terça-feira, 2 de julho de 2024

Na luta contra o fascismo, basta ser “anti-sistema”?



No meio da ascensão da extrema direita, a esquerda anticapitalista enfrenta um debate: deveria radicalizar e ocupar o espaço “anti-sistema” ou concentrar-se na preservação e defesa das conquistas sociais existentes?

O resultado das eleições europeias chocou toda a gente. A extrema direita fez progressos significativos no seu projeto de poder e ainda aguarda o resultado de processos muito promissores do seu ponto de vista, como as eleições francesas e americanas, onde Le Pen e Trump poderão obter a maioria eleitoral. No Brasil, a resistência e a força do fascismo também impressionam. Apesar da condenação de Bolsonaro, o Bolsonaroismo continua repleto de iniciativas políticas numa ofensiva que não dá trégua ao Governo. Nenhum escândalo ou erro de cálculo pode abalar os seus sólidos 35% da sociedade.

Ao discutir esta realidade, muitos ativistas e lutadores sociais levantaram um argumento interessante. Foi dito que a direita cresceu porque “ocupou o espaço antissistema que deveria pertencer à esquerda”. Com variações, este é o principal argumento de quem considera que, na luta contra a direita, se trata de lutar por esse espaço. Talvez se fôssemos mais radicais? E se deixássemos mais claro que somos “contra tudo e contra todos”? E se convencêssemos as pessoas de que a verdadeira força antissistema é a esquerda? Pois bem, se o radicalismo ganhou força na sociedade, sejamos ainda mais radicais! Argumentos deste tipo têm sido expressos com frequência crescente em debates e fóruns.

Este argumento faz sentido? Achamos que não. Partimos da hipótese de que a luta contra a extrema direita não envolve a contestação de qualquer espaço supostamente “antissistema”. Na verdade, se continuarmos neste caminho, poderemos perder oportunidades importantes e piorar as coisas. Abordaremos essa questão analisando a situação política brasileira. Vamos ver.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que a esquerda anticapitalista é, de facto, “anti-sistema”. Estrategicamente, lutamos pela reviravolta radical de toda a ordem social e política vigente, rumo à construção de uma sociedade socialista, ou seja, de outro sistema social, baseado em outros princípios econômicos, políticos e culturais. Nunca devemos esquecer que esta é a nossa natureza. O abandono de uma estratégia de transformação radical tem sido a causa da adaptação reformista e do declínio de uma série de organizações que se dissolveram em movimentos amorfos de natureza ampla e moderada. Sim, somos “anti-sistema” e isso é importante. Sempre foi e sempre será.

Em segundo lugar, a ansiedade que toma conta de uma ampla camada de activistas é compreensível. Ajudamos a eleger o governo Lula, com muita dificuldade e com um programa certo. Mas com o passar do tempo este governo recebe golpes de todos os lados e mesmo assim não decide lutar, não luta de forma coerente pelas bandeiras que o elegeram, preferindo a conciliação permanente com os setores mais retrógrados. Isto afetou negativamente a esquerda, que perde entusiasmo e motivação e, portanto, força política. Diante disso, é compreensível que a resposta de um setor seja a radicalização, como está fazendo a extrema direita.

Mas vamos examinar mais de perto esse problema. É verdade que a direita “ocupou um espaço antissistema”? Achamos que não. A seguir tentaremos demonstrá-lo.

A base do bolsonarismo é “antissistema”?

Analisemos a base social da extrema direita: a base evangélica juntou-se a Bolsonaro porque ele procurava uma força “antissistema”? É isso que este setor sempre almejou e agora encontrou em Bolsonaro? E a base ligada ao agronegócio no Centro-Oeste? É "anti-sistema"? E a pequena burguesia, a classe média e o alto serviço público? Eles são "anti-sistema"? E a alta burguesia? Eles são "anti-sistema"? E a polícia? Querem derrubar “tudo o que existe” e construir uma nova ordem social?

De qualquer ponto de vista, é claro que o suposto carácter “anti-establishment” da extrema direita não é o que atrai estes grupos. Pelo contrário, todos estes sectores sociais procuram o mais atrasado, o mais conservador, o mais retrógrado, o antimoderno e o mais obscuro do espectro político. A tragédia reside precisamente no facto de estes sectores terem se convencido de que o único “sistema” que deve ser derrubado é o das garantias sociais, da defesa da natureza, da legalidade, da racionalidade, dos direitos humanos, da defesa da ciência e da cultura. Como se costuma dizer, “não há idiotas no futebol”, lá ninguém se engana. A base da extrema direita compreendeu perfeitamente a estratégia dos seus líderes e aderiu-a conscientemente. Infelizmente, esta base inclui uma parte significativa da própria classe trabalhadora e dos pobres, mas não os seus setores mais tradicionais, organizados e conscientes. Portanto, não é sendo “mais papistas que o Papa” que vamos disputar a base social da extrema direita.

Por que a extrema direita cresceu tanto?

A extrema direita tornou-se uma força decisiva na sociedade não porque seja “anti-sistema”, mas porque soube apresentar-se à nação como um bloco político determinado, coeso, organizado e motivado.

Foi isto que a tornou “diferente” das outras forças e que lhe valeu a simpatia dos sectores mais conservadores e reacionários da população (e não da sua parte “anti-sistema”). Quando, em março de 2016, a direita reuniu centenas de milhares de pessoas na Avenida Paulista para pedir um golpe contra Dilma Rousseff, uma parte significativa da população (incluindo parte da classe trabalhadora) ficou chocada com o seu poder mobilizador e começou a se mobilizar. siga-a com cuidado. A partir daí foi só cultivar o que foi conquistado e ir em busca de mais: luta ideológica e política, eleição de deputados e prefeitos, ação massiva nas redes sociais, propaganda, iniciativa, espírito combativo. Daí até a conquista da presidência da república houve apenas um desenvolvimento natural.

A direita cresceu não porque defende uma política “anti-sistema”, mas porque opera com o bom senso, o ódio, os medos, as frustrações e os preconceitos mais brutais que existem na nossa sociedade. Assim, uma competição “para ver quem é mais antiestablishment” só pode significar um tiro no pé esquerdo e confundir esquerda e direita. Nunca venceremos esta luta nestas condições porque pedir para “atirar nos petistas” soará sempre mais radical do que defender o sistema público de saúde, a ciência ou a cultura.

O exemplo da luta contra o projeto “estupro”

Esta é uma batalha que ainda está em curso, mas que temos hipóteses de vencer. O que aconteceu na luta contra o chamado projeto “estatutário” (projeto que visa punir as mulheres que abortam após a 22ª semana de gravidez com pena de prisão superior à pena por estupro)? É claro que não éramos “anti-sistema”. Lutamos pela preservação de uma garantia civilizacional no direito burguês, um importante direito humano, nada mais. Não levantamos a bandeira (justa e “anti-sistêmica”) da “legalização total do aborto já!”, porque isso iria contra o bom senso e a vontade de luta das pessoas. Em vez disso, fomos mais inteligentes: rotulamos a extrema direita como apoiante da violação e dissemos “as raparigas não são mães!”, apelando ao simples senso comum progressista de defender as crianças. Poderíamos imaginar uma luta mais defensiva, mais minimalista? Uma luta menos “anti-sistema”? Porque foi pela mera manutenção da legislação vigente! E, no entanto, constituímos uma importante maioria social, uma massa crítica que agora permite que a lei seja arquivada (nada está garantido!). Além disso, apresentámo-nos de forma unitária, coesa, em uníssono, e só por isso fomos ouvidos pela massa da população.

Algo semelhante aconteceu com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da privatização das praias: uma luta defensiva, mínima, baseada no bom senso e no mero direito de ir à praia. Uma luta pela preservação da legislação que remonta a 1833! Nada menos “anti-sistema” que a vontade de sol e praia no domingo! Resultado: a direita na defensiva.

Então, qual é o caminho a seguir?

A ideia de que deveríamos ser “anti-sistema” não é errada em si e para sempre. Pode ser que, em algum momento da luta de classes, esta necessidade surja e isso será decisivo para conquistar corações e mentes. Mas hoje este raciocínio ignora um elemento decisivo para avaliar a situação: a correlação de forças. A luta “anti-sistema” é, por natureza, uma luta ofensiva. Mas hoje a classe trabalhadora e os seus melhores representantes estão na defensiva. Insistir no carácter “anti-sistema” da nossa luta apenas nos levará a distanciar-nos da consciência média da classe e da sua real vontade de lutar. É a direita que está na ofensiva. O primeiro passo para mudar esse fato é reconhecê-lo! O fascismo reuniu dezenas de milhares de bandidos em 8 de janeiro e tentou um golpe de Estado. É assim que eles estão motivados. Temos força para fazer o mesmo? O que as ações do 1º de Maio (atos extremamente fracos que demonstraram a fragilidade do movimento sindical organizado brasileiro) dizem sobre a nossa capacidade de mobilização para ações “anti-sistema”? Afinal, quem fala muito também deve saber fazer…

Antes de ser “antissistema”, a esquerda precisa retornar ao cenário político e social do país. Como fazê-lo? Existem algumas condições.

O primeiro é a unidade. A esquerda precisa mais uma vez apresentar-se à sociedade como uma força política decisiva. Unidade nas lutas sociais, nos sindicatos, no movimento estudantil, nas eleições. É uma pena que tenhamos eleições municipais em breve e que em muitas cidades o PT esteja priorizando a unidade com os partidos centristas e até mesmo com aqueles que lamentam Bolsonaro. Devemos fazer como em França, onde a ameaça de Le Pen deu origem a uma nova unidade de esquerda que se apresentará à nação como uma força única e determinada com um programa de mudança social progressista. Numa outra escala (menos importante, mas também digna de menção), é também lamentável que as pequenas organizações da esquerda radical procurem todo o tipo de justificações para quebrar a unidade, denunciando "futuras traições" e concentrando toda a sua artilharia na luta contra o Governo e os “governistas”.

A segunda condição é a implementação do programa vencedor nas eleições de 2022. Temos uma enorme vantagem potencial na luta contra a extrema direita: o seu programa foi derrotado nas urnas e ninguém pode queixar-se de que as diferenças não foram claras. Todos entenderam tudo corretamente e votaram por um programa de mudança social, recuperação de direitos, ampliação de conquistas e defesa da civilização contra a barbárie. O problema é: o que aconteceu com este programa? Por que o governo não aplica isso? Você não luta por ele? De onde tiraram a ideia de que o país precisava de um novo ajuste fiscal? Por que o Centrão está no governo embora não tenha entregue nada no Congresso e atue na prática como oposição? Por que não fazemos como na Colômbia, onde o governo está cumprindo o que prometeu e realizou recentemente uma importante reforma previdenciária que amplia direitos?

A terceira condição é a luta política e ideológica. Não é apenas que a comunicação do governo seja ruim. Trata-se de entrar na luta, de quebrar falsos consensos, de fazer propaganda e agitação em grande escala e não apenas de promoção institucional. O governo tem que dizer o que pensa, o que defende e explicar a sua estratégia. Isto é feito na televisão, na internet, mas também com a força da militância, inspirada e convocada pelos seus dirigentes e organizações.

A quarta condição é a mobilização popular e a governação “quente”. Mais uma vez, o exemplo da Colômbia pode ser útil. Gustavo Petro não governa com base numa maioria parlamentar instável e pouco confiável, mas com base na mobilização popular. A sua base social está constantemente mobilizada e agitada. É isso que garante a legitimidade. A ideia de que os governos não fazem política nos foi imposta pela grande burguesia, que continua a sonhar com “um governo técnico”, enquanto o enorme potencial mobilizador de Lula e do PT continua a ser desperdiçado.

Então, muito mais do que ser “anti-sistema” nesta situação reacionária que quer nos devolver à Idade Média, precisamos ser políticos, agir em conjunto, agir com inteligência, aproveitando as oportunidades. A nossa luta é a Frente Única pela defesa da civilização, dos direitos sociais e humanos e para que o programa da classe trabalhadora e das suas organizações volte a ser uma referência para toda a sociedade, numa palavra, a luta pela hegemonia. Não existem atalhos. As aventuras “antissistêmicas” só podem nos isolar das massas e nos distanciar ainda mais deste rumo.


HENRIQUE CANÁRIO
Doutor em Literatura e Cultura Russa.



 

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