A humanidade podia ter evoluído linguisticamente de múltiplas formas. Só mesmo a aposta deliberada, depois da II Guerra Mundial, na formação duma espécie de inglês Simplex, permitiu o domínio global deste idioma, que nas décadas mais recentes se tornou a verdadeira “língua franca” da espécie humana. Mesmo com o ascendente econômico dos EUA no imediato pós-guerra, e com o império britânico ainda de pé, não estava de modo nenhum “escrito nas estrelas” que a evolução linguística fosse a que realmente foi. Foi necessário acrescentar a isso a competição com a União Soviética, bem como a grande vaga das descolonizações, para que o conflito geopolítico se tornasse também uma guerra cultural, uma disputa pelos hearts and minds de virtualmente toda a gente e em toda a parte; e para que, em consequência, o inglês “tivesse” de se generalizar como realmente generalizou.
Do ponto de vista da administração do super-império anglo-saxônico, isto é, do conglomerado formado por Reino Unido e EUA, ou ainda daquilo que Niall Ferguson designou como “Colosso”, foi sempre um problema, por exemplo, saber quanto deveriam as autoridades imperiais empenhar-se na expansão do protestantismo para sul, nas Américas e não só. É essa a tese, designadamente, de Ferguson: o tal Colosso teria, tarde ou cedo, de arregaçar as mangas e garantir a dilatação para sul das crenças protestantes. Devo dizer que a referida tese me pareceu estranha e excessiva, quando primeiro a vi formulada, mas a verdade é que, levando em conta, por exemplo, a expansão e a crescente importância do evangelismo político no Brasil, creio ser melhor manter uma atitude de agnosticismo quanto a esse tema.
Falar inglês mais alto
Os aspetos religiosos, em todo o caso, são talvez de importância relativamente secundária; pelo menos, se comparados com os idiomáticos. E, de resto, a Igreja Católica tem já uma grande tradição de compatibilização da sua agenda com o domínio de potências protestantes, como aliás demonstra bem o alinhamento do Vaticano primeiro com o III Reich; e depois de 1945 com os EUA, apesar do pendor vincadamente WASP destes últimos. Por outro lado, a história das relações de potências como, por exemplo, Portugal e o Reino Unido, ilustra bem a forma como a potência sênior protestante pode perfeitamente optar por deixar os “nativos” continuar com a sua tradição religiosa, desde que permaneçam cumpridores nos aspetos verdadeiramente relevantes: econômicos e, sobretudo, militares.
Todavia, se os aspetos religiosos parecem assim ser matéria para dúvidas razoáveis, já quanto a questões idiomáticas a atitude agressiva da potência hegemônica norte-americana é iniludível. A hegemonia norte-americana é, pelo menos relativamente a isso, bem mais exigente quanto ao envolvimento ativo e ao comprometimento efetivo dos “nativos” do que o foi a britânica. Muito mais do que os ingleses, os norte-americanos trataram, pelo menos desde 1945, de “falar inglês mais alto” como forma de garantir que toda a gente os entendia; e de assegurar que os “nativos” eram também capazes de responder. Foram, quanto a isso, basicamente vitoriosos.
O uso do inglês como língua franca da humanidade deixa aquela língua, ou mais exatamente os seus falantes, em evidente posição de “free riders”, ou seja, como beneficiários de um acordo de cooperação que obriga os demais cooperantes a um custo, mas não a eles que, todavia, são disso os principais beneficiários, como acertadamente notou Philippe Van Parijs. O problema é que esse compromisso, do qual os anglófonos beneficiam sem suportarem custos, significa também um ganho muito significativo para todos os demais. A alternativa é, como se verifica facilmente, por exemplo, nas cimeiras dos BRICS, um recurso tremendamente pesado a permanentes e omnipresentes serviços de tradução, todos eles meramente biunívocos; e acabando inevitavelmente por lesar e (em maior ou menor grau) atraiçoar e empobrecer o conteúdo das próprias ideias transmitidas. Pode-se dizer, quanto a isso, que se trata aqui duma Babel ilustrada na perfeição.
Do mesmo modo, na União Europeia todos os idiomas dos estados-membros são também formalmente idiomas oficiais – mas quem se interessa, por exemplo, por traduções de irlandês para estônio, ou vice-versa? A verdade é que, embora não oficialmente, e mesmo com a saída do Reino Unido, o inglês é já a língua da UE. E isso, sublinhe-se, apesar do peso de alemães e franceses, uns e outros em condições de poderem disputar a posição dominante – ou pelo menos de a dividirem, a UE podendo assim tender a tornar-se idiomaticamente de facto franco-alemã. Mas está visto que não: a “língua franca” veio aqui a ser, inequivocamente, a língua angla.
Tinha de ser assim? Tenho algumas dúvidas relativamente a isso. Quanto a alguns aspetos, designadamente os acadêmicos, o idioma de comunicação transeuropeia podia ter vindo a ser, por exemplo, o latim sem declinações, criado na viragem de século XIX/XX por Giuseppe Peano. Mas a nova língua avançada pelo matemático piemontês defrontou sempre a competição quer do latim sem mais, o latim propriamente dito, que até ao começo do século XX permaneceu em muitos países uma língua obrigatória das dissertações de doutoramento, quer do francês, com uma posição muitíssimo invejável até bem mais tarde, designadamente via diplomacia. As más relações que, em geral, prevaleceram entre Itália e França também terão tido nesta história o seu papel. A verdade, em todo o caso, é que o latim sem declinações não vingou. E todavia, é fácil imaginar que, se tivesse havido um poder político empenhado em promovê-lo, e apoiado por outro lado quer no prestígio residual do latim, quer na maior proximidade linguística duma boa parte dos povos da Europa, podia bem ter vindo a ocupar uma posição académica que mesmo o inglês, ainda hoje, talvez não conseguisse disputar.
Fica o registo do falhanço, junto com algumas interrogações. Será viável uma língua franca meramente erudita, sem transposição disso no plano, designadamente, das transações econômicas? Ou o idioma comum dos acadêmicos tem se ser, em sociedades de irreprimível inclinação democrática, um mero reflexo daquele que predomina na economia? E, quanto à tradução disso para os fenômenos monetários, se é que ela é legítima: a humanidade beneficia decerto, até certo ponto, da existência duma linguagem monetária comum, como aquela que se expressa no dólar dos EUA. Mas isso, só por si mesmo, já dá aos EUA uma posição de considerável vantagem relativamente a todos os demais países. E, embora possa alegar-se que o uso duma moeda politicamente apoiada, mas sem lastro em metais preciosos, pode representar uma libertação das transações mundiais relativamente às vicissitudes técnicas potencialmente associadas à obtenção dum qualquer metal, por outro lado os benefícios dessa libertação tendem a ser marcadamente assimétricos – a favor, claro está, dos EUA.
Daqui até ao “privilégio exorbitante”, como se lhe referiu outra personalidade francófona, muito mais famosa que Van Parijs, vai provavelmente uma distância muito curta. O fim da convertibilidade em ouro do dólar deixou a moeda dos EUA na posição daquilo a que Karl Marx chamou “forma equivalente”, isto é, como encarnação imediata do valor, ao passo que todas as demais moedas foram relegadas para a posição subalterna de “forma relativa”, devendo obrigatoriamente ver o seu valor reconhecido através da sua transmutação naquela. Mas, como se tudo isso não bastasse, ocorreram ainda (cereja em cima do bolo dos abusos) as tendências para a transformação direta do dólar numa arma, com a proliferação das chamadas “sanções”, na verdade os permanentes abusos da sua posição dominante por parte dos EUA, visando violenta e grosseiramente “manter na linha” todos os que se atrevessem a desafiar a sua dominação.
Esperanto e outras grandes esperanças
É necessário referir outrossim, a respeito dos temas linguísticos, o esperanto. Surgido também na viragem de século XIX/XX, moveu-se frequentemente na vizinhança da chamada “teosofia” e de ideias como o vegetarianismo, a não-violência erigida enquanto suposto método de atuação política, e remetendo diretamente para nomes famosíssimos, Tolstoi e Gandhi acima de todos – e secundariamente reportando também, muito mais perto de nós e em versão de cultura popular, para o movimento hippie e o flower power, para John Lennon como o seu celebérrimo “and the world will be one”. Genericamente, apelou ao projeto dum pan-humanismo transformado numa religiosidade expurgada de particularismos, mas que soubesse reter o que existe de irredutivelmente religioso na experiência humana, isto é, o homo sapiens enquanto homo religiosus. Nesse âmbito, foi também um suporte do ideal de paz universal.
Tudo isso, como é mais do que sabido, teve inúmeras derivas e sofreu aproveitamentos imensamente abusivos, alguns deles verdadeiramente abomináveis. Mas há que reconhecer que uma língua totalmente artificial e criada de raiz, como o esperanto, estava talvez fadada à partida para o falhanço. Também a religiosidade simplesmente pan-humana, à maneira da “teofilantropia” e da “religião da humanidade” de Auguste Comte, nunca terá passado de mais uma falsa partida. E sim, para cúmulo, todos estes projetos mais recentes acabaram por desaguar em boa medida também no “globalismo” político; de facto, na defesa da full spectrum dominance dos EUA, embora isso constitua também a completa perversão de muitas das ideias de base.
É naturalíssimo, e muitíssimo salutar, que tenha havido uma reação ao tal projeto de full spectrum dominance dos EUA, que aliás configura não um ideário universalista, mas apenas os particularismos dos EUA. Este aspeto deve ser destacado, porque frequentemente mesmo os adversários da tal full spectrum dominance se lhe referem como globalismo ou universalismo, quando de facto tal ideia configura o oposto disso. Trata-se, bem pelo contrário, de libertar a humanidade inteira não só da dominação ianque, mas acima de tudo do correspondente mumbo-jumbo, isto é, do correlativo grupo de superstições: políticas e não só.
Os EUA são, já hoje, e conforme plenamente ilustrado pelo seu ritual cíclico (ou a sua forma muito elementar de vida religiosa) a que chamam “eleições”, uma sociedade incapaz de transmitir ao resto de mundo quaisquer elementos intelectuais ou morais genuinamente interessantes. Em vez disso, dir-se-ia serem capazes apenas de exportar ou inspirar culto da violência, primarismo, grosseria e polêmicas abissalmente idiotas – como a que está associada à suposta guerra cultural dos ideários woke e anti-woke. Quarenta e cinco anos depois, é como se tivéssemos ficado congelados naquilo que os Monty Python mencionavam já em 1979 (ano da eleição de Thatcher), através duma mera tirada humorística. Desde então, porém, o Ocidente perdeu todo o sentido de humor; e manifestamente retrocedeu-se em inteligência e discernimento. A humanidade é, em definitivo, merecedora de melhores perspetivas intelectuais e morais do que as que são representadas por esta wasteland.
Os BRICS são, talvez, a melhor expressão dessa reação mundial à tentativa de submissão da humanidade ao domínio material ianque e à hegemonia dos tribalismos ianques. Contêm inegavelmente no seu bojo muito mais elementos criativos do que destrutivos. Podemos dizer que, com todo o seu enfático reconhecimento da diversidade e dos particularismos, está aí (contraditória, mas complementarmente) o traço mais genuinamente universalista da história mundial das últimas décadas.
Todavia, é impossível assistir a esta lenta emergência e não sentir a urgência de perguntar: e depois, o quê? Em vez duma unidade comum de conta, por exemplo… só a promoção de relações de comércio bilaterais? Uma moeda apoiada em metais ou noutras commodities, ou apenas um compósito das moedas nacionais já existentes? Talvez uma monnaie commune, como em tempos Jacques Sapir escreveu a respeito do antigo ECU europeu, por oposição à monnaie unique?
Tudo isso deixa obviamente imensas interrogações em aberto. Por exemplo: uma unidade de conta alternativa ao dólar dos EUA será uma entidade não suportada por qualquer poder soberano. Para não reproduzir, em escala alargada, a aberração que é já hoje-em-dia o Euro, deverá ter sempre o cuidado de ser “comum”, sim, mas sem pretender ser “única”; de ser adequadamente mercurial, sabendo sempre retirar-se atempadamente, mas também reaparecendo quando é realmente necessário estabelecer pontes; de ser também suficientemente independente dos aspetos técnicos potencialmente associados à produção de qualquer material físico, mas abstendo-se de utilizações abusivas, como os que só a soberania permite e a que só os poderes soberanos podem apelar.
E quanto aos aspetos relativos a línguas? A diversidade idiomática da espécie humana é, claro, um tesouro inestimável. Mas as necessidades de comunicação universal não desaparecem em virtude do referido reconhecimento. Servirá de consolo pensar que o inglês pode ser usado inclusive para combater a hegemonia dos EUA (como é, por exemplo, minha intenção ao escrever este texto)? Talvez isso possa ajudar na compreensão daquilo que temos pela frente. Inglês como língua comum, embora não língua única? Triunfo do inglês nessa capacidade, inclusive como arma indispensável à construção duma grande coligação anti-hegemônica? Será essa uma das muitas ironias da história universal nas próximas décadas? Creio ser importante pelo menos considerar essa eventualidade, com todos os problemas que lhe estão talvez associados, mas também com todas as correspondentes potencialidades.
11/Novembro/2024
[*] Sociólogo.
Este artigo encontra-se em resistir.info
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