terça-feira, 6 de agosto de 2024

O conflito da Venezuela não pode ser internacionalizado

A líder da oposição venezuelana Maria Corina Machado se dirige a apoiadores durante uma marcha em Caracas contra o resultado das eleições (Foto: REUTERS/Fausto Torrealba)


"O Brasil precisa de um entorno pacífico, cooperativo e próspero, livre de conflitos e de instabilidades", escreve Marcelo Zero

Marcelo Zero

As análises sobre o que acontece na Venezuela estão repletas de passionalidade, uma má conselheira. A extrema polarização política daquele país reflete-se também nos planos regional e internacional.

Em geral, tais análises são um tanto simplistas e maniqueístas, para usar eufemismos condescendentes. A ignorância sobre o processo venezuelano é abissal.

De um lado, estão os que sempre classificaram os governos chavistas como “ditaduras”, apoiaram o golpe contra Chávez, em 2002, apoiaram a violência das “guarimbas” e, agora, apoiam sorridentes as sanções ilegais, as mortes que elas causam, e as ingerências externas contra o regime de Caracas. São os defensores de hábito de uma singular “democracia”, que devasta povos e países. Nossa mídia está repleta de defensores dessa curiosa e violenta “democracia”.

De outro, estão os que acham que o governo de Maduro, sob extrema pressão interna e externa, é inatacável e tem de ser defendido a quaisquer custos e sob quaisquer argumentos. Um regime de querubins anti-imperialistas, como se sabe, incapaz de equívocos e que não pode ser objeto de críticas. Quem assim procede seria “traidor”.

Goethe dizia que a árvore da vida é dourada e que toda teoria é cinzenta. Nesse caso específico, no entanto, as “teorias” sequer são cinzentas: ou são pretas ou são brancas.

Bem faz o governo brasileiro em ser cauteloso.

Não obstante, parece-me que alguns fatos estão emergindo dessa névoa cognitiva e ideológica.

Os mais relevantes são os seguintes:

1. Maduro está reeleito. O CNE anunciou o resultado na madrugada da segunda-feira e, algumas horas depois, Maduro já estava empossado. Pena que os boletins digitais (não confundir com atas em papel), tão morosos dessa vez, não surgiram para participar da festa flash da democracia. Porém, independentemente das dúvidas suscitadas pela não divulgação das atas digitais e das cifras desagregadas, bem como das justas e corretas demandas dos governos do Brasil, da Colômbia e do México por uma maior transparência da apuração eleitoral, parece muito improvável, em curto prazo, que esse fato consumado seja revisado ou revisto.

2. É preciso trabalhar também com a hipótese de que os boletins, aparentemente perdidos durante muito tempo numa obscura dimensão quântica, talvez sequestrados por elétrons politizados, não ressurjam ou, caso emerjam para a superfície macrocósmica, não sejam consideradas impolutos e incontestáveis. Como o gato de Schrödinger, esses boletins poderão estar vivos ou mortos, ou serem verdadeiros ou falsos, a depender do observador. Em todo caso, o impasse prosseguirá.

3. O governo do Brasil terá de lidar com essa realidade da forma mais racional e sensata possível, pensando na defesa de seus interesses maiores, no seu protagonismo na América do Sul e na preservação da integração regional. Evidentemente, a reedição de uma “solução Juan Guaidó” não é realista e causaria, de novo, graves danos à Venezuela é à região.

4. A situação atual da Venezuela aumenta drasticamente a probabilidade de uma nova espiral de violência naquele país e da internacionalização geopolítica de um conflito que deveria ser resolvido em âmbito regional.

Trata-se, portanto, de um quadro complexo, de solução muito difícil.

O ponto 4, acima destacado, me parece o mais grave.

O governo Biden já deixou claro que reconhece a “vitória” de González Urrutia, pacato diplomata que teria prestado serviços relevantes à selvagem repressão anticomunista em El Salvador, no que está sendo acompanhado por diversos governos conservadores da região e de outras localidades do planeta. Isso abrirá caminho para mais sanções, tensões e violência.

Por seu turno, Maduro parece estar fazendo uma aposta geopolítica de risco.

Com efeito, Maduro parece considerar, ante as circunstâncias externas muito difíceis, que à Venezuela lhe basta o apoio internacional de algumas potências extrerregionais, como China e Rússia, e que a cooperação com países da nossa região, inclusive com países amigos, como Brasil, Colômbia e México, seria, por assim dizer, algo “dispensável”, ou, ao menos, “não fundamental”.

Suas críticas recentes e injustas a esses países causaram espanto. A sua recente decisão de romper relações diplomáticas com sete países da região que não reconheceram os resultados das urnas parece indicar também uma preocupante tendência de isolacionismo regional.

Outro cálculo que Maduro aparentemente estaria fazendo tange a uma possível reação moderada de Biden, ante a nova situação política na Venezuela, dada à prioridade dos EUA ao enfrentamento à Rússia, à China e às disputas desgastantes no Oriente Médio. Trata-se de outra aposta que envolve risco considerável. Nunca se deve menosprezar o apetite por sangue de um Democrata, menos ainda quando se tornou um pato manco.

A Venezuela, por uma dessas ironias da história, já teve uma política externa isolacionista, no plano regional, na época em que privilegiava apenas as suas relações bilaterais com os EUA, sedimentadas nas exportações de petróleo. Naquele interregno, as relações com o Brasil e a América Latina pouco importavam para a Venezuela.

Essa política foi revisada já no governo Rafael Caldera e, sobretudo, nos governos de Chávez, que era um grande entusiasta da integração regional. Frise-se que Chávez procurou manter relações pacíficas e cooperativas até mesmo com a Guiana, com a qual a Venezuela tem disputa territorial concernente à Essequibo.

Seria algo profundamente lamentável que a Venezuela investisse, de novo, em um isolacionismo regional, por motivos político-ideológicos amplamente questionáveis.

Sobretudo, seria algo desastroso para os interesses do Brasil e da integração regional que a nossa região sucumbisse aos falsos dilemas causados pela nova Guerra Fria. E que o conflito se espraie pela região, como adverte Petrus.

O Brasil tem, hoje, uma política externa universalista, centrada na defesa dos interesses maiores do país, na paz, no diálogo e na cooperação. Essa política externa pragmática e racional só pode frutificar, se resistir a pressões por alinhamentos que limitem nossa soberania e nosso protagonismo.

Nosso país procura ter excelentes relações com países estratégicos e em ascensão como Rússia e China e aposta no BRICS como mecanismo de construção de uma ordem mundial mais simétrica e multipolar, assentada em regras efetivamente multilaterais. Ao mesmo tempo, o Brasil também busca ter relações respeitosas e cooperativas com a União Europeia, com os EUA etc. O Brasil não descrimina ninguém e deseja se relacionar, com base no respeito mútuo, com todas as regiões e países do planeta.

A nova Guerra Fria já criou conflitos e tensão em demasia no planeta. É vital que a nossa região, que se mantém pacífica, seja dela preservada.

Por isso, o Brasil, a Colômbia, o México etc., têm de conduzir a espinhosa questão da Venezuela, de forma muito responsável.

Em primeiro lugar, atos de violência devem ser prontamente condenados. O Acordo de Barbados, do qual o Brasil é país-garante, foi firmado, entre outros motivos, para evitar esse mal maior. O ressurgimento das tristemente famosas “guarimbas” e a repressão indiscriminada só vão complicar ainda mais um cenário difícil, complexo e com alto grau de imprevisibilidade.

Há de se fazer um esforço para não aumentar ainda mais a temperatura do conflito interno da Venezuela e não incentivar a tendência ao isolacionismo contraproducente desse vizinho

O Brasil precisa de um entorno pacífico, cooperativo e próspero, livre de conflitos e de instabilidades, principalmente os originados em âmbito extrarregional.

Nesse sentido, é necessário que o Brasil e os demais países progressistas da região, como Colômbia, México etc., se empenhem, mesmo com todas as dúvidas sobre o último pleito venezuelano, em manter um diálogo com a Venezuela de Maduro, e continuem a contribuir para inseri-la nos processos de integração regional e para pacificá-la.

A Venezuela não pode ser conduzida a cruzar definitivamente o Rubicão geopolítico do isolacionismo regional e da adesão aos falsos dilemas da nova Guerra Fria.

Isso implicará manter o novo governo Maduro como um interlocutor legítimo, sem que se abandone o diálogo com a oposição venezuelana, mesmo com seus setores mais radicalizados. Os canais de negociação precisam ficar abertos. Isso é vital.

Será, sem dúvida, um exercício difícil, que provocará desgaste interno. Vale a pena? Vale.

A estratégia contrária seria muito perigosa e poderia mergulhar nossa região em um conflito profundamente desagregador e violento. Não se pode repetir o desastre bolsonarista, que investiu no confronto com o governo chavista, o qual nos fez perder muito protagonismo naquele vizinho.

Política e geopolítica se fazem em condições concretas, que muitas vezes escapam do nosso controle e vontade. Julgamentos moralistas, frequentemente hipócritas, não mudam a realidade.

A revolução chavista foi, sobretudo, uma revolução democrática, que implodiu os estreitos limites jurídico-políticos do pacto oligárquico de Punto Fijo e ampliou consideravelmente a participação popular nos processos decisórios daquele país.

É natural, por conseguinte, que alguns lamentem atitudes que possam macular os princípios que nortearam essa notável revolução, que investiu muito em um sistema eleitoral elogiado internacionalmente, perfeitamente capaz de dar respostas rápidas e transparentes, como historicamente o fez.

Sabemos que boa parte da oposição da Venezuela é violenta e não tem quaisquer compromissos democráticos, mas dos chavistas espera-se, naturalmente, o oposto. Como assinalou Cristina Kirchner, espera-se que o legado de Chávez seja respeitado.

Fascismo se combate com democracia. O Brasil assim o fez. Espera-se que a Venezuela possa fazê-lo também.

Talvez seja ingênuo esperar que Maduro tenha a mesma envergadura política de Chávez. Ele poderá manter-se em sua posição rígida, desafiadora e, para alguns, desapontadora.

Não obstante, ante as circunstâncias, a coisa mais democrática a se fazer, no plano externo, é não se apostar em isolamento, em sanções que provocam pobreza e fome, e em mais violência. Com atas ou sem atas.

O caminho do diálogo e das negociações, ainda em que em circunstâncias muito desfavoráveis, é sempre o melhor caminho.

Afora isso, só restaria outro adágio de Goethe: não há nada mais atemorizante que a ignorância em ação.

Melhor acolher a árvore da vida.




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