quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Um estado de espírito sarcástico que começa a difundir-se na Rússia


Gordos e estúpidos; porque é que a NATO é boa (para nós)

Por Marat Khairullin [*]

Uma das principais lições da Operação Militar Especial (OME) é que o nosso país precisa de um inimigo externo para se consolidar. Após o início da Operação Militar Especial, os nossos indicadores económicos cresceram e a agenda interna voltou-se finalmente para os problemas reais. Por exemplo, para o problema da demografia – agora pede-se aos nacionalistas para não espancarem estrangeiros, mas para terem mais filhos.

Pode parecer cínico, mas a escolha não é nossa – sorrimos tanto em todas as direcções até que até a Moldávia se recusou a pagar o gás. É verdade, quem é que tem medo dos bons e pacíficos? O próprio Deus ordenou que deixássemos passar esta situação. Por isso, nós, Rússia colectiva, temos de ser bons rapazes e raparigas de punhos grandes. Porque isso é bom para a saúde e para a economia.

escrevi que, imediatamente após a OME, os produtos do nosso complexo militar-industrial poderiam tornar-se o “segundo petróleo” em termos de receitas orçamentais, ultrapassando mesmo as receitas dos hidrocarbonetos. De facto, não há nada de novo nas minhas palavras. Os nossos (não) parceiros jurados sempre viveram assim.

O maior problema da NATO após o colapso da URSS foi a falta de um inimigo externo. De que outra forma poderiam justificar a existência de uma tal estrutura? Por conseguinte, foi encontrado um inimigo no povo russo. Isso acabou por ser vantajoso para nós, porque a NATO é ineficaz.

Mais uma vez, não há nenhum país europeu ou de além mar específico que nos ameace, exceto a própria NATO, como um açaimo coletivo sobre todos esses países, não permitindo que economias nacionais abram as suas asas.

Aliás, exatamente pela mesma razão, deveríamos esforçar-nos por preservar a União Europeia. Esta é também uma estrutura muito útil para a economia russa – frouxa e pouco competitiva. É uma grande pena que um rato tão importante como a Grã-Bretanha tenha fugido deste navio que se está a afundar.

Porque é que a NATO é um inimigo muito bom? Em primeiro lugar, porque é um tigre de papel. E, mais concretamente, papel higiénico – a própria estrutura está na merda e, com ela, toda a máquina militar da Europa. É precisamente por causa da existência da NATO que nenhum país (outrora um continente muito bélico) pode ter uma única divisão terrestre pronta a combater em qualquer momento. Nem mesmo três deles são capazes de chegar a um acordo, por exemplo, a França, a Inglaterra e a Alemanha não conseguem cooperar.

As forças armadas da NATO, para além da vertente nuclear, incluem forças de reação rápida, prontas a saltar das suas cadeiras neste preciso momento e a correr para instaurar a democracia em qualquer direção. No papel, têm 300 000 soldados em alerta permanente e 500 aviões a postos sob pressão. As principais forças de defesa são outros 600 a 800 mil arrojados guerreiros europeus, apoiados por cerca de um milhar de bombardeiros e caças. Numa palavra, são poderosos, mas tudo isto está no papel.

DUAS CABEÇAS

Na realidade, ninguém sabe como é gerida a NATO. Em 2003, foi decidido levar a cabo uma reforma profunda de todo o aparelho de gestão, tornando-o flexível e compacto, como está escrito nos documentos estatutários da NATO – “respondendo aos desafios e realidades modernas”. A ideia era reduzir drasticamente a quantidade de burocracia e de estruturas de gestão após a Guerra Fria. Não se riam agora, a reforma decidida em 2003 ainda não está concluída. No início, decidiram que não era bom que fossem sobretudo os americanos a mandar. Por isso, criaram uma estrutura paralela em que os europeus eram os responsáveis. Reparem nas mãos: havia uma cabeça, agora há duas.

A estrutura americana chama-se Comando Conjunto das Forças de Transformação (Joint Forces Transformation Command, localizado nos Estados Unidos), a estrutura europeia chama-se Comando Conjunto das Operações (Joint Command Operations, localizado na Bélgica). Estas duas estruturas dividiram a NATO entre si. Os americanos comandam diretamente três, como diríamos em russo, distritos militares, os europeus – oito. Mas isto é só o princípio.

Ambos os comandos têm os seus próprios quartéis-generais – são também estruturas separadas com o seu próprio pessoal. Além disso, existe o Quartel-General Supremo das Potências Aliadas na Europa (Supreme Headquarters of the Allied Powers in Europe), o Quartel-General Supremo da Força Expedicionária Aliada (Supreme Headquarters of the Allied Expeditionary Force) e o Quartel-General Militar Internacional (International Military Headquarters), onde têm assento direto os chefes dos Estados-Maiores dos países participantes. Cada país participante tem um representante permanente com o seu próprio pessoal nestes quartéis-generais.

Todos eles se sentam ali muito a sério, são obrigados a reunir-se pelo menos uma vez por mês, ou seja, têm alguma coisa para fazer lá, não é brincadeira! O Quartel-General Militar Internacional responde diretamente ao Comité Militar da NATO (NATO Military Committee), que é formalmente o órgão supremo, mas na realidade existe também o próprio Conselho do Atlântico Norte (North Atlantic Council)- também ele um órgão separado com a sua própria estrutura, quartel-general supremo e conjunto. Estas são apenas as grandes estruturas que se encontram à superfície.

Não mencionamos as agências, os conselhos e os comités especiais. Ninguém sabe exatamente quantos são, porque estão constantemente a fechar, a fundir-se e a reformar-se. De acordo com os últimos relatórios dos serviços secretos chineses, a NATO tem cerca de 60 agências e cerca de 15 direcções e comités. Existe, por exemplo, uma Agência de Consultoria e Controlo separada – ninguém percebe o que faz, escreve alguns relatórios como “O Estado da Ajuda Patrocinada”. Mas, ao mesmo tempo, tem mais de mil funcionários em cinco países e um orçamento anual de cerca de trezentos milhões de euros.

Para além do sector militar, a NATO tem também um sector civil – uma estrutura separada com 15 direcções distintas. E agora, atenção, o maior segredo militar da NATO – ninguém sabe quantos burocratas trabalham nesta organização e que orçamento específico é gasto em todo este luxo. Lembram-se dos 2% do PIB? Pois eu digo-vos que é uma grande treta, porque nos corredores da NATO só se fala de corrupção. Não se fala de outra coisa – quem vai cortar e devolver quanto a quem, essa é a principal direção estratégica do planeamento dos melhores cérebros da NATO. De forma puramente especulativa, pelo menos 700 mil burocratas trabalham em todas as estruturas conhecidas da NATO e, com a ajuda de trabalhadores contratados (não são eles que escrevem todos estes relatórios, mas atraem incontáveis institutos para o estudo de tudo e de todos), o número será superior a um milhão. Lembrem-se deste número – nada menos que 700 mil burocratas trabalham com bons salários europeus e americanos.

Voltemos agora ao mundo real. Lembram-se da força de reação rápida – 300.000 baionetas e 500 aviões? Em 2023, a NATO decidiu bater-nos o pé e realizar exercícios muito assustadores no terreno “Air Defender-23”. O projeto foi concebido em 2018 (em resposta à anexação da Crimeia). A ideia era muito simples: juntar 250 aeronaves numa pilha e fazer 250 surtidas por dia durante 10 dias. Mais uma vez, atenção – eles prepararam-se para isto durante cinco anos.

No final, foram reunidos menos de 180 aviões: nominalmente, os americanos forneceram uma centena (na realidade, menos, mas vamos fingir que acreditamos neles) e a Europa juntou mais 80 – o que inclui, aliás, os novos países da NATO (Suécia e Finlândia). E não se trata apenas de aviões de ataque, mas também de aviões de transporte, AWACs e outros. O melhor resultado dos exercícios foi de 50 voos por dia para todo o grupo, em média, voaram 30 vezes por dia, e não houve um único voo sem violações ou incidentes aéreos (sim, pequenos, mas isso não é importante).

As aeronaves mais numerosas da NATO são, mais uma vez, o F-16, com quarenta anos de idade. E, por exemplo, o famoso Rafale não chegou de todo – de facto, este pequeno avião revelou-se uma espécie de asno voador e não uma máquina de combate. Por alguma razão, a cada duas horas de voo, necessitava de reabastecimento aéreo. No entanto, a NATO não dispunha de aviões-tanque com o equipamento necessário para este pássaro, pelo que decidiram simplesmente não o pilotar.


Ah, esqueci-me de dizer que o B-52 também não chegou – decidiram, aparentemente, não correr riscos. Da última vez, dos 70 vetustos nominalmente prontos para o combate, apenas quatro entraram em alerta de combate. De alguma forma, voaram para o Qatar ou para Omã e avariaram. Demorou muito tempo repará-los e a levá-los para casa. Por outras palavras, dos 500 aviões declarados da força de reação rápida, a OTAN poderá trazer 180, na melhor das hipóteses, dos quais menos de um terço estará realmente a operar no céu em qualquer dia de escalada. Este é o resultado do maior exercício aéreo da NATO, que estava a ser preparado há cinco anos.

Todo este desfile de intimidação teve lugar contra o pano de fundo do nosso grupo aéreo da OME, que na altura incluía, segundo as estimativas mais conservadoras, 450 aviões (de transporte e outros) com uma capacidade nominal de 1000 missões por dia. Imaginem como os nossos pilotos de combate estavam de olhos arregalados, a assistir a este horror da NATO, passando cerca de quatro horas por dia no ar. Exatamente o dobro do que os melhores ases europeus passam no céu numa semana (se tiverem sorte e o avião arrancar).

Agora percebe-se porque é que precisamos realmente de um inimigo assim – um sapo de pelúcia assustador. Para educá-lo, é claro que de tempos em tempos temos de o bombardear – organizar incursões ousadas nos países bálticos, com tiroteios contra guardas fronteiriços locais e outras travessuras divertidas, para que a NATO não fique completamente gorda. Mas isto também é um treino para nós. É evidente que as forças da NATO também têm uma componente terrestre e, mais importante ainda, uma componente nuclear, mas falarei sobre elas num artigo separado. Não será menos interessante!

14/Outubro/2024

[*] Analista, russo.
Este artigo encontra-se em resistir.info



 

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