Porto Alegre (RS), Pátio de veículos totalmente alagado/ Foto: Rafa Neddermeyer/ Agência Brasil
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Os gestores dos órgãos de reconstrução e construção das alternativas ao que aí está não podem e não devem é visar objetivos eleitorais com seus atos de Governo na crise
“Um animal ou um deus não pode cair na barbárie, pois o animal, puro instinto, ou um deus, pura razão (…) estão abaixo ou acima do humano. Só o homem (…) feito de razão e entendimento, pode deixar campo livre às pulsões destrutivas do seu ser ou dominá-las numa obra de civilização.” (JF Mattéi, A barbárie interior, p. 58).
1.
Refazer o conceito de “civilizado”, de barbárie e de empatia é uma necessidade histórica e moral para reconstituir os melhores legados da modernidade.
“Época de textos curtos e respostas objetivas”, tenho dito aos meus amigos de todas as ideologias e de todo o espectro político democrático, que se propõem a debater e escrever sobre a superação da catástrofe que assola o Rio Grande do Sul. De dentro da primeira fase de respostas – ajuda humanitária, aceleração da proteção social por todas as instâncias do Estado e remendo nas ruas e estradas – já emerge uma segunda fase.
Os esboços da segunda fase estão aí: recuperação da estrutura viária e dos serviços destruídos pela “enchente”, que vão renascendo para normalizar a manutenção do muro, a circulação urbana, o transporte intermunicipal e o trânsito de mercadorias. A primeira e a segunda fases recompõem o normal da vida, mas elas não mudam as perspectivas de futuro nem promovem uma comunhão amigável, da produção e da vida comum, com natureza em rebelião. Isso é o que a terceira fase deve oferecer.
As duas primeiras fases permanecerão integradas até o fim da reconstrução do Rio Grande do Sul e fundem-se na reconstrução das cidades e da região, com a recuperação das agências do estado, científicas e técnicas, para empurrar a formação de um país mais desenvolvido, mais igual e ambientalmente reformado. Se o Governo federal tiver – e acredito que o tenha – a capacidade, a partir da tragédia presente na catástrofe, de formatar um crescimento com sustentabilidade ambiental.
2.
A terceira fase é a mais complexa e difícil: construir, não apenas reconstruir o que foi destruído, o que significa que, partir do Rio Grande, possamos inspirar para todo o país, um novo modelo de desenvolvimento, com altas taxas de crescimento, que combine produção de energia limpa, sustentabilidade ambiental para a indústria e a agricultura, com redução das desigualdades regionais e sociais, para sermos, não somente mais fortes, mas também mais justos.
O gerenciamento qualitativo, a definição de metas, a apuração dos custos e a definição do “capital humano” – necessários para o cumprimento das fases – se opõe ao espontaneísmo supostamente “liberal”, dos que querem ditar normas de comportamento político no desastre. Ora, este gerenciamento da gestão pública é uma política de Estado e os que a promovem, se não podem não devem interferir nos processos de natureza eleitoral, devem ser profundamente politizados, no sentido que é dado pelo Preâmbulo da Constituição Federal. Antes de falar bobagens leiam pelo menos seu Preâmbulo.
O liberalismo ressequido alega que “a política deve ficar fora” de qualquer das fases da recuperação da cidade ou da região, talvez porque não queira identificar os responsáveis, não pelo cataclisma (que é efeito do conjunto de desregulações globais), mas porque seus “síndicos” não tomaram as providencias técnicas e institucionais que deveriam tomar para mitigá-las.
O que vai definir etapas, recrutar pessoal, buscar financiamentos e colocar o estado a funcionar com qualidade e isenção partidária, é precisamente a grande política. Os gestores e líderes da “recuperação”, de quaisquer partidos do campo democrático, são os que vão estruturar políticas de Estado, que são opostas às políticas que a maioria do mundo realiza, que multiplicaram os efeitos da tragédia climática e nos levaram a esta situação de desastre.
Os gestores dos órgãos de reconstrução e construção das alternativas ao que aí está não podem e não devem é visar objetivos eleitorais com seus atos de Governo na crise, mas, se deixarem de ser políticos no sentido ético-moral e grandioso do termo, poderão ser apenas cronistas impassíveis da barbárie. Ou papagaios do liberalismo ressequido, adotado por aqueles grandes que detestam que o Estado cumpra com as suas funções públicas, mas sempre são os primeiros a exigirem não milhões, mas bilhões, do Tesouro Federal e Estadual, para reporem seus grandes negócios em pé.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios) [https://amzn.to/3ReRb6I]
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