Fontes: Esquerda Online (Brasil) [[Imagem: Golpistas entrando no Palácio do Planalto pela rampa que parte da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil]
Por Gabriel Santos
Traduzido do Português para Rebelião por Alfredo Iglesias Diéguez
Neste artigo (o segundo de uma série), o autor analisa a correlação de forças no atual contexto econômico brasileiro e as alternativas que se apresentam a Lula.
Ao analisar o nosso país no contexto do mercado mundial, precisamos caracterizá-lo com base nas relações que estabelece com outras nações. Dentro do modo de produção capitalista, os diferentes estados burgueses, como representações sócio-históricas de diferentes estados-nação, ocupam diferentes posições no cenário político-econômico mundial. Essas posições se devem à sua inserção no mercado como países centrais ou periféricos e ao papel de cada país no mercado mundial, ou seja, dependem da chamada divisão internacional do trabalho [1].
Esta divisão é o resultado dos processos de formação destes Estados, da relação que se estabeleceu entre eles no nascimento do capitalismo e na transição deste para a sua fase superior, o imperialismo. Esta fase superior do capitalismo, segundo Lenin, é caracterizada pelo predomínio do capital financeiro e fictício, pela tendência à formação de monopólios e por uma disputa internacional entre Estados pelo mercado.
Para observar a posição de cada Estado-nação no imperialismo, é necessário analisar a sua história e inserção no período anterior, o desenvolvimento da sua indústria, dos seus recursos humanos, a dimensão e dinâmica da sua economia, e o stock de capital acumulado, e a capacidade desse Estado de manter outros Estados sob o seu controle e influência, bem como de permanecer numa relação de independência em relação a outros países. Neste sentido, podemos dizer que sob a fase imperialista do capitalismo o mundo está basicamente dividido entre os países imperialistas (aqueles que exercem o seu poder político e militar sobre outro país através de chantagem financeira, ocupação militar e controlo do mercado mundial) e países periféricos. [2].
Quando olhamos para o Brasil e sua posição econômica, precisamos ver qual o nosso grau de autonomia em relação ao mercado mundial, qual o grau de desenvolvimento tecnológico dentro de nossas fronteiras, como ocorre o processo de exportação e importação de capitais e o que É o desenvolvimento das nossas forças produtivas. Nosso país é uma nação periférica no cenário mundial, não somos nós que decidimos as regras do jogo. Nossa formação econômico-social é a de um capitalismo desigual e dependente. Desigual, porque as regiões do país se desenvolveram de formas diferentes, independentemente de haver um atraso colonial em relação ao capitalismo central. Dependente, o que significa que este atraso faz com que o nosso desenvolvimento dependa sempre das nossas relações com o exterior, o nosso país no mercado mundial tem um papel de exportador de matérias-primas e de importador de produtos manufaturados.
Os limites do nosso regime tributário
Os regimes fiscais que se estabelecem em formações econômicas e sociais como a nossa são o resultado de uma soberania restrita. A nossa independência política e econômica é limitada pelas potências imperialistas.
Ao analisar os países da América Latina podemos observar a utilização de uma lógica fiscal limitada e dependente que se manifesta nos seguintes aspectos.
A primeira, defende que as estruturas tributárias se baseiem em impostos indiretos de natureza regressiva, pois na prática esta carga fiscal regressiva liberta os mais ricos do pagamento de impostos equivalentes aos seus rendimentos e através dos impostos indiretos recai sobre os bens de consumo diário um dos principais. meio de financiamento público. A consequência é que as classes populares são as que mais acabam sofrendo a carga tributária.
O segundo elemento dos regimes tributários dependentes é a liberação da carga tributária do circuito primário-exportador. As grandes empresas, especialmente as agrícolas, estão isentas do pagamento de impostos sobre as exportações, o que significa que a massa assalariada da população suporta uma maior carga fiscal sobre o orçamento do Estado.
Por fim, no que diz respeito ao formato de refinanciamento das dívidas públicas, o modelo atual foi estabelecido no regime ditatorial e não foi modificado. Baseado na “recompra” garantida de títulos da dívida pública, este modelo se sustenta graças à contínua expansão da dívida, com absoluta independência em relação à capacidade produtiva do país, e ao financiamento de bens de capital.
Este modelo teve consequências graves, desde logo, no crescimento da dívida bruta mesmo num contexto não deficitário, a que se soma o facto de a dívida assumir o estatuto de agente financeiro, quer anulando riscos ou afirmando-os, quer, principalmente, transferindo liquidez valor da economia brasileira que pertence ao Estado e para os bolsos da burguesia rentista.
O atual sequestro do orçamento público, um sistema tributário regressivo, o atual modelo fiscal brasileiro - em que se valoriza a liquidez de capitais extremamente voláteis e de curto prazo, e a aquisição de títulos da dívida pública através de altas taxas de juros - fazem parte do integração do nosso país no atual mercado mundial, definido pela acumulação financeira globalizada.
Como consequência desta integração, iniciada nos primeiros anos da Nova República [N. da tradução: a 'Nova República' ou VI República Brasileira, refere-se ao período que começou após o fim da ditadura brasileira (1964-1985) e continua até hoje], nosso país está cada vez mais vulnerável no mercado externo. As novas exigências da divisão internacional do trabalho e do novo regime de acumulação internacional impõem um novo envelope para as mesmas trocas desiguais e a mesma dependência comercial e tecnológica de sempre, sobre as quais gira a relação centro e periferia do sistema mundial. Da mesma forma, observamos o surgimento da dependência dos sistemas financeiros e a transferência de excedentes sob a forma de rendimentos. As regulamentações do Banco Mundial expressam os interesses financeiros do imperialismo e são uma forma de limitar as ações dos governos dos países periféricos.
Os estados da periferia da capital sofrem uma transferência permanente das suas riquezas, além de não exercerem qualquer controlo sobre os fundos públicos, que estão subordinados às políticas macroeconômicas ditadas pelos países imperialistas. No caso brasileiro, esta dinâmica monetário-financeira do padrão de acumulação global acaba por impor uma baixa taxa de crescimento econômico, ao mesmo tempo que amplia a concentração da riqueza e mantém uma elevada taxa de juros que contribui para a desindustrialização do país.
Ao longo da Nova República, o orçamento público foi objeto de diversas tentativas de restringi-lo por meio de medidas legais e leis [3], processo que culminou com a aprovação da Emenda Constitucional 95/16, expressão máxima do sequestro do orçamento público . e o regime fiscal de dependência, uma vez que compromete o orçamento fiscal com despesas financeiras e reduz ao máximo as despesas sociais. A atual estrutura fiscal, apesar de as condições serem melhores, não inverte a lógica de asfixia do orçamento público, o que implica uma subordinação do regime fiscal em relação ao tripé neoliberal: metas de inflação, superávit fiscal primário e flutuação cambial. avaliar.
A crise estrutural da economia brasileira e a disputa pelo orçamento
A Nova República e a Constituição de 1988 inauguraram um modelo de proteção social progressista sem precedentes no nosso país. Contudo, apesar do aumento das despesas sociais, mantém-se um sistema tributário conservador que estabelece uma arrecadação regressiva incapaz de sustentá-la. Houve, portanto, uma dissociação entre a linha política (universalização e gastos sociais) que se expressou como a materialização da norma jurídica, e a linha econômica (modelo neoliberal).
O confronto pela aprovação do orçamento público tornou-se a norma da Nova República, onde por um lado assistimos à implementação de despesas sociais -relacionadas com direitos laborais, pensões, segurança social, educação e saúde-, e por outro lado , ao superávit primário e à transferência de receitas para o setor superior da burguesia através da dívida pública.
A correlação de forças sociais após o fim da ditadura militar conferiu uma posição majoritária a favor da gratuidade da educação e da saúde pública; Contudo, nessa correlação de forças, essa posição popular não foi suficientemente forte para criar a possibilidade (ou mesmo uma estratégia) de superação do neoliberalismo. Apesar disso, a burguesia e os seus representantes no parlamento tiveram dificuldades em esvaziar o orçamento das rubricas sociais, pelo que tiveram que adotar outra táctica que lhes permitisse reduzir progressivamente a despesa pública.
Os partidos políticos de direita, a mídia e a burguesia estabeleceram um debate ideológico que buscava estabelecer uma nova maioria a seu favor, que apoiasse a ideia de que os direitos sociais e sindicais geravam gastos desnecessários e ao mesmo tempo não ofereciam nenhum resultado e foram um atraso para o país. Afirmavam que o Estado havia crescido excessivamente e estava sobrecarregando o indivíduo, que o que ele precisava era de mais liberdade e menos burocracia para empreender. Da mesma forma, os defensores deste mesmo discurso sustentam que cabe ao mercado gerir e agir, uma vez que o Estado estava inoperante, pelo que a solução proposta é reduzir o Estado com privatizações e eliminar ou reduzir os direitos sociais porque são muito caros.
Os governos petistas procuraram dar resposta às reivindicações sociais e à universalização dos direitos sociais, ao mesmo tempo que promoveram uma tímida redução da desigualdade de rendimentos, que manteve estável a concentração da riqueza. Neste sentido, deve dizer-se que os direitos conquistados e o aumento dos rendimentos da classe trabalhadora e do povo não foram financiados pelo confisco da propriedade ou dos rendimentos da elite econômica, nem mesmo por mudanças estruturais na nossa economia, mas foram fruto de possibilidades conjunturais e da capacidade política de gestão dos governos petistas.
Assim, a universalização dos serviços sociais garantida na Constituição de 1988 e materializada durante os primeiros anos do Governo do PT atingiu o seu limite pela mesma razão que levou ao aumento da precariedade como consequência da ausência de um modelo econômico que sustentasse essa materialização dos direitos sociais. O eixo central da nossa economia não foi alterado, de modo que ultrapassou a primazia do setor primário-exportador para contar com uma economia industrializada, e o sistema tributário regressivo foi mantido.
O quadro da Nova República é o de um Estado que redistribui o excedente social para além das capacidades produtivas do país. Esta contradição entre a política, manifestada nas normas jurídico-políticas, e a economia, precisava de ser resolvida mais cedo ou mais tarde.
A burguesia procurou uma solução como classe para esta contradição, que provocou o golpe de Estado contra Dilma : um movimento político para resolver os seus interesses, ou seja, aumentar a taxa de lucros. Com o golpe de Estado a nossa elite econômica procurou, por um lado, aumentar diretamente a sua mais-valia, através da destruição dos direitos laborais e da capacidade organizacional da classe trabalhadora; e, por outro, ampliar o “espaço” de circulação de capitais, abrindo novas fronteiras através da privatização e maior apropriação do orçamento federal, o que foi conseguido através da eliminação de uma série de programas sociais considerados demasiado onerosos.
A burguesia tentou estabelecer uma correlação entre a política e o modelo econômico; No entanto, não tinha capacidade suficiente para estabelecer um novo padrão. Por esta razão, coube ao fascismo brasileiro tentar desenvolver o seu programa político de destruição dos direitos sociais. Porém, a ação política do fascismo devora aqueles que o ajudaram a conquistar um lugar no mundo, pois a norma jurídico-política do fascismo, literalmente a força, exige uma mudança completa de regime político para se estabelecer, o que foi contra os interesses de parte do fascismo. da nossa burguesia nacional, de parte da burguesia imperialista, de algumas instituições do Estado (como o STF), dos próprios grandes grupos de comunicação social e de elementos nascidos dentro da própria Constituição de 1988, como alguns partidos de direita.
A situação atual é que graças à existência de uma figura com a capilaridade de Lula, que expressa as contradições da luta de classes da segunda metade do século XX, e da Frente Ampla liderada pelo PT, foi possível derrotar fascismo eleitoralmente, bem como a tentativa de um novo golpe de estado [N. tradução: refere-se ao golpe ocorrido em 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Bolsonaro atacaram as sedes das principais instituições do Estado brasileiro: Palácio do Congresso Nacional, Palácio do Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto ( sede da Presidência da República), localizada na Praça dos Três Poderes, em Brasília].
Contudo, a situação de crise permanece e se manifesta de duas formas: primeiro, pelo fato de a crise da norma jurídico-política não ter sido resolvida ou estabilizada, algo que fica evidente na flagrante crise institucional, na crise de governabilidade e o modelo presidencial e na disputa acirrada pelo orçamento. E, em segundo lugar, que a coligação política formada para impedir a consolidação do fascismo no poder não concorda sobre a direção que o orçamento federal deve tomar.
A luta de classes começa no estômago
“Os direitos humanos começam com o pequeno-almoço”, disse certa vez Léopold Senghor, um dos grandes pensadores do século XX. Podemos dizer que a luta de classes começa no estômago. Um governo que não enfrenta o problema da fome e das necessidades alimentares básicas da população é um governo preso. Neste sentido, é estratégico para a sobrevivência do Governo Lula, bem como para que a sua popularidade continue aumentando, a geração de empregos, a redução do custo de vida e aumentos salariais, continuar enfrentando o problema da fome.
Sem estimular a organização popular, o Governo fica refém do Congresso e com poucas possibilidades de enfrentamento ao neoliberalismo. Pelo contrário, entretanto, a extrema direita continua a mobilizar e a opor-se ao Governo nas ruas e no parlamento. Neste sentido, para reverter a situação histórica em que nos encontramos, é necessária a unidade em torno de bandeiras democráticas que bloqueiem a extrema direita e a construção de um campo popular que se oponha ao discurso neoliberal. Algo que só será possível com a mobilização extraparlamentar das mais vibrantes forças culturais, políticas e sociais do nosso país.
A construção, dentro das possibilidades atuais, de um novo regime de política macroeconômica é uma necessidade: desafiar a tripé neoliberal e procurar a acumulação de forças sociais para superar o padrão de desenvolvimento nacional baseado no aprofundamento da nossa dependência do mercado mundial, é. uma batalha que temos que travar. As forças de esquerda podem e devem procurar algo além do simples ato de governar dentro dos estreitos limites do modelo liberal.
A possibilidade de construir um novo Brasil, que supere os padrões estabelecidos nesta terra desde a sua invasão, é uma tarefa gigantesca. O caminho para alcançar este objectivo será longo, embora possamos dar os primeiros passos agora.
É necessário que o governo federal assuma a vanguarda de um movimento institucional e político que coloque as políticas públicas, os gastos sociais e o Estado no centro de um novo modelo de crescimento, desenvolvimento social e ecológico para o Brasil.
Notas[1] É válido salientar que o lugar de um país no sistema internacional de Estados não corresponde a um sinal absoluto de igualdade com o papel que ocupa na divisão internacional do trabalho, apesar de isto ser verdade na maioria dos países. casos, exceções podem e existem. Isso ocorre porque a política e a economia são campos distintos. Apesar de estarem intrinsecamente conectados, não são a mesma coisa; existe uma relação dialética entre eles. Na medida em que um determinado país avança as suas relações políticas de autonomia perante outros e altera as suas relações com determinados países, começa a avançar a sua dependência econômica, o oposto também é verdadeiro para esta equação. Tal país pode ter uma posição subordinada e dependente na divisão internacional do trabalho, mas no cenário geopolítico ter uma posição independente em relação ao imperialismo. Sim, hoje da Venezuela e do Irã, entre outros.[2] Existe uma grande variedade de tipos dentro da categoria de países periféricos, o que está relacionado com um maior ou menor grau de liberdade política em comparação com o capitalismo, entre os quais podem ser mencionados: estados coloniais (Palestina) e semicoloniais. estados (Sudão, Iraque, etc.), protetorados (Panamá, etc.), estados submetropolitanos (Coréia do Sul, etc.), estados híbridos (Brasil, etc.) e estados independentes (Cuba, Venezuela, etc.).[3] Podemos citar a partir da perda da capacidade federativa dos estados, a Lei 9.496/97. A Lei de Responsabilidade Fiscal 101/2000. A Emenda Constitucional 95/2016.Fonte: https://esquerdaonline.com.br/2024/07/23/economia-ea-luta-de-classes-no-governo-lula-parte-2/Veja a primeira parte da matéria: Economia e luta de classes no governo Lula
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12