O governo atual vê o Estado como indutor de um crescimento econômico que resulta na distribuição de renda e no aumento do mercado interno
Camila de Caso
O governo Lula 3 está sendo alvo de um debate acalorado sobre sua natureza ideológica: é um governo de crescimento com distribuição de renda ou sua agenda é neoliberal? A resposta a essa pergunta inflama o debate político e divide o país, sobretudo em um contexto marcado pela crescente ameaça da extrema-direita à democracia. Em meio a essa disputa, a história econômica brasileira se revela como um campo de batalha entre duas agendas: a de crescimento com distribuição de renda e a neoliberal. É nosso dever analisar os compromissos em suas complexidades e rejeitar explicações superficiais que, em uma espécie de sinédoque, se apoderam da parte para substituir o todo que a compõe. Apesar de a figura de linguagem funcionar muito bem em prosa e poesia, não tem o mesmo efeito em análises da conjuntura e de suas estruturas econômicas.
O atual mandato de Lula tem como agenda o crescimento com distribuição, um modelo clássico do petismo e marca registrada do Lula 1 e 2. Portanto, Lula 3 não apresenta um caráter neoliberal. Isso não significa, no entanto, que o governo atual esteja livre de contradições ou que não tenha adotado medidas de cunho neoliberal. O neoliberalismo não é apenas uma agenda macroeconômica, mas sim um paradigma. Por isso, é possível que um governo tenha uma agenda desenvolvimentista e, ainda assim, adote medidas macroeconômicas ou outras de caráter neoliberal.
É curioso notar neste debate que os críticos de ocasião ao governo Lula 3, que o caracterizam como um governo neoliberal, são os mesmos que se dizem críticos da narrativa dominante, mas que caem nos mesmos equívocos ao analisar cada ação tomada de modo isolado, sem a complexidade necessária. Tentarei não dividir o mundo entre o bem e o mal, como fazem ao avaliar com um microscópio cada política econômica do governo, classificando-as como certas ou erradas, sem considerar interesses, conflitos distributivos e a luta de classes.
O governo atual vê o Estado como indutor de um crescimento econômico que resulta na distribuição de renda e no aumento do mercado interno. A recuperação do salário mínimo, com ganhos reais acima da inflação, é um dos pilares da agenda de crescimento com distribuição, um sinal claro de que o governo Lula 3 busca a justiça social. O foco no mercado interno e na distribuição de renda como motores do crescimento alinha-se à tradição desenvolvimentista, legado da agenda de Celso Furtado.
Ao estruturar seus programas dentro da lógica de missões, o governo apresenta uma nova forma de pensar o papel do Estado, buscando organizar o tecido social e fortalecer o poder público como indutor do desenvolvimento. Após oito anos desativado, em 2023, foi recriado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), onde ocorreu o debate entre os governantes e o setor produtivo para apresentar uma nova política industrial que impulsione o desenvolvimento nacional até 2033. São seis metas aspiracionais no plano de ação que compõem as missões da Nova Indústria Brasil. O Plano de Transformação Ecológica (PTE), que está inserido no Pacto pela Transformação Ecológica entre os três poderes do Estado brasileiro, tem o potencial de promover mudanças estruturantes na economia. Além, obviamente, do retorno do Novo PAC (Programa de Aceleração de Crescimento).
Esses três programas estruturados dentro da lógica de missões, exemplificam a atual política de Estado como indutor de investimentos na economia. Além disso, temos a recuperação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que volta a ser um dos principais instrumentos de execução da política de investimentos do Governo Federal. Vale lembrar que, no ex-governo Bolsonaro, o Banco passou por uma tentativa de criminalização e desmonte incluindo a CPI do BNDES, onde a direita nunca encontrou nada
Desde o início, o governo Lula 3 tentou implementar uma série de medidas para aumentar a arrecadação e estabelecer a justiça tributária no país. O Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tentou fazer um ajuste pelo lado das receitas, sem êxito. Essas medidas foram questionadas em inúmeros relatórios de bancos, que contaram com o apoio da grande mídia para pressionar o Congresso Nacional a impor derrotas ao governo.
A renúncia fiscal com a derrubada do veto presidencial à desoneração da folha de pagamento e ao Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) foi estimada em R$ 32 bilhões ainda para este ano. Tentou-se aprovar, dentro da Reforma Tributária, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). A proposta era taxar em 0,5% ao ano os patrimônios de R$ 10 milhões a R$ 40 milhões, em 1% aqueles entre R$ 40 milhões e R$ 80 milhões e em 1,5% as riquezas superiores a R$ 80 milhões. Os estudos apontam para uma arrecadação de cerca de R$ 40 bilhões. Por óbvio, a medida foi derrotada na Câmara dos Deputados. Apenas essas medidas mencionadas somam cerca de R$ 80 bilhões, mostrando que o compromisso do Congresso Nacional não é com o ajuste das contas, mas sim com a destruição de direitos da classe trabalhadora e a tentativa de impor, à força, medidas neoliberais ao governo.
Há de se admitir que houve também uma incapacidade do governo federal em articular as medidas junto ao Congresso Nacional, além de uma comunicação mais eficaz com a população. Não podemos culpar a população por desconhecer as derrotas sofridas, ainda mais com a adoção de um discurso altamente fiscalista por cada vez mais setores do governo. Hoje, no Brasil, sofremos um ataque especulativo que tende a desajustar os preços em nossa economia.
Então, por que afirmo que o governo Lula 3 não é neoliberal? A agenda neoliberal propõe reformar a Constituição para reduzir gastos públicos e diminuir o protagonismo estatal. O crescimento econômico se daria pelo lado da melhora das condições de oferta. Lula é categórico ao afirmar que educação e saúde são investimentos e não gastos, além da volta do salário mínimo crescendo acima da inflação.
A história econômica brasileira é marcada pela disputa de duas agendas. Recomendo aqui também a leitura do livro Brasil em disputa – Uma nova história da economia brasileira, de Pedro Rossi. O terceiro governo de Lula enfrenta uma batalha árdua: ataques especulativos e a constante ameaça de um sequestro orçamentário por parte do Congresso Nacional, que tenta minar suas ações. Precisamos identificar quais são os interesses em jogo e entender que o inimigo da classe trabalhadora — o representante do mercado financeiro e da tentativa de desmonte da Constituição brasileira, da forma como a conhecemos, a partir dos cortes de gastos — está na cadeira de presidente da Câmara dos Deputados.
A verdadeira natureza do governo Lula 3 é crucial para o futuro do Brasil. A luta contra o neoliberalismo e a defesa de uma agenda de crescimento com distribuição dependem de nossa capacidade de identificar os verdadeiros interesses em jogo e de nos mobilizarmos para defender uma sociedade mais justa e próspera. Ainda assim, caso o governo adote uma política monetária e fiscal contracionistas, os resultados nas condições de vida podem ser danosos. A extrema-direita, espreitando na esquina, representa uma ameaça real à democracia e aos direitos sociais. Não podemos permitir que o mercado financeiro e seus aliados impunham seus interesses por meio de cortes de direitos e do desmonte do Estado, a agenda está em disputa.
Camila de Caso é economista.
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