Fontes: Página/12
Por Atílio A. Boron
Na Argentina, a “casta” tornou-se a chave interpretativa à qual recorrem tanto políticos como comentadores na situação turbulenta que atravessa a vida nacional. A vitória eleitoral de uma coligação neofascista presidida por um produto de laboratório fabricado para captar a agitação social prevalecente estabeleceu “a casta” como a síntese de todos os males que afligiam o país. A história, porém, demonstrou a pouca utilidade dessa categoria porque quem, como o Presidente, dela fez uso e abuso para abater a classe política e os seus costumes com a fúria de um profeta, não demorou a tornar-se mais um membro da “a casta”. Aprendeu, ou aprendeu, em pouco tempo todos os seus truques e adotou os seus piores métodos, que pratica com indisfarçável prazer. Chantagem, corrupção, compra e venda aberta da vontade de governadores, legisladores e “perioperadores”, bem como a repressão mais brutal quando as vítimas da sua experiência econômica letal têm a audácia de expressar pública e pacificamente o seu descontentamento.
Mas vamos um pouco mais longe. A “casta” é na verdade o conjunto de funcionários do capital situados na estrutura do Estado, nos seus três poderes: governantes e altos administradores públicos no Executivo; legisladores, deputados e senadores do Poder Legislativo, e juízes e procuradores do Poder Judiciário. Todos eles convenientemente alavancados do exterior pelos meios de comunicação de “confusão e desinformação” das massas concentradas num punhado de oligopólios antidemocráticos, cúmplices necessários dos males e crimes da “casta”.
É claro que existem algumas exceções dentro de cada uma dessas categorias, mas são uma minoria. Portanto “a casta” é a abreviatura do conjunto de empregados da classe dominante, ou seja, do grande capital, nacional e estrangeiro. A política ruinosa do Presidente Milei nada tem a ver com a sua alegada disputa com “a casta”, mas é o resultado natural da sua extensa carreira como funcionário de algumas das maiores empresas estrangeiras, como o banco HSBC; ou nacional, a America Corporation presidida pelo magnata Eduardo Eurnekián. Suas decisões como governante obedecem linearmente aos interesses estruturais do bloco dominante do capitalismo argentino, fortemente entrelaçado com as maiores corporações transnacionais da economia mundial, atrás das quais se localiza o imperialismo norte-americano.
É por isso que Milei demonstrou uma vocação irresistível para se tornar o grande lacaio do império na região, antagonizando presidentes de países irmãos como Brasil, Colômbia e México e militando ativamente contra a integração latino-americana, para não mencionar os insultos que tem sido. reservado ao governo da República Popular da China. Nada disto é coincidência: enfraquecer os laços da Argentina com o Brasil e a China é um dos objetivos estratégicos de Washington na região, e Milei é um fiel executor desse desígnio antipatriótico. Ele também envolveu o nosso país na guerra na Ucrânia e convidou ninguém menos que o hipercorrupto Volodymyr Zelensky para a sua cerimônia de tomada de posse presidencial. Não só isso: com a sua indigna submissão colonial valida a presença da NATO nas Ilhas Malvinas, deixa de lado a reivindicação da nossa soberania sobre aquela parte do território nacional, compra aviões F-16 descartados pela NATO e paga um preço exorbitante por eles. permanecer em silêncio, como Washington, face ao genocídio do regime sionista em Gaza e transferir a sede da embaixada argentina em Israel para Jerusalém, onde apenas os Estados Unidos, a Papua Nova Guiné e a Guatemala aí têm as suas embaixadas.
Diante de tudo isso, de que “casta” estamos falando? É classe, não “casta”! O que existe na Argentina é um governo “colonial-fascista”, raivosamente classista, oligárquico, ao serviço das frações mais concentradas do capital nacional e internacional, ponto final. Seu mandato é enriquecer os mais ricos (“Venho para expandir seus bolsos”, disse Milei com total autoconfiança); aumentar a concentração empresarial através da liquidação de PME; organizar a reforma trabalhista através da superexploração das classes e camadas populares cada vez mais empobrecidas durante seu governo e praticar um genocídio lento e feroz – sem derramamento de sangue, mas igualmente mortal – contra os idosos, privando-os de seus medicamentos, cuidados médicos e acesso a suprimentos mínimos para uma vida mais que austera.
Não constitui isto a figura de um crime: “abandono de pessoas” previsto no artigo 106 do Código Penal, como lembrou a deputada Gisela Marziotta na sessão dos últimos dias? Esse e nenhum outro é o projeto dos libertários (uma verdadeira “elite de bandidos”, como Harold Laski chamou os principais grupos do fascismo) que tomaram conta da Argentina. É por isso que reivindicam vitória, enquanto continuam a mentir como nenhum presidente – repito: nenhum – fez na história argentina. Os “bandidos” estão comemorando e entusiasmados. Por agora.
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