Os princípios da autonomia e da democracia precisam ser combinados na política externa do governo Lula, a fim de melhor refletir o pacto eleitoral de 2022, no âmbito doméstico, e aumentar as margens de manobra do Brasil e de seus vizinhos em relação tanto aos EUA quanto à China, no âmbito internacional
Maria Regina Soares de Lima e Diogo Ives
O resultado da eleição presidencial na Venezuela, realizada no último dia 28 de julho, vem dominando a agenda do governo Lula 3 ao longo das últimas semanas, devido às repercussões que passou a ter não apenas para a política externa do Brasil, como também para a política doméstica. O imbróglio começou no dia 29, algumas horas depois de o órgão eleitoral venezuelano proclamar a vitória de Nicolás Maduro em relação a Edmundo González, com 80% das urnas apuradas. Na ocasião, o Itamaraty publicou uma nota em que afirmava acompanhar o processo de apuração com atenção e aguardava a publicação das atas de cada mesa de votação, o que chamou de passo “indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito”. [1]
Ainda no dia 29, a imprensa brasileira informou que o Itamaraty tinha iniciado a negociação de uma nota conjunta com as chancelarias de Colômbia e México para reforçar o pedido de divulgação das atas ao governo Maduro e instar pelo fim de hostilidades entre as forças do governo e da oposição que começavam a crescer nas ruas, levando inclusive a mortes. O comunicado conjunto foi divulgado em 1º de agosto. Na prática, significou uma via alternativa, também seguida pela União Europeia, para lidar com a desconfiança que passou a cercar a credibilidade do resultado, em comparação a governos que reconheceram rapidamente a reeleição de Maduro (como Bolívia, Cuba, Nicarágua, Irã, Rússia e China) ou que questionaram a legitimidade do pleito (como Argentina, Chile, Equador, Peru, Uruguai e EUA).
A postura de cautela adotada por Brasil, Colômbia e México reflete, em parte, as profundas implicações geopolíticas que atravessam o destino da Venezuela há anos. Suas imensas reservas de petróleo, as divisas decorrentes desta exportação e a localização entre o Mar do Caribe e a Amazônia levam as grandes potências a situá-la como uma peça importante em seus projetos de abastecimento de matérias-primas, segurança energética, acesso a recursos financeiros e defesa militar. Além de cálculos autointeressados, há esforços coletivos integrados pelas potências que podem ser impactados, em alguma medida, pelas decisões de quem governa a Venezuela, como a OPEP+, o BRICS+ e a OTAN, além da guerra na Ucrânia e do combate global às mudanças climáticas.
Para além destes fatores internacionais, há elementos da política doméstica que pesam na conduta assumida pelo Brasil. A frente ampla que Lula costurou para vencer a eleição de 2022 contra o bolsonarismo, reunindo partidos da esquerda à centro-direita, aglutinou perspectivas diferentes sobre a Venezuela no governo, as quais passaram a se manifestar após o resultado da eleição. No dia seguinte ao pleito, a Executiva Nacional do PT divulgou uma nota na qual reconheceu a vitória de Maduro, posição acompanhada pelo PCdoB. Por sua vez, PSOL e MDB se aproximaram da linha do Itamaraty e cobraram a divulgação das atas de votação. Finalmente, PSB, Rede, PSD, PSDB, Republicanos, PP e União Brasil questionaram a lisura do processo eleitoral, por meio de notas partidárias ou em nome de seus dirigentes. [2]
A politização em torno da Venezuela não é uma novidade. Trata-se de um país que passou a ocupar um lugar de destaque no imaginário político brasileiro desde a presidência de Hugo Chávez, a partir de 1999, servindo hoje como um marcador de posições partidárias e individuais no espectro ideológico à medida que se apoie ou critique o “socialismo do século XXI” oficialmente perseguido pelos herdeiros do chavismo. Após a ascensão da extrema-direita representada pelo bolsonarismo, a politização se radicalizou, transmudando-se em polarização, assim como em outros temas da política externa brasileira. Este processo a tornou mais transversal, na medida em que assuntos da política internacional passaram a incidir com mais força e velocidade no debate doméstico. [3]
Sintoma claro disto é a tendência atual de se explorar minuciosamente o discurso sobre política externa do presidente em exercício na imprensa e em redes sociais. Cada palavra e entonação usadas geram amplo debate, aumentando os custos políticos de improvisos. Por exemplo, em maio de 2023, a denúncia de Lula de que há uma “narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo” [4], ao recepcionar Maduro em uma visita a Brasília, teve grande repercussão, a ponto de o evento ser lembrado como o mais negativo sobre o governo em uma pesquisa nacional de opinião realizada semanas depois [5]. Ao comentar sobre o episódio em uma entrevista, Lula afirmou que “o conceito de democracia é relativo” [6], gerando nova inflamação do debate público.
O processo se repetiu mais uma vez quando o presidente brasileiro, transmitindo sua impressão à imprensa, declarou que o resultado da eleição na Venezuela “não tem nada de grave” ou de “anormal” e que, caso a oposição queira contestar as atas depois de publicadas, “entra com recurso e vai esperar a Justiça tomar o processo. E aí vai ter uma decisão que a gente tem que acatar”. [7] A fala desconsiderou que a capacidade de independência da Justiça venezuelana em relação ao governo Maduro é precisamente um dos pontos criticados por quem questiona o pleito dentro e fora do país. Na mesma ocasião, Lula também minimizou a nota da Executiva Nacional do PT em apoio a Maduro, afirmando que o partido tem autonomia para se expressar em relação a seu governo.
Em meio a todo esse imbróglio, uma pergunta fundamental vem sendo suscitada: qual deve ser o lugar da defesa da democracia na política externa do governo Lula 3? A complexidade da resposta esbarra, por um lado, no repúdio tradicional da esquerda brasileira a ingerências que atentem contra a autodeterminação dos povos e na tradição do Itamaraty em considerar o Brasil como um gigante em paz com seus vizinhos menores. Por outro lado, a conjuntura política marcada pela força da extrema-direita, no país e no mundo, e pela acentuação da rivalidade entre EUA e China, ao redor do globo e inclusive no entorno brasileiro, abre espaço para a reivindicação de uma defesa mais enfática de valores democráticos pelo governo.
Neste texto, pretendemos argumentar que os princípios da autonomia e da democracia precisam ser combinados na política externa do governo Lula 3, a fim de melhor refletir o pacto eleitoral de 2022, no âmbito doméstico, e aumentar as margens de manobra do Brasil e de seus vizinhos em relação tanto aos EUA quanto à China, no âmbito internacional. A seguir, analisamos como a autonomia e a democracia se relacionam com o tema da eleição venezuelana. Em seguida, explicamos a pertinência da distinção entre as éticas da convicção e da responsabilidade para pensar esta linha de ação. Acreditamos que, em nome da responsabilidade, é necessário que a ala mais à direita do governo seja menos dependente de soluções importadas dos EUA para lidar com a Venezuela, enquanto a ala mais à esquerda deve mostrar menor indulgência com abusos de poder por parte de Maduro.
Autonomia
A capacidade de o Brasil tomar decisões sobre seu desenvolvimento que não sejam vetadas por grandes potências já foi testada, na história, por meio de golpes que levaram a trocas de regime e contaram com o apoio dos EUA em favor de governos mais alinhados às suas preferências. Um caminho semelhante foi tentado por Washington na Venezuela, após a segunda eleição de Maduro, em 2018, quando articulou o reconhecimento internacional do presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, como chefe de Estado; impôs sanções econômicas ao país; e tentou instruir o Grupo de Lima (fórum criado em 2018 para tratar especificamente do assunto e integrado pelo Canadá e por governos latino-americanos com inclinação à direita) a endurecer medidas contra o regime chavista. Contudo, Maduro logrou permanecer no poder, em meio a uma crise econômica e migratória, valendo-se da denúncia de que era vítima do imperialismo estadunidense.
A articulação que o governo Lula 3 tenta fazer hoje com os governos Petro e Obrador, todos com inclinação à esquerda, para lidar com a nova tentativa de Maduro de se manter na presidência procura evitar uma repetição da estratégia fracassada dos EUA, cujo Departamento de Estado já reconheceu González como vitorioso, em 1º de agosto. Tal reconhecimento ocorreu um dia depois de Brasil, Colômbia e México conseguirem compor uma estreita maioria na OEA para evitar, através de votos de abstenção, a aprovação de uma resolução, apoiada por Washington, que exigia que “observadores independentes” validassem as atas da eleição, sem maiores especificações sobre a procedência destes agentes. [8]
Entretanto, a estratégia dos três países de insistir na divulgação das atas destoa também das preferências da China. O presidente Xi Jinping reconheceu a vitória de Maduro em 30 de junho e declarou “apoiar os esforços da Venezuela para salvaguardar a soberania, a dignidade nacional e a estabilidade social, assim como sua justa causa de se opor a interferências externas”. [9] Dois dias depois, Maduro expulsou da Venezuela o corpo diplomático de sete países latino-americanos que contestaram sua reeleição. A soma destes movimentos indica que o mandatário faz pouco caso sobre convencer seus vizinhos de sua legitimidade, fiando-se no amparo político e econômico que avalia que a China, além de países como Rússia e Irã, são capazes de lhe proporcionar.
Do ponto de vista da autonomia do Brasil, ter vizinhos no seu entorno estratégico (conforme definido pela Política Nacional de Defesa) com larga dependência de uma grande potência, seja ela qual for, guarda ameaças latentes para si próprio. O histórico de instalação de bases militares dos EUA na América do Sul é notório e pode ser expandido com as atuais negociações em matéria de defesa com a Argentina (para uma base naval na Patagônia) e a Guiana (para proteger o petróleo extraído pela Exxon Mobil). A presença do Reino Unido nas Ilhas Malvinas e da França através da Guiana Francesa incrementam a presença da OTAN ao norte e ao sul do Brasil. Por sua vez, a China não tem um histórico semelhante de bases militares na América do Sul, o que não implica presumir que não possa vir a ter.
Há certo anacronismo em parte da esquerda brasileira quando aponta o perigo do imperialismo estadunidense hoje, mas deixa de atribuir relevância às novas relações de dependência econômica da América Latina com a China e de se antecipar a possíveis desdobramentos disto. Já passamos do momento unipolar dos EUA na política internacional, que se estendeu entre o pós-Guerra Fria e a eclosão da crise econômica internacional em 2008, tendo sido marcado pela difusão do neoliberalismo e por guerras na periferia. Tampouco estamos no período de 2009-2016, quando um horizonte multipolar era mais crível sob a liderança das potências médias do BRICS, hoje ampliado, por vontade da China, para incluir países menores do Oriente Médio e da África que servem de caminho para sua Nova Rota da Seda.
O Brasil tem recursos de poder para não precisar se resignar a ser peça assessória em projetos de poder alheios e para propor ações regionais que deem espaço de manobra também para seus vizinhos ante as grandes potências. Quando ocorreu, em 1962, a VIII Reunião de Chanceleres Americanos, em Punta Del Este, San Tiago Dantas, chanceler a cargo da Política Externa Independente (PEI), procurou obstaculizar a proposta dos EUA de expulsão de Cuba do sistema interamericano. Dantas argumentou que exclui-la deste sistema significaria jogá-la nos braços da URSS, como de fato aconteceu. Propôs, em vez disso, que os países da região negociassem uma espécie de acordo de convivência com Cuba, que incluiria a proibição do território para fins militares. O objetivo principal era afastar da América Latina o conflito entre as superpotências da Guerra Fria e evitar alinhamentos automáticos.
A postura prudente de San Tiago Dantas permanece atual, ainda que o contexto da Venezuela hoje tenha diferenças expressivas em relação àquela época, sobretudo porque quem está buscando isolamento é o próprio presidente do país. Neste esforço, Maduro vem proferindo ofensas inclusive ao Brasil, como em três ocasiões nos últimos meses: quando afirmou que o Itamaraty agia como o Departamento de Estado dos EUA ao criticar um descumprimento, pelo governo venezuelano, do Acordo de Barbados assinado com a oposição em 2023 (do qual o governo brasileiro serviu de testemunha, a seu convite); quando insinuou que as urnas brasileiras não são auditáveis e, portanto, são pouco confiáveis (reproduzindo uma tese bolsonarista que levou, em resposta, a uma nota de protesto pelo Tribunal Superior Eleitoral); e quando sugeriu ao presidente Lula, embora sem mencionar seu nome, que tomasse um chá de camomila após este se dizer preocupado com uma fala sua de que poderia haver um banho de sangue na Venezuela caso a oposição perdesse a eleição.
A postura hostil de Maduro adiciona dificuldades na tentativa brasileira de construir um entorno estratégico mais autônomo em relação às grandes potências de hoje. Resta pouca alternativa ao governo a não ser incluir a oposição na mesa de negociação, como proposto pela articulação com Colômbia e México, e deferir proteção a ela, conforme exemplificado quando o Brasil decidiu assumir a administração da embaixada da Argentina, após a expulsão dos seus diplomatas, a fim de garantir os direitos de opositores que solicitavam asilo diplomático. Entretanto, também fica cada vez mais claro que uma interlocução com os militares que dão sustentação a Maduro se fará necessária. Neste ponto, uma defesa mais expressiva de valores democráticos pelo governo brasileiro poderia servir de pressão adicional para evitar um endurecimento do regime venezuelano.
Democracia
O debate normativo sobre democracia é amplo, mas não escapa, por excelência, da exigência de que líderes políticos sejam escolhidos por meio de voto popular, para o que a transparência dos votos dados se torna elementar, seja em vertentes liberais ou socialistas de democracia. Passadas duas semanas do fim da eleição na Venezuela, o Conselho Nacional Eleitoral ainda não divulgou as atas do pleito, alegando que houve um ataque hacker ao sistema (o que, contraditoriamente, não poderia ter levado ao anúncio de um resultado final, se assim for verdade).
Entrementes, Maduro vem lançando mão de um argumento falacioso de que questionar a eleição equivale a intervir na soberania do país. No entanto, cobrar respeito a acordos que tiveram a adesão de seu governo e a anuência de outros países está longe de ser uma violação de soberania. O Acordo de Barbados, assinado em 17 de outubro de 2023, foi resultado de um consenso construído entre governo e oposição, com mediação conduzida pela Noruega e participação do Brasil, entre outros países. O texto estipulou a promoção de direitos políticos e garantias eleitorais para todos os envolvidos no pleito. [10]
Já é senso comum que os EUA apoiam democracias de forma seletiva, enquanto a China reconhece o regime político que for conveniente para seus interesses econômicos sem propor receitas idealistas universais. No caso do Brasil, insistir no cumprimento do Acordo de Barbados é o caminho mais seguro para incentivar a democracia na Venezuela a partir do que o próprio regime chavista se comprometera a fazer. Se assim não for, corre-se o risco de Maduro descumprir outro acordo que teve mediação do Brasil: o de respeito da Venezuela à soberania do território guianense de Essequibo, firmado em 14 de dezembro de 2023, em São Vicente e Granadinas. [11]
Uma guerra no entorno estratégico do Brasil, em plena Amazônia, com propensão a reproduzir via proxies a rivalidade global entre EUA e China, é um perigo a se ter em mente na negociação em andamento com Maduro. Um conflito poderia piorar a crise econômica na Venezuela, expandir o poder militar no interior do seu Estado, aumentar ondas de emigração para os países vizinhos e prejudicar especialmente o estado de Roraima. Para evitá-lo, é importante que o governo brasileiro faça valer o status de potência regional do Brasil, interessado em promover uma ordem baseada na integração amistosa da América do Sul, sem imposições, mas com cobrança ao respeito de ações coletivas acordadas.
A Política Externa Ativa e Altiva que o governo Lula 3 procura reeditar hoje tem raízes na PEI. Naquele contexto da Guerra Fria, o embaixador Araújo Castro estipulou, como princípios norteadores da política externa brasileira, o desenvolvimento, o desarmamento e a descolonização. Por sua vez, no pós-Guerra Fria, o embaixador Celso Amorim propôs a atualização dos 3 Ds para um novo tempo, a fim de enfatizar a democracia, o desenvolvimento e a defesa. Posto que desenvolvimento com defesa ante grandes potências é a própria essência de autonomia, acreditamos que este princípio e o de democracia resumem os preceitos necessários da política externa brasileira hoje.
Para além do plano internacional, nunca é demais lembrar que o bolsonarismo quase venceu a eleição de 2022 e que o governo Lula 3 só existe hoje, em certa medida, pela disposição ao diálogo com forças da centro-direita. O enfrentamento da extrema-direita demanda compromissos claros com a democracia, que não podem ser minimizados por conta das preferências de uma porção minoritária da esquerda. A situação na Venezuela requer atualmente mais imaginação sobre o que pode acontecer no futuro do país, caso Maduro siga no poder cada vez mais isolado da vizinhança, do que um apego a relações construídas no passado, quando Chávez era um interlocutor mais habilidoso, em um contexto que não existe mais.
Convicção versus responsabilidade
A crise na Venezuela exemplifica de forma contundente os desafios enfrentados pelo Brasil diante do clássico dilema weberiano da escolha entre a ética da responsabilidade e a da convicção. Segundo aquele autor, todo governante deve levar em conta, nas suas decisões em situações críticas (em especial no plano internacional, no qual não existe uma força normativa acima dos Estados), as consequências esperadas de suas ações, mesmo que tenha que sacrificar suas próprias convicções pessoais. Como representante do Estado, o governante deve priorizar o bem-estar da nação.
Traduzindo em termos formais, a ética da responsabilidade implica agir de forma estratégica, isto é, da perspectiva do governante, assumir que minha ação vai depender do cálculo da resposta provável do outro agente e como esta pode afetar os interesses da minha coletividade. Ao contrário, quando alguém age como um indivíduo qualquer (como um eleitor, por exemplo), suas ações vão refletir suas próprias convicções pessoais, como ocorre nas democracias eleitorais em que o voto de cada indivíduo vale o mesmo ao de todos os demais. Agir com base na lógica das convicções significa abrir mão de uma escolha estratégica e agir de forma paramétrica, em que o contexto da ação é neutro ou não existente.
É possível fazer uma analogia com a diferença da estrutura decisória do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, nas Nações Unidas. No primeiro órgão, prevalece a ação estratégica, e o poder de veto assegura que nenhuma decisão que possa prejudicar as grandes potências será tomada tendo em vista as implicações para a paz e a segurança internacional. Por sua vez, na Assembleia Geral, o voto de cada um dos países vale o mesmo que os dos demais, e os Estados podem agir de acordo com as suas convicções políticas, na medida em que as decisões deste órgão não tem valor mandatório.
A opção do Brasil por atuar como mediador na crise venezuelana, juntamente com Colômbia e México, espelha uma ação com base na lógica da responsabilidade. Em primeiro lugar, Maduro tem agido sem levar em conta os parâmetros estabelecidos pelo Acordo de Barbados. Ademais, desde o início da crise, agiu como se não precisasse do apoio do Brasil e da região. A leitura da diplomacia brasileira é que Maduro não tem, ao contrário de Chávez, o apoio unânime dos militares e, portanto, não pode fazer tantas concessões como o último. Portanto, qualquer demonstração de força e autossuficiência é interpretada no sentido da expectativa de apoio das grandes potências anti-hegemônicas, externas à região.
Ora, a possibilidade de uma ação ou apoio militar destas potências é um convite à reação dos EUA e criará as condições para que se retorne a uma situação de Guerra Fria, como no passado, em que a região estará à mercê da disputa entre as potências, com o desaparecimento imediato de qualquer possibilidade de ação autônoma do Brasil ou dos demais países da região. A diferença do contexto de Punta Del Leste no passado é que excluir a Venezuela com base em escolhas ideológicas implica deixar a porta aberta à intervenção externa e decretar o fim da autonomia da política externa de Lula 3.
Agir com base na lógica da convicção, seja no caso do reconhecimento imediato da derrota de Maduro e da vitória da oposição, como foi a reação inicial dos EUA e de alguns países latino-americanos, ou, no sentido inverso, de reconhecer a vitória de Maduro e a derrota da oposição, como fez a Executiva do PT e alguns países como a Bolívia, por exemplo, implica a oportunidade perdida de assumir a defesa de procedimentos e instrumentos democráticos sem assumir a priori preferência por acompanhar qualquer uma das potências em disputa. Pior, no caso da esquerda e de setores progressistas da América Latina, significa abrir mão de um aggiornamento tal como fez o PC italiano com o Euro-Comunismo, logo após a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas soviéticas, em 1968. Para os partidos progressistas latino-americanos, pode implicar também na ameaça de seu progressivo enfraquecimento como partidos de massa democráticos.
Até o presente momento, a crise venezuelana permanece sem uma solução à vista. Setores da grande imprensa criticam a posição brasileira de insistir na mediação como sendo um fracasso da diplomacia de Lula 3. De forma indireta, estão defendendo que o Brasil deveria ter seguido a posição daqueles que insistiram a priori na ilegalidade do processo eleitoral. Esquecem que a consequência imediata de se opor ao discurso do governo é assumir uma posição de isolar a Venezuela na região, como argumentamos neste artigo. Para tanto, quem o faz precisa estar preparado para intervir com força e mudar o status quo, consequência dramática para o Brasil e a região.
Ao insistir na mediação, a diplomacia brasileira evitou este mal maior, porque tornou mais custosa a intervenção de grandes potências extrarregionais. Por outro lado, há sinais de que, se a mediação não der resultado, o Brasil pretende esfriar suas relações com a Venezuela de Maduro ainda que sem excluí-la do convívio regional, em uma clara manifestação da importância dada à democracia na região. Perdemos de um lado, mas ganhamos de outro, na medida em que autonomia e democracia se afirmaram como princípios basilares da política externa de Lula 3.
Maria Regina Soares de Lima é professora de Ciência Política no IESP-UERJ e coordenadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA).Diogo Ives é pesquisador de pós-doutorado no IESP-UERJ e coordenador-adjunto do OPSA.Referências[1] BRASIL. Eleições e apuração na Venezuela. Ministério de Relações Exteriores, Nota à Imprensa nº 336, 29/07/2024. Disponível em:https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/eleicoes-e-apuracao-na-venezuela.[2] SALGADO, Felipe. 7 partidos da Esplanada de Lula não reconhecem vitória de Maduro. Poder 360, 07/08/2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-governo/eleicoes-venezuelanas-racham-frente-ampla-de-lula-na-esplanada/.[3] LIMA, Maria Regina Soares de; IVES, Diogo. Líder global ou chefe de Estado? O dilema de Lula na condução de uma política externa transversal. Le Monde Diplomatique Brasil, 28/02/2024. Disponível em: https://diplomatique.org.br/dilema-lula-politica-externa-transversal/.[4] SCHROEDER, Lucas. Lula diz que Venezuela é “vítima de narrativa de antidemocracia e autoritarismo”. CNN Brasil, 29/05/2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/lula-diz-que-venezuela-e-vitima-de-narrativa-de-antidemocracia-e-autoritarismo.[5] ESTADO DE MINAS. Genial/Quaest: 10% veem encontro de Lula com Maduro como ‘mais negativo’. 21/06/2024. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/06/21/interna_politica,1510130/genial-quaest-10-veem-encontro-de-lula-com-maduro-como-mais-negativo.shtml.[6] G1. ‘O conceito de democracia é relativo para você e para mim’, diz Lula ao comentar a Venezuela. 29/06/2023. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/06/29/o-conceito-de-democracia-e-relativo-para-voce-e-para-mim-diz-lula-ao-comentar-a-venezuela.ghtml.[7] CARTA CAPITAL. Eleição na Venezuela: PT tem autonomia e fez o que tem de fazer, diz Lula sobre nota do partido. CartaCapital, 30/07/2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/eleicao-na-venezuela-pt-tem-autonomia-e-fez-o-que-tem-de-fazer-diz-lula-sobre-nota-do-partido/.[8] PAIXÃO, Mayara. OEA não consegue aprovar resolução sobre eleição na Venezuela; Brasil se abstém. Folha de S. Paulo, 31/07/2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/07/oea-nao-consegue-aprovar-resolucao-sobre-eleicao-na-venezuela-brasil-se-abstem.shtml.[9] CHINA. Xi Jinping Sends Congratulatory Message to Nicolás Maduro Moros on His Reelection as Venezuelan President. Ministry of Foreign Affairs, 30/07/2024. Disponívelem: https://www.mfa.gov.cn/eng/xw/zyxw/202408/t20240801_11464750.html.[10] ACCESO A LA JUSTICIA. Acuerdo Parcial sobre la Promoción de Derechos Políticos y Garantías Electorales para todos.27/10/2023. Disponível em: https://accesoalajusticia.org/acuerdo-parcial-sobre-la-promocion-de-derechos-politicos-y-garantias-electorales-para-todos/.[11] VENEZUELA. Declaración Conjunta de Argyle por el diálogo y la paz entre Guyana y Venezuela. 14/12/2023. Disponível em: https://pmoffice.gov.vc/pmoffice/images/stories/Publications/FINAL_-_Declaration__Espaol_2.pdf.
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