segunda-feira, 12 de agosto de 2024

“Com ou sem atas, os Estados Unidos querem o petróleo da Venezuela”

Fontes: Indymedia Workers [Imagem: Poço de petróleo venezuelano. Embaixada da República Bolivariana da Venezuela]


Entrevista com Cláudio Katz

Os Estados Unidos sempre tentaram repetir na Venezuela o que fizeram no Iraque ou na Líbia, aponta o economista e pesquisador do CONICET Claudio Katz nesta entrevista. “Eleições em territórios com petróleo cobiçados pelo império nunca são normais, porque incluem uma componente geopolítica de enorme importância.”

Trabalhadores do Indymedia: – Como vocês avaliam a situação prevalecente na Venezuela após as eleições?

Claudio Katz: – Já se passaram 13 dias e a discussão da ata continua, que é um assunto muito polêmico e não há dados sólidos para avaliar o que aconteceu até agora. O Conselho Nacional Eleitoral mantém o anúncio de vitória de Maduro, mas sem informação detalhada por províncias, tabelas ou distritos. Esse órgão tem 30 dias para divulgar esses relatórios, mas a demora gera muitas dúvidas, que não são sanadas com a apresentação da ata por cada parte ao Judiciário.

A principal explicação oficial para a atual recessão é a sabotagem sofrida pelo sistema eleitoral. Um ataque cibernético com hacking generalizado, que saturou as redes através de tráfego espúrio, ou seja, utilizando uma nova forma de conspiração digital.

A existência deste apagão eleitoral é totalmente credível no atual cenário de guerras de informação. Se Israel utiliza a inteligência artificial para praticar um genocídio personalizado em Gaza, é inteiramente viável que a Venezuela tenha sofrido a investida contra as redes que o governo denuncia. Mas esta acusação deve ser verificada com indícios ou provas, que até agora nenhum funcionário forneceu. Em todo caso, parece-me que a divulgação das famosas atas não resolverá o problema.

Claudio Katz, economista e pesquisador do CONICET, professor da UBA e membro dos Economistas de Izquierda (EDI).

- Porque?

– Simplesmente porque a direita não reconhecerá um resultado adverso. Para eles, qualquer eleição perdida equivale a fraude. Desde 1999, ocorreram 35 eleições na Venezuela e apenas as duas eleições vencidas foram validadas. Nos casos opostos não sabiam os números finais. Na disputada disputa de 2013, foi realizada a recontagem que exigiram e também não aceitaram o veredicto dessa contagem.

A direita só aceita competir se tiver previamente garantida a vitória. Essa posição invalida qualquer eleição. Agem tal como Trump, que ignorou a sua derrota contra Biden, alegando fraude que ninguém conseguiu provar. Para piorar a situação, divulgaram agora a sua própria contagem anunciando que González Urrutia venceu por uma margem de 60 a 80% a seu favor. Não apresentam nenhum documento sério que corrobore esta afirmação. Eles improvisam e inventam afirmações totalmente implausíveis.

Além disso, a divulgação da ata não resolve nada devido ao caráter atípico desta eleição. As eleições foram precedidas pelo acordo de Barbados, que definiu uma convocação de acordo com as relações de poder mantidas pelas duas forças em conflito. A direita concordou em comparecer após vários anos de fiasco com Guaidó. Já não podiam apoiar o fantoche corrupto que se autoproclamava presidente sem contar os minutos. Por causa dessa derrota, apoiaram a participação nas eleições gerais, com membros do Conselho Nacional Eleitoral. Até validaram a maldade do partido no poder que restringiu severamente o voto dos emigrantes.

Por seu lado, o governo aceitou a presença negociada de observadores internacionais, o que não é uma característica natural de qualquer eleição. Os inspetores estrangeiros não irrompem nos Estados Unidos, na França, em Israel ou na Inglaterra, com a naturalidade com que desembarcam nos países periféricos. A escolha foi condicionada por esse compromisso prévio.

Nicolás Maduro e Edmundo González Urrutia ao votarem nas últimas eleições presidenciais.

– E o que aconteceu?

– A direita assinou o acordo assumindo que tinha vencido as eleições, mas ignorou esse compromisso quando começou a perceber que a sua vitória era incerta. A partir daí reiniciou as provocações habituais. Corina Machado assumiu as rédeas da campanha e o governo logicamente decidiu desqualificá-la por sua participação em inúmeras tentativas de golpe. O partido no poder também restringiu a presença de conspiradores disfarçados de monitores internacionais, num ato legítimo de soberania. O cenário típico de confronto direto entre o partido no poder e a oposição reapareceu em pleno.

– Isso quer dizer que, na sua opinião, a direita retomou a ação golpista…

– É o comportamento que este setor tem invariavelmente recriado desde o golpe fracassado contra Chávez em 2002. Acumulou uma coleção incontável de provocações. Basta recordarmos a greve petrolífera, os ataques armados da Colômbia, as guarimbas, a tentativa de assassinato de Maduro com recurso a um drone, o desembarque de mercenários e uma guerra econômica que inclui 935 sanções unilaterais dos Estados Unidos.

Agora tentavam garantir que sua vitória estava garantida e quando perceberam que algo estava errado retomaram a violência contra o chavismo. Aos incêndios, assassinatos e apelos ao golpe militar, desta vez somaram-se a destruição simbólica das estátuas de Chávez.

Guaraimbas antichavistas em Caracas na segunda-feira, 29 de julho de 2024. Foto: EFE/ Henry Chirinos.

– Com grande apoio da imprensa internacional…

- Sim claro. Esta cumplicidade é decisiva porque articula toda a campanha contra a Venezuela desde Miami, com o repetido argumento da fraude. É a mesma bandeira que os incipientes apoiadores de Bolsonaro usaram contra Dilma e os racistas de Santa Cruz contra Evo. Mas nunca se lembram da única fraude verdadeiramente comprovada, cometida pelos seus colegas no México em 2006.

Os meios de comunicação também repetem descaradamente que prevalece uma ditadura na Venezuela, omitindo que esta definição está atualmente adaptada na região a um único país: o Peru. Ninguém nomeia Boularte e a liderança militar que derrubou Castillo.

O mais curioso é a difamação do sistema eleitoral venezuelano, quando inclui mecanismos de maior legitimidade democrática do que os modelos considerados pela imprensa ocidental. Este esquema não está sujeito ao filtro do Colégio Eleitoral dos Estados Unidos, que permite a seleção de presidentes sem a maioria dos votos dos eleitores. E não se apoia, ainda, nos pilares plutocráticos que predominam naquele país, onde o dinheiro define quem fica com os principais cargos. Também não está sujeito às distorções impostas pelos círculos eleitorais de Inglaterra ou França ou à chantagem eleitoral que prevalece na nossa região. Mais inusitadas são as lições de republicanismo enunciadas pelos porta-vozes da monarquia espanhola.

O padrão que foi imposto para julgar a Venezuela é totalmente arbitrário. A grande emigração sofrida por aquela nação apresentou-se como um caso único em todo o planeta. Esquece-se, por exemplo, que em termos percentuais há mais uruguaios do que venezuelanos fora do seu país e ninguém classificaria o sistema político que têm os nossos vizinhos do Prata como uma ditadura. A Venezuela sofre a mesma hemorragia populacional que o México, a América Central ou as Caraíbas, pelas mesmas razões de empobrecimento.


– Quem está ganhando a luta dentro da Venezuela?

– É difícil saber. Por enquanto parece que a guarimba falhou e que se repete a grande rejeição da sociedade à violência da extrema direita. Depois de um ou dois dias de provocações, as marchas massivas a favor do governo e da oposição regressaram e o terreno favorecido pela maioria da população reapareceu. Há um grande desejo de paz, o que dificulta muito o golpe de rua promovido por Corina e seu sem brilho candidato à presidência. Este personagem é acusado de cumplicidade com atos criminosos, pois teria usado sua cobertura diplomática para facilitar a guerra suja da CIA na América Central.

– Qual é o jogo dos Estados Unidos?

– O mesmo de sempre para apropriar o óleo. Vale a pena recordar o sincericídio de Trump, quando declarou que sob a sua administração “a Venezuela estava prestes a entrar em colapso e teríamos ficado com todo o combustível daquele país”. As eleições em territórios com petróleo cobiçados pelo império nunca são normais, porque incluem uma componente geopolítica de enorme importância.


O Departamento de Estado sempre tentou repetir na Venezuela o que fez no Iraque ou na Líbia. Se Chávez tivesse acabado como Saddam Hussein ou Gaddafi, ninguém mencionaria na imprensa mundial o que está a acontecer numa nação sul-americana perdida. Uma vez alcançado o seu objetivo de derrubar o presidente diabolizado, os porta-vozes dos meios de comunicação da Casa Branca esquecem-se completamente desses países. Hoje ninguém sabe quem é o presidente do Iraque ou da Líbia.

Também não há menção ao sistema eleitoral da Arábia Saudita. Dado que os Estados Unidos não podem apresentar os xeques daquela península como campeões da democracia, simplesmente silenciam a questão. Não devemos ser ingênuos na disputa com a Venezuela. Com ou sem atas, os Estados Unidos querem o petróleo.

Os líderes ianques já chegaram a um compromisso com a direita venezuelana de privatizar a PDEVESA e observam com grande preocupação a entrada do país nos BRICS que Maduro está negociando. Por isso se apropriaram da CITGO, das reservas monetárias no exterior, aumentaram as sanções e fecharam o acesso a qualquer tipo de financiamento internacional. Anseiam por repetir o que foi feito na Ucrânia para ter um subordinado do tipo Zelensky à frente do país.

Mas porque falharam repetidamente, Biden optou por negociar e a Chevron retomou a perfuração na faixa do Orinoco. Ele combinou essa piscadela com provocações diplomáticas e exercícios militares na Guiana. Trump parece apostar na brutalidade de outro golpe, mas é pragmático e veremos o que acontece se ganhar outro mandato.


– Enquanto isso, trabalhe com Milei para criar um eixo regional que se oponha frontalmente a Maduro…

– Sim, e por essa razão, uma vitória da direita na Venezuela teria consequências terríveis para a Argentina. Milei atua lado a lado com Corina Machado e seu chanceler e ministro da Segurança participam com bastante naturalidade (como se não fossem funcionários) das manifestações em frente à embaixada da Venezuela em Buenos Aires. Milei foi a grande patrocinadora da fracassada declaração da OEA em favor de Urrutia. A hipocrisia daquela organização não tem limites. Depois de endossar o golpe na Bolívia e no Peru, ditam sermões de democracia para a Venezuela.

– Por que Lula se destaca com outra proposta?

– Parece-me que junto com Petro e López Obrador ele está conduzindo uma reação defensiva, registrando as terríveis consequências que um governo de extrema direita teria na Venezuela. Para desencorajar esta perspectiva, procuram restaurar as pontes de negociação entre o partido no poder e a oposição. Sabem que estas negociações vão além da mera publicação de atas e da sua posterior contestação com a denúncia de fraude. AMLO concentrou o problema em rejeitar a interferência da OEA e acrescentou Cristina. Por outro lado, Lula não obteve o aval de Boric, o que reforça a sua submissão à Casa Branca.

Acredito que a crise na Venezuela revela uma grande divisão no progressismo latino-americano, entre um setor que fortalece o seu perfil autônomo e outro que optou por aderir ao guião do Departamento de Estado. A mídia lisonjeia este último grupo, que decepciona cada dia mais seus eleitores.

Nicolás Maduro em conferência de imprensa. Imagem: Captura de vídeo TeleSUR.

– Em todos os cenários, a Venezuela ainda está dividida em duas….

– Sim. É um país fraturado em dois quarteirões com grande apoio social. A imagem mediática de um governo solitário e isolado é tão falsa como a suposição de um direito sem raízes. Aparentemente, o partido no poder recuperou influência com a recuperação da economia e a melhoria da segurança nas ruas. A massividade de suas ações indicaria certa recomposição do declínio moral de seus seguidores. Mas, paradoxalmente, se se confirmar que triunfaram nas eleições, esse resultado seria devido à baixa participação nas eleições. Este absentismo ilustra um grande nível de dissidência que felizmente a direita não capta.

– Portanto, na sua opinião, uma confirmação da vitória oficial deveria ser avaliada como um fato positivo para a esquerda…

– Sim, pois implicaria uma derrota da extrema direita na disputa desta eleição. É como nos perguntarmos se aqui comemoraríamos uma derrota eleitoral de Milei. Um fracasso dos peões do império, num país sitiado por sanções econômicas e atacado pela comunicação social, é sempre promissor. Este resultado faria parte dos recentes sucessos contra a direita que temos visto no México e na França.

– É esse o sentido do Manifesto que o senhor assinou apoiando o voto em Maduro?

– Sim, assinei com base no registro das terríveis consequências que uma vitória da direita teria para a região e principalmente para nós na Argentina. Não é preciso ser um grande analista para imaginar a implacável vingança contrarrevolucionária que Corina Machado iniciaria se chegasse ao poder. É incrivelmente ingênuo presumir que tal vitória daria início a um período de maior democratização. A condição para conceber qualquer avanço popular no futuro é a vitória do partido no poder.

Até certo ponto, devemos aprender com o passado. Há uma longa tradição de crítica de esquerda aos governos que ficam a meio caminho ou que recuam no caminho das mudanças radicais que patrocinamos. Nessas situações, a solução é nunca jogar fora o bebê junto com a água suja para começar tudo de novo. Nesse caminho, o retrocesso é sempre maior. Vejamos o que aconteceu com a restauração do capitalismo após a implosão da União Soviética. Devido a este resultado, sofremos 40 anos de neoliberalismo brutal.

– Está então a propor um apoio crítico ao partido no poder?

– Partilho em muitas áreas as objeções do chavismo crítico à política econômica, ao enfraquecimento do poder comunal, à validação da boliburguesia e à intervenção inadmissível aos partidos de esquerda, que não aceitaram os moldes exigidos pelo governo. Há também casos problemáticos de judicialização de protestos sociais e pouca tolerância com as questões levantadas no próprio campo. O precedente do rumo seguido pela Nicarágua dispara todos os alarmes.

Mas nenhuma destas objecções me faz duvidar do campo em que a esquerda se deveria colocar. Devemos estar num terreno frontalmente oposto ao principal inimigo, que é o imperialismo e a extrema direita. Esse posicionamento é a condição para qualquer outra consideração.

– Mas não é possível explorar uma terceira via para a esquerda de crítica simultânea a Maduro e Corina Machado?

– Vejo isso como totalmente irrealista e vou resumir para vocês no exemplo prático da participação nas marchas que convulsionam o país. A vida política venezuelana é abalada por grandes mobilizações do partido no poder e da oposição. Uma grande parte do futuro da crise está representada nesta ação de rua. Se assumirmos a identidade da esquerda como nossa: a qual das duas manifestações devemos comparecer?

Como é totalmente impensável que um socialista participe nos acontecimentos dos colegas de Milei, Trump ou Le Pen, se decidirem não participar nas marchas do chavismo, a única opção que resta é ficar em casa. Aí o estudo do marxismo pode ser aprofundado, mas com total divórcio da ação política.

Este desligamento não é remediado escrevendo uma proclamação, escrevendo um artigo, reunindo um pequeno grupo ou avaliando repetidas vezes porque é que a esquerda está isolada. Também não é útil julgar movimentos que mantêm as suas raízes populares a partir de uma condição minoritária invariável. Devemos intervir nos cenários políticos tal como eles se apresentam, para encontrar formas de construir o nosso projeto socialista.


 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

12