quarta-feira, 12 de junho de 2024

O PT e o atraso

O grande mérito histórico do PT é fazer com que o partido populista seja também um partido popular. Uma análise crítica do livro PT, uma história, de Celso Rocha de Barros (Cia. das Letras, 2022)

Pedro Faria

As modas acadêmicas seguem de perto as flutuações políticas. Na última década, com a ascensão da extrema-direita, os grupos de WhatsApp de Carlos Bolsonaro e a congregação de piratas arregimentadas sob a bandeira do bolsonarismo têm concentrado – com razão – as atenções dos acadêmicos e analistas brasileiros. As novas formas de organização dos pastores traficantes, traficantes coronéis, coronéis desmatadores e ocasionais cripto-piramideiros ocupam nossos antropólogos, sociólogos e politólogos (curiosamente os economistas não parecem se interessar pelo fenômeno).

O foco na boca de lobo do capitalismo brasileiro retirou a atenção de um tradicional objeto da ciência política nacional contemporânea, o Partido dos Trabalhadores (PT), justamente em um momento singular de sua história. É costume começar observando a fartura da literatura sobre o PT, sua organização e sua história, seja por suas origens únicas, seja pela sua proximidade com a intelectualidade brasileira. No entanto, justo quando o partido passou por suas maiores tribulações e desafios desde sua fundação, a literatura acadêmica sobre o partido não se fez presente no debate público. Nesse sentido, PT, uma história, de Celso Rocha de Barros, é uma contribuição oportuna e de qualidade.

A obra combina fundamentos acadêmicos sólidos com um direcionamento para um público amplo, objetivo raramente alcançado por autores de trajetória acadêmica. Do lado acadêmico, Celso traz ampla bagagem teórica, pleno domínio da literatura e farto material primário e secundário sobre a história do PT. O lado literário traz a construção da história do partido por meio da biografia de seus membros: tanto das grandes lideranças como Lula quanto dos milhares de militantes que construíram o partido e suas gestões, caso da biografia de Rosalina Santa Cruz que abre o livro, militante da VAR-Palmares, depois do PT e hoje professora da PUC de São Paulo. A técnica biográfica por vezes provoca soluços na leitura com seus parágrafos curtos e viradas rápidas, mas explicita as entranhas humanas que necessariamente compõem a história de uma instituição.

Militante do PT do Rio de Janeiro nos anos 1990, a relação de Celso com o partido define o arco narrativo que a obra constrói. Do lado positivo, a proximidade de Celso com o partido produz uma obra que respeita o principal partido político da nova república. “Se eu achasse que intelectual chegando com ideias prontas tem alguma chance de prosperar no Partido dos Trabalhadores, não teria entendido nada sobre o assunto do meu livro”, diz Celso nos agradecimentos ao final do livro. Ainda que tome sempre o lado da moderação do partido rumo ao centro, a obra respeita a realidade dos dilemas enfrentados pelo partido e não trata as decisões tomadas como fáceis. A experiência pessoal certamente contribui para a posição de respeito ao espírito do único partido brasileiro construído fora do Estado, tema recorrente na obra.

A partir de sua experiência pessoal, Celso desenvolve uma narrativa que tem dois momentos principais conectados pela entrada do partido como jogador sério na arena política brasileira: de um lado, o processo de formação do partido, de outro, as transformações que permitiram ao PT vencer a disputa pela Presidência da República. A obra traz um excelente panorama das correntes internas e dos movimentos e grupos – intelectuais, revolucionários, sindicais, negros, feministas, católicos – que se juntaram na construção do partido durante a década de 1980. Certamente, a profusão de movimentos, siglas e disputas internas do partido – que, como Celso enfatiza, não tinha sua sobrevivência nem um pouco garantida naquele momento – eram muito mais relevantes para quem tentava se orientar dentro do partido nos anos 1990 do que são para um militante que entrou na expansão do último ciclo eleitoral. Hoje importa mais saber quem fez qual política pública, em qual cargo e aliado a quem do que qual é a posição de pequenas correntes internas do partido que se distinguem da Articulação, corrente dominante.

Do ponto de vista do jovem Celso, também seriam urgentes os debates sobre o futuro da esquerda pós-soviética. No contexto da jovem democracia brasileira, a consolidação do PT como campo hegemônico da esquerda nas eleições de 1989 e 1994 abriu um debate sobre a relação do partido com a institucionalidade política nacional, praticante do mais moderno atraso mundial. O processo gradual de moderação, a construção de programas de governos factíveis (e não apenas panfletários) e o aprendizado com experiências de governos estaduais e municipais ocupam páginas cruciais do livro, guiando o leitor para longe das lideranças paulistas em caminhos que passam pelas prefeituras de Ribeirão Preto, Porto Alegre e Belo Horizonte.

O frequente retorno de Celso à vida de José Genuíno representa bem a ênfase nos dois eixos que apontamos: ex-guerrilheiro no Araguaia, Genoino entra na história do PT como grande interlocutor dos movimentos “identitários” e membro do Partido Comunista Revolucionário (PRC), que tratava o PT apenas como uma frente reformista para suas atividades revolucionárias. Na década de 1990, Genoino funda a Nova Esquerda, que se torna uma das principais linhas de moderação dentro do Partido. A renúncia da presidência do partido em 2005 e sua condenação no processo do Mensalão trazem o terceiro momento tanto da vida do deputado petista como do arco narrativo que Celso constrói.

O livro não termina no fim do governo Lula, mas há uma aceleração da narrativa a partir do início do governo Dilma e, especialmente, depois do impeachment da presidenta em 2016 – que Celso prefere, com uma cautela a meu ver excessiva e desnecessária, mas, pelo menos, explicitada, não chamar de golpe (o erro é achar que chamar de golpe implica renegar totalmente a legitimidade do Estado brasileiro posterior ao golpe). A partir do momento em que o PT retorna à oposição, a obra se reconfigura como uma história política concisa do Brasil recente: as exposições detalhadas sobre as correntes internas desaparecem e a narrativa se torna um trote rápido que atravessa os últimos oito anos com apenas um dos dezesseis capítulos do livro.

A aceleração se justifica em parte pela dificuldade de fazer uma história detalhada de eventos tão recentes: o livro é baseado nas dezenas de entrevistas com lideranças do partido que, é de se esperar, não abrirão o jogo sobre disputas recentes da mesma forma que comentam disputas de três décadas atrás. Ainda assim, caberia uma investigação mais completa sobre as diferentes reações e estratégias das alas do partido aos grandes momentos do grande “inverno” do PT: a disputa pela reação à prisão de Lula e as decisões diante da crise do governo Temer e da eleição de 2018 foram momentos intensos na vida interna do partido e na relação entre as cúpulas e a militância. A data de publicação do livro, logo antes da vitória na eleição presidencial de 2022, acabou por forçar o encurtamento da narrativa sobre o renascimento do PT depois de ter atingido o fundo do poço entre 2016 e 2018. Espero que uma nova edição faça uma revisão do último capítulo com mais detalhes.

O encurtamento temporal no pós-impeachment é acompanhado por um encurtamento geográfico também relacionado à perspectiva do autor: ainda que Celso reconheça a tese de ascensão do “lulismo” e do Nordeste como principal base eleitoral do PT, proposta pelo cientista político André Singer, não há um esforço sistemático de traçar a história do PT naquela região. Certamente esta não é uma limitação exclusiva de PT, uma história: reflete a persistência do eixo Rio-São Paulo na intelectualidade brasileira mesmo quando os principais centros de poder se deslocam cada vez mais, no campo da direita, para o “Grande Goiás” e, no campo da esquerda, para o Nordeste. De certa maneira, os encurtamentos refletem também a própria gênese do livro: a obra seria, inicialmente, uma série de ensaios políticos sobre a trajetória do PT e da democracia brasileira, mas o acúmulo de material acabou levando a uma proposta mais ambiciosa de traçar toda a história do partido. O livro acabou em uma posição interessante entre a narrativa histórica e a reflexão teórica. Certamente, o formato será estimulante para alguns leitores, como este, mas leitores em busca de uma narrativa “completa” dos fatos talvez se frustrem.

O encurtamento temporal e geográfico da narrativa de PT, uma história reflete a problemática teórico-histórica fundamental para Celso: o papel do PT na construção da social-democracia tardia brasileira. No arco narrativo construído pelo livro, o conceito de “social-democracia tardia” é a pedra fundamental. O dilema principal do PT, segundo o autor, foi a escolha entre ser um partido socialista – o que o forçaria a fazer uma reflexão séria sobre a queda do socialismo real soviético justamente quando começava a obter sucesso na arena eleitoral – e ser um partido social-democrata de estilo europeu. O livro narra com detalhes a maneira como a opção social-democrata acabou vencendo na prática, ainda que o PT tenha evitado – com razão, podemos dizer – fazer um fechamento da dimensão teórica da questão. Na teoria, a prática é outra e nem sempre é sábio tomar uma decisão.

No entanto, a escolha do conceito de social-democracia tardia como fundamento teórico exerce um enorme efeito gravitacional na narrativa. A noção de “tardio” traz enormes implicações para a leitura da história pressuposta pelo livro: pressupõe-se que a trajetória histórica esperada seria o amadurecimento simultâneo da economia e da democracia brasileira. Na medida em que o país se tornasse uma economia industrializada, um partido de origem sindical se confrontaria com um partido liberal/conservador representando os interesses do capital e tendo a classe média como principal eleitorado. Em países como o Brasil, esse processo seria “tardio” porque a transformação social e econômica do país começou com atraso em relação às sociedades europeias que servem de referência.

No entanto, como Celso reconhece no livro, até mesmo o desenvolvimento “tardio” foi abortado. O Brasil passou por um processo de desindustrialização precoce e intenso que começa nos anos 1980 e perdura até hoje. No campo político, o Partido dos Trabalhadores chegou de fato a se conformar como partido de uma classe trabalhadora urbana organizada (e, portanto, mais bem-situada economicamente). O PSDB, liderado por um intelectual de esquerda, acabou se situando na posição que se esperaria de um partido de centro-direita dentro de uma social-democracia. Contudo, o breve período de aparente social-democracia no Brasil não tinha fundamentos materiais: exatamente quando a conformação social-democrática se consolidava, a economia brasileira se reprimarizava a passos largos. O conflito PT-PSDB era apenas a superfície de tensões entre as elites tradicionais brasileiras e as tentativas – ideologicamente variadas – de se modernizar o país.

A leitura de que esse período foi uma experiência social-democrata tardia talvez seja um desejo por demais otimista de se manter no campo das aparências. O próprio Celso reconhece esta realidade em uma citação que serve de epígrafe ao capítulo doze: “No fundo, nós disputamos quem é que comanda o atraso”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em entrevista de 2005. Aqui está o ponto fundamental, que Celso Furtado já havia percebido na saída do golpe de 1964, em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina (1966): o conflito político brasileiro reproduzia o conflito econômico entre uma elite econômica atrasada e a enorme massa de trabalhadores precarizados amontoados nas grandes cidades. O conflito político se dá, portanto, entre os representantes políticos dessa elite atrasada, que dominam as cidades médias brasileiras por meio de atividades econômicas exportadoras agrícolas e minerais, e um partido populista, que capta os anseios dispersos e desorganizados das massas urbanas heterogêneas. O grande mérito histórico do PT é fazer com que o partido populista seja também um partido popular. Seu líder não é mais um membro das elites rurais ou urbanas que lidera as massas urbanas heterogêneas por meio do carisma. Lula é um operário e o PT é um partido construído por baixo pelas próprias massas heterogêneas.

Ainda que, de fato, muito dos debates intelectuais no período de formação e consolidação do PT tenham se dado nos termos de uma discussão sobre a social-democracia fora da Europa, esta não me parece a melhor abordagem para fazer sentido da história do partido, principalmente a história mais recente. É melhor compreender a história do partido a partir da ideia de que, pela primeira vez desde o império, a liderança da tentativa de superar o atraso econômico, social e político (e, portanto, de negociar com e/ou enfrentar os representantes políticos do atraso) passou para as mãos de uma força política genuinamente popular.

É essa mudança que explica a sanha mendaz com que os representantes do atraso atacaram os governos petistas nas décadas de 2000 e 2010. Os governos do PSDB representavam uma técnica de governo do atraso por parte da elite política vinculada ao núcleo moderno/industrial da economia brasileira. Governaram aliados à “alta” elite do atraso, politicamente representada no PFL ou a elite mais baixa representada pelo “centrão” (que, como propõe o jornalista José Roberto de Toledo, deve ser corretamente chamado de “arenão”). No que pese o caráter conciliador que o PT e Lula assumiram, a mera presença de um partido popular no poder indicava que as elites do atraso tradicionais poderiam perder o controle de partes cada vez maiores do Estado.

Não é por nada que o “preço” cobrado pelos representantes políticos dessas elites pelo uso do Estado brasileiro – a ser pago legal ou ilegalmente – aumentou exponencialmente nos governos petistas: escândalos de corrupção para o braço político, investimentos em novos brinquedos para o braço armado, juros altos para o braço financeiro, crédito fácil e promoção de campeões nacionais no exterior para o braço industrial (ou o que sobrou dele). Tudo isso para que fossem permitidas o mínimo de instituições republicanas, como os órgãos de controle, ou o mínimo de redução da desigualdade econômica. Da mesma forma, quando a crise política se abateu sobre a democracia brasileira – mais uma vez, crise promovida pelo principal representante da direita, Aécio Neves, por conta de sua incapacidade de ganhar eleições no voto – foi sobre o PT que a espada da criminalização da política caiu primeiro. Note-se, não se trata de assuntos que não são abordados no livro, muito pelo contrário. É justamente a presença dessa consciência que me leva a questionar se não seria melhor partir de outro ponto de vista teórico.

Se a teleologia da social-democracia brasileira não serve para a compreensão da história política do país (e, portanto, para o estudo da história do seu principal partido), tão pouco permite boa leitura das políticas econômicas adotadas pelos governos petistas, em particular pela presidenta Dilma Rousseff. Com a narrativa já em franca aceleração, a análise que Celso faz das políticas adotadas por Dilma, principalmente a sua relação com a dinâmica política, é bastante superficial. Apesar de citar o excelente Valsa Brasileira da economista Laura Carvalho e A Crise do Lulismo, de André Singer, Celso não faz bom uso da profunda análise das interações entre o governo e as diferentes frações de classe no capitalismo brasileiro, como fazem os dois autores em questão. O “modelo” utilizado é mais simples: economia em alta é mais popularidade e mais margem de manobra política para o mandatário no poder. Perde-se o refino que uma abordagem mais detalhada poderia obter: o governo Dilma é incompreensível se não for entendido do ponto de vista do desmanche da coalizão capital-trabalho que sustentou os governos petistas.

Principalmente, perde-se de vista a ousadia da política econômica de Dilma e seu significado dentro do PT e da esquerda brasileira. A continuação e o aprofundamento da política industrial ao redor da Petrobrás não podem ser julgados apenas do ponto de vista do crescimento econômico. A política econômica de Dilma era uma política ambiciosa de superação do atraso econômico brasileiro por meio da recriação de um polo industrial do país, dessa vez centrado na Petrobras e não apenas na indústria automobilística. A proposta seria utilizar a Petrobras para impulsionar o desenvolvimento brasileiro, calcado no excedente produzido pelo pré-sal (que, por sua vez, era fruto do desenvolvimento científico fomentado pelos governos petistas). O livro capta apenas que Dilma não tinha apoio político para o que quer que estivesse fazendo, que não transparece no texto de Celso. Soma-se a isso a tentativa de fazer uma “faxina” no Estado – esta sim, possível de ser captada pelo paradigma teórico de Celso – e estavam dadas as condições para o impeachment.

A dificuldade em captar o sentido – no que pesem os erros, que não se pretende negar aqui – da política econômica de Dilma, além de ser fruto da escolha de não ler o Brasil a partir do prisma da disputa entre um partido popular e representantes do atraso econômico e político, também é fruto da ausência de reflexão sobre a posição do Brasil na ordem econômica internacional. Em entrevista com o jornalista Breno Altman sobre o livro, Celso afirma que o imperialismo não é uma questão relevante para a obra, o que de fato é perceptível na leitura. Uma perspectiva atenta ao imperialismo entenderia por que o PT não conseguiu fazer com o pré-sal o que a Noruega, social-democracia tão valorizada por Celso, fez com suas reservas de petróleo. A Lava-Jato, a privatização por dentro da Petrobras e mudança no regime de partilha deixaram o núcleo do projeto de desenvolvimento proposto por Dilma em frangalhos. As investigações não apenas perseguiram quadros do PT, mas atacaram as próprias empresas, destruindo a capacidade de investimento do país com base em delações premiadas ao gosto do juiz. Os governos Temer e Bolsonaro se aproveitaram da destruição para privatizar refinarias e outros equipamentos da Petrobras a preços módicos para fundos estatais e privados estrangeiros, dando ao capital estrangeiro controle sobre monopólios regionais.

Essas questões, tão importantes nos debates internos do PT e da esquerda brasileira, acabam passando despercebidas. O prisma interpretativo calcado na ideia de “social-democracias tardias” não consegue captar a desigualdade sincrônica dentro da ordem econômica mundial: na perspectiva da obra, o atraso é apenas temporal. No entanto, como nos mostram as tradições de pensamento derivada da Cepal, o atraso é contemporâneo do – e produzido pelo – avanço das economias centrais. A história do PT, inclusive dos erros do partido em política econômica e de seus debates internos, não pode ser analisada em sua completude se ignorarmos o papel do imperialismo.

A tese final da obra também pode ser analisada na mesma toada. PT, uma história conta a história de um partido que não participou da redemocratização “por cima” da década de 1980. Enquanto o MDB de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves negociavam com o regime militar, o jovem partido de esquerda se preocupou com a democratização “por baixo”, agregando e dando voz aos movimentos sociais – negro, feminista, católico, de bairro, campesinos – e sindicais. Segundo Celso, foi a opção pela via de baixo que permitiu ao PT ascender quando a transição por cima naufragou no fracasso econômico do fim dos anos 1980. A tese de Celso sobre o futuro do PT é que o partido enfrentará a tarefa histórica de reorganizar a democracia brasileira após a crise do período 2013-2023 (após a tentativa de golpe de 8 de janeiro, já podemos dizer que a crise continua). No entanto, dessa vez a tarefa histórica do PT será atuar “por cima”, como governo (o livro foi publicado antes das eleições, mas Celso antecipa a vitória de Lula).

Aqui, mais uma vez, cabe levar a sério a frase de FHC e a ideia de que nunca houve uma social-democracia no Brasil. Uma social-democracia precisa de dois lados que se reconheçam mutuamente como disputantes legítimos que disputam um Estado democrático. É justamente isso que o Brasil não tem. O grande desafio para que o Brasil tenha uma democracia (e, quem sabe, uma social-democracia) estável é a falta de uma direita com um programa de modernização aplicável à realidade brasileira. Esse programa, quando existiu, durou pouco, e nunca conseguiu vencer eleições sem se desvincular dos representantes do atraso e das pautas do atraso.

A partir do sucesso do PT, o que existia de modernizador na direita brasileira cedeu aos poucos para um programa reacionário nos costumes e aderente a um liberalismo tacanho na política econômica: não propunha nada novo no combate à desigualdade; não possuía nenhum plano econômico estruturado além de transformar o Brasil em um eficiente produtor de commodities agrícolas e minerais; se dispunha a vender o patrimônio do Estado sem planejamento e apenas com vistas a facilitar a acumulação predatória por agentes nacionais e internacionais. Com Temer e, principalmente, com Bolsonaro, a direita brasileira reabriu a tutela militar explícita, trazendo-os de volta para a política – ou, o que seria mais correto dizer, trazendo às claras a atuação política dos militares, que nunca deixou de existir.

O que falta para termos uma democracia estável, portanto, está no lado direito do espectro. A direita brasileira não consegue se desvincular de um capitalismo atrasado e predatório e das práticas políticas associadas a esse modo de produção. Poderíamos dizer que Lula, governando uma frente ampla que conta com a parte da direita que demonstrou algum apego à democracia, tem como tarefa histórica permitir (e talvez fomentar) esse campo dando guarida para que expoentes como a ministra Simone Tebet e o vice-presidente Geraldo Alckmin estabilizem o campo destruído pela marcha rumo à extrema-direita do PSDB.

No entanto, há aqui um grande problema: o que restou da direita-supostamente-democrática não parece muito interessado em trabalhar com o presidente Lula e muito menos com o PT. A imprensa empresarial não esperou o governo sequer tomar posse para retomar os ataques. O governador Eduardo Leite parece ser mais incapaz de estender uma mão para o governo federal do que o bolsonarista Tarcísio Freitas, este orientado por Gilberto Kassab. A tentativa de golpe de 8 de janeiro fortaleceu temporariamente a coalizão pela democracia que Lula montou, mas essa força foi efêmera: as forças políticas e econômicas que sustentaram momentaneamente o governo Lula já retornaram à oposição, inclusive de propostas que saíram de seus próprios programas eleitorais. A imprensa empresarial se divide entre apoiar o combate ao golpismo e transmitir as opiniões (indevidas e, para a ativa, ilegais) de militares. O mercado financeiro suspendeu a lua de mel com Fernando Haddad e o Congresso retomou o “municipalismo” de Arthur Lira – eufemismo para a apropriação de recursos federais para uso descoordenado por deputados.

A questão fundamental é que uma “direita moderna” não tem lugar na estrutura socioeconômica do país. O capitalismo brasileiro é dominado pelo atraso. Representantes políticos do capitalismo atrasado e primarista brasileiro, como a ministra Simone Tebet, se descobrem completamente expostos às intempéries da política quando se afastam da cobertura de seu campo econômico. A imprensa de inclinação liberal também hesita pelos mesmos motivos: sem o agro pop e o capitalismo financeirizado, quem os bancará? Permitir que o PT conduza a reconstrução da democracia brasileira é, portanto, um grande risco para esses setores.

Afinal, por mais que o perfil do PT tenha mudado nas últimas duas décadas, o partido ainda é o partido dos movimentos sociais. De fato, as experiências de governos estaduais mais recentes do partido representam caminhadas rumo ao centro e pode-se dizer que há um processo de “moderação” dentro de movimentos sociais como o MST. Desde os governos Lula, a militância do partido e seus quadros crescem também a partir da presença do partido no Estado. Mas isso não muda a natureza do partido. Pelo contrário, a eleição de 2022 e o início do governo marcaram uma reaproximação dos movimentos sociais com o partido – ainda que agora já se perceba outro distanciamento causado pelo excesso de concessões feitas pelo governo à fração liberal minoritária (em votos) da frente ampla. Devemos acreditar que o que restou do campo da direita – aqui incluídos a imprensa, os sindicatos patronais, além dos partidos políticos – aceitará ser conduzida por um operário da mesma forma como aceitou ser conduzida por Tancredo Neves, ele próprio um membro das elites interioranas de Minas?

Não há mais uma disputa pelo direito de comandar o atraso. Há o PT e há o atraso.

Pedro Faria é petroleiro, economista (UFMG) e doutor em história (Universidade de Cambridge).



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12