quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Do texto sagrado e do profano


Por FLÁVIO R. KOTHE*

O Antigo Testamento doutrinado nas escolas e igrejas é uma fábrica de sádicos, que inventam belos nomes para as suas violências

“O Antigo Testamento é uma fábrica de sádicos; o Novo, de masoquistas”.

É preciso ver como textos sagrados formam a mente coletiva, repassam valores e estruturas de pensamento. Quem usa os textos não quer decifrar e escancarar o que ele está repassando. Quem crê na sacralidade deles também não quer. O que mais importa é, assim, deixado de lado, enquanto o menor é badalado como central.

Diferentes povos em épocas diversas produziram aqui e acolá textos que lhes eram sagrados, como se resguardassem sua alma imortal. Do povo inteiro, corpo que se decompôs, só restaram essas obras, seu espírito. É preciso que tais textos morram como sagrados, para poderem ressuscitar como obras literárias, que elas já sempre foram, mas a crença impedia de ver.

Os crentes de algum desses livros não costumam vê-lo como arte literária, assim como não acreditavam no caráter sagrado dos homólogos alheios. Se todos estão certos quanto aos demais, nenhum sabe sobre si mesmo. Se não há textos sagrados, há textos sacralizados, assim como há textos consagrados, em alguns casos por boas razões, assim como há textos olvidados, por ainda melhores razões.

O crente acha que alguém ver literatura em seu texto sagrado não é reconhecer sua qualidade, é um rebaixamento, não reconhecer sua ascendência ao plano divino. Ele próprio não tem, no entanto, liberdade de leitura: lê entravado pelos parâmetros de sua crença. A rigor, nem lê, apenas procura no texto a confirmação do que supõe que já sabia antes. Não faz um deciframento do texto: apenas vê nele as cifras escondidas de sua crença.

A formação religiosa, quando suportada pela crença, gera uma estrutura não só concreta de recepção, mas de concreto, capaz de suportar cargas de desconfiança, vetos de argumentos, desmentidos históricos: ela própria continua intangida. Não adianta discutir. No máximo a resposta será: tu pensas assim, eu penso assado.

O hermeneuta que se aventura nisso fica em situação pior que o psicanalista que se defronta com o emparedamento de um trauma, que não quer se deixar desmontar, pois já virou empedramento. Ele até pode diagnosticar o que está em curso, pode estabelecer hipóteses do que teria causado o trauma, mas é ingênuo supor que o gênio saia da garrafa quando ela é destampada e pergunte o que se quer como recompensa pela libertação. O crente não quer a liberdade de pensar: prefere estar manietado aos ditames de sua fé, pois crê que eles o levam à salvação.

Ele não quer perder a vida eterna da alma que ele supõe ter. Acha que ele é tão precioso que precisa ser preservado pela eternidade. É um profundo narcisismo, do qual ninguém quer se afastar, para não perder a preciosa imagem que tem de si mesmo (“se eu não gostar de mim, quem mais vai gostar?”).

Perder a alma seria pior para o cristão que perder propriedades de terras, gado e gente com que Jeová costuma(va) recompensar seus adeptos. O judeu quer(ia) o mundo; o cristão, sobretudo o céu. A glória eterna é mais importante que as glórias do mundo. O sacerdote que se prostra no chão ao ser ordenado, quer demonstrar como se humilha: não aceita como patrão, porém, ninguém menos que um deus e seu representante.

Nas várias crenças, cada uma quer ter razão e, assim, nega que outra possa ter. Se todas querem ter razão, nenhuma acaba tendo. Aliás, as crenças não estão preocupadas com razão e lógica: para elas, os princípios da fé são superiores a toda ciência e toda arte. O crente não consegue entender o pensar, porque este fica situado num horizonte que não é o seu. Ele não sente o drama da tensão entre ente, ser, linguagem e ignoto para se abrir ao pensar. Não quer pensar. A fé lhe basta.

O crente nega que creia porque isso lhe seria vantajoso. Ele não se vê como um oportunista. O fato de negar não prova que ele não seja: pelo contrário. Também não torna realidade fática aquilo em que ele crê. Resta como fato que ele creia. Afirmar a existência de divindades e atos celestiais não firma sua existência, apenas confirma e reafirma que o crente crê nisso. Quais as vantagens?

Para os judeus do Antigo Testamento, havia a Terra Prometida, ou seja, um território habitado por outros povos, que Moisés, Josué e seus soldados simplesmente invadiram e tomaram, matando seus moradores. Esse processo está novamente em curso, com a política racista, belicista e genocida de Israel. Quem participa disso acha que está agindo de boa fé, a fé que tem em Jeová e no texto sagrado: ele não vai admitir que há uma troca de interesses, a crença no deus em troca de terras. O deus é anterior.

O crente cristão acha que está na graça de ser filho de Deus, tendo sido salvo por seu dileto filho. Quem não crê nisso está fora “da graça” e pode começar a pensar de graça, aprendendo a rir da desgraça. Pensar se distingue da crença, surge da sensação de solidão e abandono para quem era crente, mas exige a coragem de pensar a partir de si mesmo, por si mesmo.

Existe a teologia cristã que supõe ser um pensar, mas o teólogo precisa se convencer por argumentos da existência de Deus e sua mitologia: não tem a graça de acreditar numa religião. Quem precisa de argumentos lógicos para crer em Deus não é um crente. Os teólogos são ateus, que precisam de provas para aceitar a existência de Deus. O crente mesmo não precisa de provas: basta-lhe a fé. Ele supõe ter a graça de crer. Essa graça é a desgraça do seu potencial de pensar.

Os teólogos se dedicam ao estudo de Deus porque não conseguem se livrar de sua sombra, ficam presos a uma sombra do divino porque não ousam pensar um passo adiante. Eles param de pensar onde o pensamento iria além dos limites sustentados pelos princípios da crença. Fingem que pensam, mas não pensam. A relação ser-ente não é problema para eles, pois há um ente que contém, para eles, todo o ser.

Há um semipensar que povoa as páginas dos jornais, as salas de aula, as telas dos comentaristas, os discursos dos políticos, o dia a dia de todos nós. É um fazer de conta que se está pensando, mas dentro dos limites do já pensado e consagrado. Não é um pensar originário: é uma ocupação de espaços por quem quer aparecer (e será dos primeiros a desaparecer). Não tem a paciência de um pensar que precisa de trezentos anos para ser avistado, se for.

Assim como há um semipensar, um racionalizar meio capenga que não vai a fundo em nada nem questiona radicalmente coisa nenhuma, há também textos semissagrados como os hinos oficiais e o cânone literário doutrinado nas escolas. São formas de catecismo aplicadas ao mundo laico. Eles são reverenciados pelos que vivem às custas deles.

O crente nega que seja um oportunista. Ele acha que crê porque existe aquilo em que crê (já porque existe nele). Pascal dizia que o crente faz uma aposta em que espera uma recompensa infinita (a vida eterna) para uma quantia finita apostada (missas, óbolos, atos religiosos). Pascal foi o inventor da roleta, além da máquina de calcular. Quem joga na roleta espera obter mais do que aposta, mas ela é programada de tal modo que em geral a máquina vai receber mais do que pagar. Por que alguém joga, estando predestinado, sobretudo, a perder? Porque acha que merece a graça divina: receber mais do que investe.

Se alguém crê que pertence a um povo superior, pode até se esforçar para ser melhor que os outros, mas já por isso se mostra inferior. Ele acaba se dando o direito de fazer o que quiser, desde que seja útil para a sua ânsia de ser superior aos demais. Se alguém crê que a sua religião é a única verdadeira, isso é crença pessoal, que não a torna logo mais verdadeira, por mais que se pretenda.

Não há liberdade de crença; só há liberdade na descrença. O Antigo Testamento (ou como se quiser chamar) decanta a conquista de terras de outros povos, aniquilando-os, sob o suposto apoio de Jeová. Quando os onze mil soldados, sendo mil de cada um dos povos judaicos, retornam do ataque a um povo que nem conheciam, Moisés pergunta o que fizeram com os homens. A resposta é: matamos todos. Daí ele pergunta o que fizeram com as mulheres e crianças. A resposta é: deixamos lá. Então Moisés ordena que retornem e matem todas que ficaram. Isso é genocídio, celebrado não só por judeus, mas por católicos e cristãos em geral. E isso está ocorrendo atualmente em Gaza e no Líbano. A literatura é algo muito perigoso.

De um alemão com parentesco judeu, que conheci como parte da governança comunista da Alemanha Oriental, ouvi, há poucos dias, a assertiva de que não era correto os palestinos usarem escolas e hospitais para abrigar terroristas. Com isso, ele estava defendendo o genocídio em curso. Culpados não eram os agressores e sim os agredidos. Não há provas da presença de algum “terrorista”: apenas se alega que teria estado lá, para daí matar centenas, milhares de mulheres e crianças. Assim é a fala da imprensa sionista que domina o Otanistão. Quando rotula o Hamas de “terrorista”, endossa o genocídio: é incapaz de ver em Israel um Estado racista, belicista, genocida.

O Antigo Testamento doutrinado nas escolas e igrejas é uma fábrica de sádicos, que inventam belos nomes para as suas violências; o Novo, de masoquistas, que acham divino sofrer. Assim se complementam e completam. Para os cristãos. A compilação de textos feita na época do concílio de Niceia deixou interessantes versões de lado.

Não é assim a relação entre a Ilíada, que canta a ira de Aquiles na guerra de Troia, e a Odisseia, que decanta o amor de Odisseu por Penélope e a busca do seu reino, com todas as peripécias a que tem direito. Eram textos sagrados para os gregos. É preciso estudar as estruturas e os gestos semânticos dessas narrativas, para saber como ajudaram a formar a mentalidade dos povos.

Homero não louva simplesmente os acaios por serem vencedores, tendo o apoio de mais deuses, nem desdenha dos troianos vencidos. Na luta entre Aquiles e Heitor se decide a guerra, um modelo seguido pelas narrativas até hoje. As figuras mais humanas e interessantes estão entre os vencidos: é como se eles obtivessem uma vitória literária, numa narrativa que conta a sua derrota. Pessoas com mais defeitos estão entre os vencedores, a começar pelo comandante Menelau. As razões para a guerra também são desnudadas: na aparência, para coagir Helena a voltar atrás na escolha amorosa que fizera por Páris, de fato por conflitos de interesses econômicos e de dominação dos mares.

Aquiles reaparece na Odisseia para dizer que a escolha que fizera quando jovem – morrer moço e famoso, em vez de idoso e ignoto – tinha sido um grande erro, pois a vida é o maior bem que temos. Lastima por si, quando já afamado, mas não lamenta a morte de tantos e tantos que ele havia matado: parece que quer os dois, ser famoso e idoso (eterno?). Quando Odisseu com Telêmaco mata todos os pretendentes, isso é repassado como algo justo, a não ser lastimado. Que ele, por ter matado o jovem Astíanax, herdeiro do trono, tenha sido condenado a ficar dez anos numa ilha com a deusa Calipso, tendo até filhos com ela, não é lastimado: é como se fosse um prêmio de consolação. Só que da mulher se esperava fidelidade total.

Os textos de Homero eram sagrados para os gregos, ensinados nas escolas e cantados pelos rapsodos. Serviam, portanto, para a formação da mentalidade do povo. Os deuses que apareciam não eram meras figuras literárias: eram entidades em cuja existência real se acreditava. A estrutura mental decorrente dessa formação era mais nuançada do que a bíblica. Como a diferença entre deuses e humanos era a morte destes, o tema central da religião era a finitude humana; secundariamente, servia para legitimar a escravidão, mostrando que a classe senhorial branca era mais parecida com os deuses. Não havia lugar para um Cristo ou um escravo no Olimpo.

É usual entre nós apresentar o monoteísmo como um progresso. Não se percebe que o politeísmo permitia a cada um escolher o “santo” de sua predileção, aquele com que podia por afinidade fazer um pacto de fidelidade. Isso se mostra no Gilgamesh, quando uma deusa menor fica sabendo que viria um grande dilúvio e avisa a uma família (a que devia algo) para se precaver. Constroem então uma grande embarcação, quadrada, para abrigar a família, os animais e os que ajudam a construir (estes recebiam vinho durante o trabalho). Essa história foi copiada pelos judeus e adaptada ao monoteísmo imposto pelos sacerdotes egípcios de Aton.

Com algumas diferenças básicas: o vinho é descoberto depois do dilúvio; Noé, que havia tomado um porre, inventa a escravidão contra um filho (que havia achado engraçado ele trançando os pés) e estendeu isso aos descendentes (que nada tinham a ver com a história); não há notícia de abrigar os trabalhadores.

Virgílio recebeu a encomenda de César para fazer um “texto sagrado” romano, a Eneida, que servisse a três propósitos básicos: (i) apagar o mito corrente de que Roma teria sido fundada por Rômulo e Remo, para afirmar que Eneias, pai de Iulo e fundador da dinastia Júlia, tinha feito isso, após salvar o pai das chamas de Troia; (ii) colocar os romanos como vingadores dos troianos, fazendo a invasão da Grécia no ano 100 a.C.; (iii) propor que os cartagineses queriam se vingar pelo fato de Eneias ter abandonado Dido depois de seduzi-la numa caverna (de fato os dois jamais poderiam ter se encontrado, pois havia uma distância de uns 300 anos entre eles).

A Eneida é uma obra inferior às epopeias de Homero. Virgílio as imitou, mas menor ainda é Os lusíadas, feito como imitação da imitação, obra também de encomenda real, para exaltar a formação e expansão de Portugal, até propor ao rei de Melinde um acordo bélico e comercial, com vantagens lusas para receber especiarias em troca de apoio militar. O reacionarismo nas letras é tão forte que não consegue ver o mais evidente e fica feliz com o servilismo orgânico aí vigente. Quanto mais sagrada, mais perigosa a literatura.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc]


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