partir do seu estudo clássico sobre o processo civilizador do Ocidente,24 interessa a esse autor demonstrar a interdependência entre a forma peculiar de organização social e a forma correspondente de uma específica economia emocional do indivíduo, assim como das relações intersubjetivas que se estabelecem na sociedade.
O que Elias quer compreender, antes de tudo, é como surgiu historicamente o elemento mais importante e diferenciador do indivíduo moderno como percebido por Sigmund Freud: o indivíduo que internaliza a instância da culpa moral – o superego – dentro de si mesmo, tornando ociosa, na maioria dos casos, a repressão violenta e externa das pulsões internas. Esse aprendizado exige a consideração das instituições externas – que levam ao desenvolvimento do Estado moderno – que, de certa maneira, logram se representar dentro do próprio indivíduo.
Elias, não por acaso, parte da tese de que a especificidade do desenvolvimento europeu e ocidental influenciado pela Europa é precisamente a ruptura com o escravismo do mundo antigo. O argumento é que a escravidão e sua necessidade de violência explícita e permanente inibiriam como desnecessário o processo interdependente de uma regulação externa da conduta, levando à inibição interna de pulsões. Assim, para Elias, a noção de cidadania como conhecemos hoje nasce por um lado da internalização, dentro de cada indivíduo, de uma instância disciplinarizadora que torna dispensável, em grande medida, a repressão externa e policial. Por outro lado, o reverso da moeda dessa instância de disciplina, que se torna reflexo automático em todos nós, é o aumento da sensibilidade em relação à dor e ao sofrimento, tanto o próprio quanto o alheio.
Como, nesse caso, inexiste o corte ontológico típico do escravismo entre “gente e não gente” ou “humano e sub-humano”, passa a operar um mecanismo que permite generalizar esse novo tipo de sensibilidade emocional em relação ao sofrimento, quer ele seja dor e sofrimento alheio ou próprio. As garantias universais que a noção de cidadania irá proteger sob a forma de direitos individuais genéricos e intercambiáveis pressupõem esse processo de aprendizado social de uma nova sensibilidade que passa, de modo crescente, a reagir com repulsa a qualquer forma de violência e humilhação excessiva ou gratuita. O que acontece ao outro poderia acontecer comigo, levando à possibilidade de se reviver, como próprio, o sofrimento alheio. Desenvolve-se como um tipo de sensibilidade antes inexistente historicamente. A empatia com a alteridade possibilita solidariedade e compaixão, e sentimentos e emoções como remorso, vergonha e culpa passam a fazer parte de uma economia emocional de novo tipo.
Nosso desenvolvimento histórico foi diferente do europeu, portanto, não pela ação de “estoques culturais imutáveis”, ou por supostas “heranças malditas”, mas porque nossa sociedade foi forjada segundo relações sociais de outro tipo. Veja o leitor que não estamos lidando com “estoques culturais” misteriosos, que se transmitem pelo ar como a gripe e que nunca mudam, como é o caso do nosso culturalismo racista de origem pretensamente ibérica e lusitana. Ao contrário, lidamos com dinâmicas sociais que constroem padrões de comportamento concreto passíveis de mudança e de aprendizado. O aprendizado aqui é a consideração paulatina da existência de necessidades do outro, ainda que este seja hierarquicamente um “inferior social”. O indivíduo europeizado e democrático moderno que hoje conhecemos é fruto desse aprendizado de levar em consideração e perceber em alguma medida a alteridade.
Para Elias, apenas na passagem da baixa à alta Idade Média, ou melhor, na passagem da sociedade de cavaleiros guerreiros para a sociedade incipientemente cortesã, temos uma primeira forma de regulação externa significativa25 da conduta, ainda que estejamos muito longe do tipo de regulação interna exigida por uma sociedade industrial democrática moderna. A forma social anterior, no entanto, a sociedade guerreira medieval, como descrita por Elias, é em muitos aspectos semelhante à brasileira colonial como vista por Gilberto Freyre. Antes de tudo, pelo caráter autárquico do domínio senhorial condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato.
Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da classe dominante é exercido pela via direta da violência armada (como era o caso nos dois tipos de sociedade), não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade, concupiscência ou avidez. As emoções são vividas em suas reações extremas, são expressas diretamente, e a convivência de emoções contrárias em curto intervalo de tempo – como o assassinato seguido de culpa intensa – é um fato natural.
Na dimensão social, as rivalidades entre vizinhos tomam por completo também todos os seres que se identificam em linha vertical com os respectivos senhores. Elias relata, nesse sentido, a espessa rede de intrigas, invejas, ódios e afetos contraditórios que é congênita a esse tipo de organização social.26 O “excesso” de que nos falam muitos comentadores de Freyre é um atributo desse tipo de sociedade, portanto, e não só da brasileira colonial.
No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento social era ainda maior pela ausência de relações de vassalagem, as quais, ao menos em tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e, portanto, a manutenção de um mínimo de disciplina necessária à empresa militar. Estamos lidando, no caso do escravismo brasileiro, na verdade, com um conceito limite de sociedade, onde a ausência de instituições intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente principal. Daí que o drama específico dessa forma societária possa ser descrito a partir de categorias sociopsicológicas cuja gênese aponta para as relações sociais ditas primárias.
É precisamente como
uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista – no sentido de uma
patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da
alteridade e a perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das
relações interpessoais – que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da
formação brasileira. Freyre percebe, claramente, que a direção dos impulsos agressivos
e sexuais primários depende “em grande parte de oportunidade ou chance, isto é,
de influências externas sociais. Mais do que predisposição ou de perversão
inata”.27
A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e moleques e mulatas, o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus todo-poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa-grande principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido neste ensaio. Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta! Pois foi assim o Brasil do tempo da escravidão.28
Ou ainda, ao
discorrer sobre a permanência dessa semente de sociabilidade nacional, mesmo
depois de abolida a escravatura:
Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado, depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata.29
E ainda uma última citação, para não abusar da paciência do leitor, esta de Machado de Assis, usada aqui por Freyre para esclarecer de que maneira os valores do sadomasoquismo social se transmitiam (e se transmitem até hoje) de pai para filho pelos mecanismos sutis da “educação”:
[...] um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscão nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.30
A explicação sociológica para a origem desse “pecado original” da formação social brasileira, para Gilberto Freyre, exige a consideração da necessidade objetiva de um pequeno país como Portugal solucionar o problema de como colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a particulares, antes estimulando do que coibindo o privatismo, o mandonismo e a ânsia de posse. Para Freyre, é de fundamental importância para a compreensão da singularidade cultural brasileira a influência continuada e marcante dessa semente original.
Os teóricos da primeira fase da Escola de Frankfurt,31 também na mesma década de 1930, procuravam, com a ajuda do mesmo conceito, explicar a ascensão do nazismo partindo de um quadro categorial que pressupunha uma rígida estrutura hierárquica preexistente, onde a obediência acrítica em relação aos estratos superiores possuía uma conexão estrutural com o despotismo em relação aos grupos mais passíveis de estigmatização. Gilberto Freyre, ao contrário, enfatiza o elemento personalista.
Patriarcalismo, para ele, tem a ver com o fato de que não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos. Não existe justiça superior a ele, como em Portugal era o caso da justiça da Igreja, que decidia em última instância querelas seculares. Não existia também poder policial independente que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no caso das dívidas impagáveis de que fala Freyre. Não existia ainda, por último mas não menos importante, poder moral independente, posto que a capela era uma mera extensão da casa-grande.
Sem dúvida, a sociedade cultural e racialmente híbrida de que nos fala Freyre não significa, de modo algum, igualdade entre as culturas e “raças”. Houve domínio e subordinação sistemática, melhor, ou pior no caso, houve perversão do domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Freyre.32 Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos.
O senhor de terras e escravos era um hiperindivíduo, não o super-homem futurista nietzschiano que obedece aos próprios valores que cria, mas o super-homem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de limites em relação a seus impulsos primários. As condições socioeconômicas específicas ajudam a compreender o caráter despótico e segregador do patriarcalismo como umbilicalmente ligado à proximidade e à intimidade, especialmente de caráter sexual e familiar. O próprio conceito de sadomasoquismo implica proximidade e alguma forma de intimidade. Intimidade do corpo e distância do espírito, sem dúvida, mas de qualquer modo proximidade. E, efetivamente, grande parte da relação entre senhores brancos e escravos negros se realizava sob essa forma de contato íntimo.
Como a participação no manto protetor paterno depende da discrição e arbítrio deste último, todas as modalidades de protetorado pessoal são possíveis. O leque de possibilidades vai desde o reconhecimento privilegiado de filhos ilegítimos ou naturais em desfavor dos filhos legítimos, como nos exemplifica Freyre em numerosos casos de divisão de herança, até a total negação da responsabilidade paterna nos casos dos pais que vendiam os filhos ilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto, pessoalíssima, sendo uma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca.
Interessante é o passo imediatamente posterior, ou seja, a transformação da dependência pessoal em relação ao patriarca em familismo. Como sistema, o familismo tende a instaurar alguma forma de bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre famílias diferentes, criando um sistema complexo de alianças e rivalidades.
No tipo de sociedade analisado em Casa-grande e senzala, o patriarcalismo familial se apresenta em forma praticamente pura, com o vértice da hierarquia social ocupado pela figura do patriarca. A especificidade do caso brasileiro é representada pela possibilidade (influência maometana para Freyre) sempre incerta, mas real, de identificação do patriarca com seus filhos ilegítimos ou naturais com escravos ou nativos. A ênfase norte-americana na pureza da origem, por exemplo, retirava de início essa possibilidade.
O peso do elemento tradicional – ou seja, o conjunto de regras e costumes que com o decorrer do tempo vão se consolidando em uma espécie de direito consuetudinário, regulando as relações de dependência, como nos lembra Max Weber em seu estudo acerca do patriarcalismo, e que serve de limitação ao arbítrio do patriarca – parece, no entanto, ter sido, no caso brasileiro, reduzido ao mínimo. Daí a ênfase no elemento sadomasoquista em Gilberto Freyre. O maior isolamento e consequente aumento do componente autárquico de cada sistema casa-grande e senzala pode aqui ter sido o elemento principal. A ausência de limitações externas de qualquer tipo engendra relações sociais onde as inclinações emotivas da pessoa do patriarca jogam o papel principal.
Esse ponto não me parece um aspecto isolado ou pitoresco da reflexão gilbertiana. Ao contrário, ele dá conta da singularidade de nossa formação social e cultural sem que os temas dominantes do culturalismo racista – como continuidade com Portugal, corrupção como doença cultural sem remédio, etc. – sejam sequer mencionados.
São relações sociais e instituições concretas que produzem a semente social do Brasil que herdaremos sob forma modificada até hoje. É o sadismo transformado em mandonismo, como Freyre irá analisar em Sobrados e mucambos,33 que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética profundamente brasileira de privatização do público pelos poderosos, que é o exato contrário da balela da cantilena do patrimonialismo. Afinal, no patrimonialismo de Raymundo Faoro e de Sérgio Buarque, a elite vampiresca e má está “no Estado”, tornando literalmente invisível o mandonismo real, primeiro dos proprietários rurais e depois dos urbanos.
As consequências política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera pública das relações políticas e sociais, tornam-se evidentes na dialética de mandonismo e autoritarismo de um lado, mais precisamente no lado das elites, e no abandono e no desprezo das massas por outro. Dialética essa que iria, mais tarde, assumir formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e analfabetos, grupos e classes mais europeizadas e as massas ameríndia e africana, e assim por diante.
Do ponto de vista do patriarca existe, também, uma série de motivos racionais para aumentar, na maior medida possível, seu raio de influência por meio da família poligâmica. Existe toda uma gama de funções de confiança, no controle do trabalho e caça de escravos fugidos, além de serviços militares em brigas por limites de terra, etc. que seriam melhor exercidas por membros da família ampliada do patriarca. E aqui já temos uma primeira versão da ambígua confraternização entre raças e culturas distintas, que a família ampliada patriarcal ensejava. Enquanto esse tipo de serviço de controle e guarda era exercido nos EUA exclusivamente por brancos, no Brasil havia predomínio de mestiços.34 Nota-se, desde aí, a ambiguidade entre possibilidade de ascensão social para os mestiços no familismo patriarcal em troca de identificação com os valores e interesses do opressor.
É certamente possível escrever toda uma sociologia do agregado no Brasil, um tema fundamental inclusive da literatura machadiana. Se pensarmos na passagem das formas pessoais, que o agregado assume desde o contexto da família ampliada do patriarca, às formas impessoais, que se desenvolvem historicamente, podemos lograr reconstruir a genealogia das classes médias entre nós. Já no contexto da incipiente urbanização e modernização do século XIX, em algumas grandes cidades, temos um passo importante nesse processo que se consolida com a formação de uma classe média moderna e diferenciada no século XX. Sua função de capataz da elite, no entanto, é preservada em algumas frações e modernizada. As frações mais conservadoras assumirão, como função sua, por exemplo, a manutenção da distância social em relação aos setores populares.
Além dos motivos econômicos e políticos que favoreciam o familismo patriarcal rural brasileiro, tínhamos ainda uma interessante forma religiosa também familial. O componente mágico, da proximidade entre o sagrado e o profano, constitutivo de toda espécie de catolicismo, foi levado aqui a seu extremo. Havia impressionante familiaridade entre os santos e os homens, cumprindo aqueles, inclusive, funções práticas dentro da ordem doméstica e familiar. Nesse contexto, mais importante ainda é que o culto aos santos se confundia também com o culto aos antepassados, conferindo ao familismo como sistema uma base simbólica e religiosa própria.
A família era o mundo e até, em grande medida, o além-mundo. Além da base econômica e política material, o catolicismo familial35 lançava os fundamentos de uma base imaterial e simbólica referida às suas próprias necessidades de interpretar o mundo a partir de seu ponto de vista tópico e local. Acredito que o patriarcalismo familial rural e escravocrata para Freyre envolvia a definição de uma instituição total, no sentido de um conjunto articulado onde as diversas necessidades ou dimensões da vida social encontravam uma referência complementar e interdependente.
O componente sadomasoquista era constitutivo na medida em que inclinações pessoais do patriarca (ou de seus representantes), com um mínimo de limitações externas materiais ou simbólicas, decidiam em última instância sobre a amplitude do núcleo familiar e como, a quem e em que proporção seria distribuído seu favor e proteção. A construção de um elemento que se oponha ao privatismo e ao mandonismo sadista não é contemplada em Casa-grande e senzala e exige a consideração de outra obra fundamental de Gilberto Freyre que é Sobrados e mucambos.
O próprio Freyre não
interpreta Sobrados e mucambos de modo distinto de Casa-grande e senzala.
Para ele, existe uma
linha de continuidade na herança lusitana que se transforma em luso-brasileira.
Mas não apenas Freyre não percebe a novidade que ele próprio produz. Sobrados e
mucambos é utilizado pelo antropólogo conservador Roberto DaMatta para criar
suas oposições fictícias entre casa e rua, por exemplo, e modernizar o
culturalismo racista para os dias de hoje.36 Isso acontece muito
embora sua leitura, a partir de olhos sociologicamente treinados, preste-se
para fundamentar precisamente a tese contrária.
Sobrados e mucambos ou o campo na cidade
O que Gilberto Freyre reconstrói em Sobrados e mucambos é o início do Brasil moderno, ou seja, o Brasil a partir de 1808, que passa a ser o centro do império português e que se abre comercialmente à Europa. Sobrados e mucambos reflete o embate entre a lógica sadomasoquista do mandonismo escravocrata com a entrada, ainda que incipiente, das duas instituições mais importantes das sociedades modernas: o mercado capitalista competitivo e o Estado burocrático centralizado.
O culturalismo racista nunca percebeu ou compreendeu esse fato fundamental. Para todos os clássicos dessa falsa teoria, até hoje dominante entre nós, essa modernização de “fora para dentro” foi sempre cosmética e superficial, como Sérgio Buarque sempre repetiu. Para Raymundo Faoro, do mesmo modo, ela foi, como sempre, “vinho novo em odres velhos”, já que apenas a continuidade de um suposto patrimonialismo atávico era a força efetiva e atuante. Já para o próprio Freyre, essa mudança era, também como sempre, a expressão continuada da cultura luso-brasileira que ele achava, ao contrário de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro, digna de defesa.
Por mais incipiente que tenha sido a influência de instituições como o capitalismo comercial e o Estado centralizado, ainda assim, eles criam uma lógica social nova, que tem muito a ver com a que vivemos ainda hoje. Toda a questão do familismo se complexifica enormemente em Sobrados e mucambos, ou seja, na passagem do patriarcalismo rural para o urbano. A decadência do patriarcado rural brasileiro está ligada diretamente à ascendência da cultura citadina no Brasil. Esse processo, que a vinda da família real portuguesa ao Brasil veio consolidar, já estava prenunciado na descoberta das minas, na presença de algumas cidades coloniais de expressão, na necessidade de maior vigilância sobre a riqueza recém-descoberta e no maior controle, a partir de então, sobre o familismo e mandonismo privado. Exemplo típico e sintomático da mudança do poder do campo para as cidades é o caso das dívidas dos patriarcas rurais, antes incobráveis, e a partir de então sendo pagas sob força policial. Tão importante quanto a mudança do centro economicamente dinâmico do Nordeste para o Sudeste foi a transformação social de largas proporções implicando novos hábitos, novos papéis sociais, novas profissões, e, ao fim e ao cabo, a construção de uma nova hierarquia social.
Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é que as mudanças políticas, consubstanciadas na nova forma do Estado, e as mudanças econômicas, materializadas na introdução da máquina e na constituição de um incipiente mercado capitalista-comercial, foram acompanhadas também de mudanças ideológicas e morais importantes. Com a maior urbanização, a hierarquia social passa a ser marcada pela oposição entre os valores europeus burgueses e os valores antieuropeus do interior, ressaltando uma antinomia valorativa no país com repercussões que nos atingem ainda hoje. Esses valores europeus, como o individualismo, a proteção legal dos indivíduos, um incipiente reconhecimento dos direitos das mulheres e dos filhos, foram adquirindo concretude com a constituição de um Estado incipiente a partir da vinda da família real. Milhares de burocratas e servidores do rei, um terço do erário português, máquinas de impressão e novas práticas de controle estatal acompanham esse verdadeiro Estado transplantado.
O familismo do patriarcalismo rural debate-se, pela primeira vez, com valores universalizantes. Esses valores universais e essas ideias burguesas entram no Brasil do século XIX do mesmo modo como se haviam se propagado na Europa do século anterior: na esteira da troca de mercadorias.37 Esse ponto é absolutamente fundamental para uma adequada compreensão de todas as consequências do argumento de Gilberto Freyre nesse livro original e importante. A crítica geralmente releva o aspecto da mudança comportamental da influência europeizante (não ibérica e até anti-ibérica) no sentido de apontar para as novas modas de vestir, de falar, de comportamento público, etc. É como se os brasileiros tivessempassado a consumir pão e cerveja como os ingleses, consumir a alta costura de Paris e “civilizar-se” em termos de maneiras e comportamento observável.
Esse novo comportamento é visto, quase sempre, como possuindo alguma dose de afetação e superficialidade, conferindo substância para a expressão, ainda hoje muito corrente no Brasil para designar comportamentos exteriores, superficiais, para “causar impressão”, que é o dito popular “para inglês ver”. Essa leitura do processo de modernização brasileiro como um processo inautêntico, tendo algo de epidérmico e pouco profundo, é certamente uma das bases do nosso culturalismo racista. Essa leitura defende que nossa modernização nunca foi para valer, que sempre foi tudo “vinho novo em odres velhos”, como diria Raymundo Faoro.
Em Sobrados e mucambos, Gilberto Freyre percebe a reeuropeização do Brasil do século XIX como um processo que tinha certamente elementos meramente imitativos do tipo para “inglês ver”, elementos esses aliás típicos em qualquer sociedade em processo de transição. Fundamental, no entanto, é que existiam também elementos importantes de real assimilação e aprendizado cultural. Mais importante ainda é a construção, nesse período, de instituições fundamentais, como um Estado e mercado incipientes, base sobre a qual se poderiam desenvolver, com autonomia, os novos valores universalistas e individualistas. Ainda que esses novos padrões de comportamento e valores não tenham se generalizado para a base da sociedade, o que iria formar o verdadeiro apartheid do Brasil moderno, sua entrada, mesmo que seletiva e segmentada no país, tem que ser compreendida em toda sua dimensão.
O embate valorativo entre os dois sistemas é a marca do Brasil moderno, cuja genealogia Freyre traça em Sobrados e mucambos com uma maestria exemplar. Nesse novo contexto urbano, o patriarca deixa de ser referência absoluta. Ele próprio tem que se curvar a um sistema de valores com regras próprias e aplicável a todos, inclusive à antiga elite social. O sistema social passa a ser regido por um código valorativo crescentemente impessoal e abstrato. A opressão tende a ser exercida agora cada vez menos por senhores contra escravos, e cada vez mais por portadores de valores europeus, sejam eles de qualquer cor – efetivamente assimilados ou simplesmente imitados –, contra os pobres, africanos e índios.
A época de transição do poder político, econômico e cultural do campo para a cidade foi também, em vários sentidos, a época do campo na cidade. De início, o privatismo e o personalismo rural foram transpostos tal qual eram exercidos no campo para a cidade. A metáfora da casa e da rua em Freyre assim o atesta. O sobrado, a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de prolongamento material da sua personalidade. Sua relação com a rua, essa espécie arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo. A rua é o lixo da casa, representa o perigo, o escuro, é simplesmente a não casa, uma ausência. O sadomasoquismo social muda de “habitação”. Seu conteúdo, no entanto, aquilo que o determina como conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu visceral não reconhecimento da alteridade, permanece.
A passagem do sistema casa-grande e senzala para o sistema sobrado e mocambo fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma unidade antes orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefere Freyre. Esses fragmentos espalham-se agora por toda a parte, completando-se mal e acentuando conflitos e oposições. Da casa-grande e senzala, depois sobrados e mocambos, e, hoje em dia, bairros e condomínios burgueses e favelas, as acomodações e complementaridades ficam cada vez mais raras. De início, a cidade não representou mais do que o prolongamento da desbragada incúria dos interesses públicos em favor dos particulares poderosos. O abastecimento de víveres, por exemplo, foi um problema especialmente delicado, sendo permitido, inclusive, o controle abusivo dos proprietários até sobre as praias e os viveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos depois a preços oligopolísticos.38 Nada muito diferente do que acontece hoje em dia, embora nada disso seja visto como corrupção dos poderosos que controlam o mercado.
Desse modo, a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez, então, perigosos, criminosos, maconheiros, capoeiras, etc. Os sobrados senhoris, também nenhuma obra-prima em termos de condições de moradia, por serem escuros e anti-higiênicos, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dos moleques, dos capoeiras, etc. Uma lógica de convivência naturalizada com a desigualdade social que também veio para ficar, como sabemos, hoje em dia, na sociedade dos condomínios fechados.
A urbanização, no entanto, também representou uma mudança lenta mas fundamental na forma do exercício do poder patriarcal: ele deixa de ser familiar e abstrai-se da figura do patriarca, passando a assumir formas impessoais. Uma dessas formas impessoais é a estatal, que passa, por meio da figura do imperador, a representar uma espécie de pai de todos, especialmente dos mais ricos e dos enriquecidos na cidade, como os comerciantes e financistas. O estado, ao mesmo tempo, mina o poder pessoal pelo alto, penetrando na própria casa do senhor e lhe roubando os filhos e transformando-os em seus rivais. É que as novas necessidades estatais por mão de obra especializada, como burocratas, juízes, fiscais, juristas, etc., todas indispensáveis para as novas funções do estado, podem ser melhor exercidas pelo conhecimento que os jovens adquirem na escola, especialmente se essa fosse europeia, o que lhes conferia ainda mais prestígio.
Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência, típico das gerações mais velhas, foi rapidamente desvalorizado, num processo que, por seu exagero, é típico de épocas de transição como aquela. D. Pedro II é uma figura emblemática nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem, cercou-se de seus iguais, ajudando a criar o que Joaquim Nabuco chamaria de “neocracia“.39
Também a relação entre os sexos mudou. A urbanização mitiga o excesso de arbítrio do patriarca ao retirar as precondições sob a influência das quais ele exercia seu poder ilimitado. O médico de família, por exemplo, insere no lar doméstico uma influência incontrolável pelo patriarca. É ele que irá substituir o confessor. O teatro, o baile de máscaras, as novas modas de vestir e os romances se tornam mais importantes que a Igreja. Um novo mundo se abre para as mulheres, apesar do sexismo ter sido, para Freyre, o nosso preconceito mais persistente.
De qualquer modo, essas mudanças representam transformações importantes, porém limitadas, da autoridade patriarcal. Ele é obrigado a limitar-se na sua própria casa, mas a real mudança estrutural e democrática ainda estava por vir. Em Sobrados e mucambos, essa mudança recebe o nome de reeuropeização, ou até, dado o caráter difusamente “oriental” da sociedade colonial brasileira, de europeização do Brasil.
Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o advento mais ou menos simultâneo do mercado e da constituição de um aparelho estatal autônomo, com todas as suas consequências sociais e culturais. A reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura, por meio da influência de uma Europa, agora já francamente burguesa, nos exemplos da França, Alemanha, Itália e, especialmente, da grande potência imperial e industrial da época e terra natal do individualismo protestante, a Inglaterra.
Tal processo realizou-se como uma grande revolução de cima para baixo, envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio relativo de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de diferenciação. São esses novos valores burgueses e individualistas que irão se tornar o núcleo da ideia de modernidade e de europeidade enquanto princípio ideologicamente hegemônico da sociedade brasileira a partir de então. No estilo de vida, e aí Gilberto Freyre chama atenção para a influência decisiva dos interesses comerciais e industriais do imperialismo inglês, mudaram-se hábitos, a arquitetura das casas, o jeito de vestir, as cores da moda, algumas vezes com o exagero do uso de tecidos grossos e impróprios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja e comia-se pão como um inglês, e tudo que era português ou oriental transformou-se em sinal de mau gosto.40 O caráter absoluto dessas novas distinções tornou o brasileiro de então presa fácil da esperteza, especialmente francesa no relato de Freyre, de vender gato por lebre.
Para além das mudanças econômicas, houve as culturais e políticas, com o advento das novas ideias liberais e individualistas, que logo conquistaram setores da imprensa e as tribunas parlamentares. No entanto, nenhuma dessas mudanças importantes teve o impacto da entrada em cena no nosso país do elemento burguês democratizante por excelência: o conhecimento e, com ele, a valorização do talento individual, que tanto o novo mercado por artífices especializados quanto as novas funções estatais exigiam.
No âmbito do mercado, fundamental foi a introdução da máquina, que, como de resto sabia Karl Marx, não é mais do que conhecimento materializado. Freyre está perfeitamente consciente da enorme repercussão social dessa inovação técnica.41 A máquina veio desvalorizar a base mesma da sociedade patriarcal, desvalorizando o trabalho muscular e desqualificado do escravo, diminuindo tanto a importância relativa do senhor quanto do escravo, agindo como principal elemento dissolvente da sociedade e cultura patriarcal.
Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam a sociedade escravocrata, ela vinha valorizar, por conta disso, precisamente àquele elemento médio, que sempre havia composto uma espécie de estrato intermediário na antiga sociedade, que, não sendo nem senhor nem exatamente um escravo, era um “deslocado”, um sem-lugar, portanto.
A gênese social desse elemento remonta àquela intimidade sexual e cultural entre as diversas raças e culturas, especialmente a portuguesa e a africana que predominava no sistema casa-grande e senzala. Aqui encontramos uma primeira forma de lugar social para aquele elemento gestado na família patriarcal ampliada e poligâmica. Será, precisamente, a partir dessas modificações sociais estruturais que teremos a construção da categoria social do mulato, ou da “válvula de escape do mulato”, como prefere Carl Degler.42
O enorme número de mestiços e filhos ilegítimos de senhores e padres, indivíduos de status intermediários, quase sempre assumindo as funções de agregado da família, de qualquer modo quase sempre mais ou menos deslocados no mundo de posições polares como são as de senhor e escravo, encontra, agora, uma possibilidade nova de ascensão e mobilidade social. A mudança social implicada pela mudança do campo para a cidade abre, portanto, oportunidades antes imprevistas para esse estrato.
Na nova sociedade
nascente são as antigas posições polares que perdem peso relativo, e esses indivíduos,
quase sempre mestiços, sem outra fonte de riqueza que não sua habilidade e
disposição de aprender os novos ofícios mecânicos, quase sempre com aprendizes
de mestres e artesãos europeus, passaram a formar o elemento mais tipicamente
burguês daquela sociedade em mudança: o elemento médio, sob a forma de uma
meia-raça. Alguns desses mestiços, como o próprio Machado de Assis, passam a se
aventurar no capital cultural mais valorizado ainda, não só o conhecimento do trabalhador
mais qualificado de funções mecânicas repetitivas, mas do alto capital
literário, a própria incorporação do “espírito“ enquanto tal.
Em vez apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro da complexa ritualística que, como consequência da maior proximidade social entre os diversos estratos sociais que a urbanização enseja, instaura-se no país nessa época, como a forma da vestimenta, a comida, o modo de transporte, o jeito de andar, o tipo de sapato, etc., temos, a partir de então, um elemento diferenciador novo. Esse elemento é revolucionário no melhor sentido burguês do termo, posto que interno e não externo, sendo antes uma substância e um conteúdo do que uma aparência, mais ligado, portanto, a qualidades e talentos pessoais que a privilégios herdados.
O conhecimento, a
perícia, passa a ser o novo elemento a contar de forma crescente na definição
da nova hierarquia social. Nesse sentido, servindo de base para a introdução de
um elemento efetivamente democratizante, pondo de ponta-cabeça e redefinindo
revolucionariamente a questão do status inicial para as oportunidades de
mobilidade social na nova sociedade. Uma “democratização” que tinha como suporte,
ainda, o mulato habilidoso. Um pouco mais tarde, principalmente em São Paulo e
no Sul do país, esse elemento seria representado com ainda mais sucesso pelo
imigrante europeu, antes de tudo o italiano.
Do lado do mercado, essas transformações se operam segundo uma lógica de “baixo para cima”, ou seja, pela ascensão social de elementos novos em funções manuais, as quais, sendo o interdito social absoluto em todas as sociedades escravocratas, não eram percebidas pelos brancos como dignificantes. Com o enriquecimento paulatino, no entanto, de mulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, nessa época especialmente portugueses, como caixeiros e comerciantes, as rivalidades e os preconceitos tenderam a aumentar proporcionalmente.
O outro caminho de ascensão social do mulato, do mulato bacharel para Freyre, de cultura superior e, portanto, mais aristocrático do que o mulato artesão, é o símbolo de uma modernização que se operou não apenas de fora para dentro e de baixo para cima, mas também de cima para baixo. O mestiço bacharel constitui uma nobreza associada às funções do Estado e de um tipo de cultura mais retórica e humanista do que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão. O Estado, portanto, e não apenas o mercado como semente de uma incipiente sociedade civil, foi também um lócus importante dessa nova modernidade híbrida, já burguesa, mas ainda patriarcal. Se bem que de um patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na figura do imperador pai de todos, e já mais afastado, no entanto, do patriarcalismo familístico todo dominante na colônia.
Podemos perceber aqui a semente da formação de uma classe decisiva para a construção do Brasil moderno: a classe média, cujo privilégio irá se concentrar na reprodução social do capital cultural valorizado. A formação incipiente dessa classe no século XIX já aponta para um mecanismo de distinção social que só iria se tornar mais importante com o tempo: a distinção em relação aos de baixo. Desse modo, o processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo quanto o pária dos mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos queriam se distinguir.
Note o leitor que aqui já temos também a pré-história daquela classe que chamo provocativamente de “ralé brasileira”, para denunciar seu abandono. A única diferença hoje em dia é que essa classe é composta por negros e mestiços de todas as cores, mostrando que a antiga “raça condenada” se transforma em “classe condenada”.43 Mas a sua função social continua a mesma. Ela serve às classes incluídas como mecanismo de distinção em duas frentes: uma simbólica, para provocar o prazer da “superioridade” e do mando; e outra material e pragmática, no sentido de criar uma classe sem futuro que pode, portanto, ser explorada a preço vil.
A enorme importância da vestimenta nessa época servia agora para fins de diferenciação social, que antes sequer necessitava de externalização. O elemento capaz de ascensão, portanto, era o mulato ou o mestiço em geral, o semi-integrado, o agregado e todas as figuras intermediárias da sociedade. A própria ênfase na distinção do traje ou a violência das humilhações públicas contra os mestiços que usavam casaca ou luva já demonstram, como uma consequência mesma do acirramento das contradições a partir da competição com indivíduos brancos antes seguros de sua posição,44 a possibilidade real de ascensão e a contradição entre elementos constitutivos do sistema: um segregador, que exclui classes sociais inteiras, e outro inclusivo, que funciona individualmente.
Nada muito diferente de nossos dias nesse particular. O ódio ao pobre hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes. Quando as classes médias indignadas saíram às ruas a partir de junho de 2013, não foi, certamente, pela corrupção do PT, já que os revoltados ficaram em casa quando a corrupção dos outros partidos veio à tona. Por que a corrupção do PT provocou tanto ódio e a corrupção de outros partidos é encarada com tanta naturalidade? É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno. A corrupção foi mero pretexto.45 Não houve, portanto, nos últimos 150 anos, um efetivo aprendizado social e moral em direção a uma sociedade inclusiva entre nós.
Mas voltemos ao nosso berço do Brasil que hoje conhecemos que é o século XIX. Fundamental para a compreensão do argumento de Freyre, vale a pena repetir, é que o componente externo, burguês, da revalorização do trabalho manual e da habilidade pessoal, produto do processo de reeuropeização, é apenas parte do processo de constituição de uma sociedade que se moderniza e segrega. As chances de ascensão social do mestiço já estavam assim prefiguradas pelo costume de dividir as heranças entre filhos ilegítimos, ou seja, mestiços de alguns senhores, problema que deve ter atingido proporções razoáveis para estimular escritos e reclamações contrárias à prática por ser supostamente fragmentadora da riqueza acumulada, como nos conta Freyre em Casa-grande e senzala. Também pela proximidade e intimidade afetiva entre o senhor e suas concubinas, assim como pelos sentimentos filiais entre filhos de senhores e amas negras, em resumo, por todas as formas de extensão em linha vertical de vínculos afetivos e privilégios familiares e de classe a agregados, no sentido amplo do termo, da família patriarcal.
Freyre percebia que os lugares sociais do patriarcalismo sempre foram funcionais e não essencialistas. Isso permitia que a figura masculina do patriarca pudesse ser exercida por uma mulher, a qual obviamente continua biologicamente mulher, mas era sociologicamente ou funcionalmente homem/patriarca. Assim, do mesmo modo, os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados os filhos ilegítimos de senhores de terra e padres, que poderiam tornar-se sociologicamente filhos, herdando a riqueza paterna, ou mesmo o substituindo na atividade produtiva. O mesmo traço sistêmico fazia o biologicamente mulato transformar-se em sociologicamente branco, ou seja, ocupar posições sociais que, num sistema escravocrata, são privilégio de brancos.46 Forma-se, na realidade, uma versão brasileira do “dividir para dominar”. Separar os mulatos dos negros e torná-los servis aos brancos possibilita a estigmatização e superexploração do negro de todas as formas imagináveis. A construção do pacto antipopular que hoje vivenciamos entre a elite e a classe média já estava prefigurada nesse arranjo.
Quando a modernidade europeia chega ao Brasil de navio, na esteira da troca de mercadorias, seus valores não são uma mera mercadoria de consumo. Afinal, seriam esses valores que iriam presidir a institucionalização incipiente de formas extremamente eficazes de condução da vida cotidiana: o Estado e o mercado capitalistas.47 Estado e mercado pressupõem uma revolução social, econômica, valorativa e moral de grandes proporções. Os papéis sociais se modificam radicalmente. O que antes era aceito como definindo os papéis sociais de mulher, homem, filho e pai se transformam, como Freyre mostra com maestria. A noção de tempo, a condução da vida cotidiana, a economia afetiva necessária para o aprendizado dos novos ofícios e profissões é completamente diferente da que imperava anteriormente. O que é tido como bonito, como bom, como legítimo de ser perseguido na vida, a noção de sucesso e de “boa vida” muda radicalmente. Muda, enfim, a configuração valorativa da sociedade como um todo.
É esse contexto revolucionário, no sentido mais profundo do termo por se referir a mudanças de corações e mentes das pessoas, que Freyre nos expõe com talento singular em Sobrados e mucambos. Mudanças essas amparadas por transformações institucionais que garantiam, por meio do mecanismo peculiar de prêmios e punições típicos da eficácia institucional, a reprodução e permanência desses mesmos valores novos.
E é também esse novo contexto valorativo que pode nos explicar a nova posição do mestiço nele. Foi nas necessidades abertas por um mercado incipiente, em funções manuais e mecânicas rejeitadas pelos brancos, assim como pelas necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento, que mestiços puderam afirmar seu lugar social. Nesse último caso, por se tratar de colocações de alta competitividade, disputando posições com os brancos, é que Freyre fala da “cordialidade” e do sorriso fácil, típico do mulato em ascensão, como a compensar o dado negativo da cor. Essa compensação, ao mesmo tempo que reafirma o racismo, mostra que o empecilho não era absoluto e sim relativo, superável pelo talento individual, ou seja, mostra que havia espaço para formas de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial e não apenas em categorias adscritivas de cor.
Afinal, fazia parte mesmo da flexibilidade do sistema o abandono de características segregadoras a partir da dimensão biológica, tão determinante em outros sistemas com características semelhantes, em favor de uma sobre determinação sociológica ou funcional. De certo modo, o que era construtivo e funcional para a reprodução do sistema como um todo, governado já agora pela palavra mágica da modernização, era passível de valorização. Assim, a realização diferencial de certos fins e valores considerados de utilidade social inquestionável era mais importante, por exemplo, do que a cor da pele do indivíduo em questão.
No Brasil do começo ao fim do século XIX, a proporção de mulatos cresceu de 10% para 41% da população total. Isso implica rápida miscigenação e casamentos inter-raciais e indica que a mobilidade social desse estrato era mais do que mera fantasia. A partir da segunda metade do século XIX, a ascensão social de mestiços no Brasil fez, efetivamente, com que tivéssemos mulatos como figuras de proa na literatura, na política, no Exército, e atuantes como ministros, embaixadores, e até presidentes da República. Esse padrão de ascensão social seletiva do mestiço só seria mudado decisivamente com a chegada dos milhões de europeus a partir do fim do século XIX.48
É a partir daqui que podemos entender a relação entre classe social e raça no nosso país. Ser considerado branco era ser considerado útil ao esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma de se embranquecer, fechada em outros sistemas com outras características. Branco era (e continua sendo) antes um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais do que a cor de uma pele. Embranquecer significa, numa sociedade que se europeizava, compartilhar os valores dominantes dessa cultura, ser um suporte dela. Preconceito, nesse sentido, é a presunção de que alguém de origem africana é “primitivo”, “incivilizado”, incapaz de exercer as atividades que se esperava de um membro de uma sociedade que se “civilizava” segundo o padrão europeu e ocidental.
Antonio Sérgio Guimarães percebe bem a relevância desse aspecto para a questão racial quando afirma:
No Brasil, o “branco” não se formou pela exclusiva mistura étnica de povos europeus, como ocorreu nos Estados Unidos com o “caldeirão étnico”; ao contrário, como “branco” contamos aqueles mestiços e mulatos claros que podem exibir os símbolos dominantes da europeidade: formação cristã e domínio das letras.49
No Brasil em vias de se tornar europeizado do século XIX, a posse real ou fictícia desses novos valores que tomam a nação de assalto vai ser o fundamento da identidade de grupos e classes sociais e a base do processo de separação e estigmatização dos grupos percebidos como não participantes dessa herança. A ânsia de modernização, de resto estampada na bandeira da nação nas palavras de “ordem e progresso”, passa, a partir dessa época, a dominar a sociedade brasileira como o princípio unificador das diferenças sociais, o princípio em relação ao qual todas as outras divisões devem ser secundarizadas.
É em nome dela também que passa a operar um novo código social nascente, uma nova “hierarquia social” que vai estipular os critérios que permitem e legitimam que alguns sejam vistos como superiores e dignos de privilégios, e outros sejam vistos como inferiores e merecedores de sua posição marginal e humilhante. A distinção entre os estratos europeizados em relação aos estratos de influência africana e ameríndia, com toda a sua lista de distinções derivadas tipo doutores/analfabetos, homens de boas maneiras/joões-ninguém, competentes/incompetentes etc., vai ser a base dessa nova hierarquia das cidades que se criam e se desenvolvem.
A posse, real ou
suposta, de valores europeus individualistas vai, dessa forma, legitimar a
dominação social de um estrato sobre o outro, justificar os privilégios de um
sobre o outro, calar a consciência da injustiça ao racionalizá-la e permitir a
pré-história da naturalização da desigualdade como a percebemos e vivenciamos
hoje. Obviamente, essa ordem não se impõe da noite para o dia. Em todo o século
XIX, essas transformações são capilares e cotidianas, mudando a ordem anterior
apenas aos poucos. Mas é importante notar a direção para que o novo vetor de
desenvolvimento aponta e perceber que ele começa em 1808, com a abertura dos
portos e a chegada da família real. Um segundo aprofundamento em direção à
ordem burguesa e capitalista ocidental se dá com a libertação dos escravos em
1888.
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