sexta-feira, 1 de novembro de 2024

O que está acontecendo no Brasil?

Fontes: Jacobinlat [Imagem: Pablo Marçal em passeata de motociclistas. Créditos: Maria Isabel, retirado de Jacobinlat]


As eleições municipais revelaram uma realidade difícil para a esquerda no Brasil. Embora o PT tenha avançado nos pequenos municípios, os resultados nas grandes cidades mostram uma derrota contundente. A extrema direita continua a ganhar terreno e o neofascismo toma conta da consciência popular.

A derrota sofrida pela esquerda brasileira nestas eleições fez todos refletirem. O que aconteceu? O PT conquistou 248 Câmaras Municipais. Mais que os 182 de 2020, mas longe dos 624 de 2012. No outro extremo, o Partido Liberal (PL) de Bolsonaro venceu em 512 municípios. Além disso, houve avanços significativos do PSD de Gilberto Kassab e de outros partidos que, apesar de serem classificados como “centristas”, pressionam o governo e a realidade à direita. O PSOL perdeu 8 vereadores e a única capital que governava, ficando em terceiro lugar em Belém. Boulos chegou ao 2º turno em São Paulo, mas não antes de passar por um desgastante empate triplo no 1º turno, onde o fascista Marçal foi o fator imponderável e uma enorme frente antiesquerda se formou em torno de Ricardo Nunes. Existem muitos outros dados e, de qualquer ângulo, a derrota foi grande. O primeiro turno, com algumas exceções importantes, revelou uma situação pior do que há dois anos.

Diante de tudo isso, abriu-se um debate na esquerda sobre o equilíbrio das eleições. Deixemos de lado as avaliações autocongratulatórias que afirmam que houve avanço da esquerda simplesmente porque o PT aumentou o número de câmaras municipais. São cidades menores, geralmente fora do eixo que define a dinâmica geral da política brasileira. Vamos dialogar com quem aceita que houve uma derrota. A questão é: por quê?

As derrotas são desorientadoras, são mais difíceis de assimilar e, portanto, de explicar. Uma parte importante da esquerda apega-se exclusivamente a elementos endógenos, ligando-se a uma ilusão infantil de que poderíamos ter evitado tudo. Bastava seguir as ideias corretas num setor ou outro, aplicar esta ou aquela tática. Ou talvez tenha sido culpa do candidato? No Twitter, o meme do comediante Daniel Duncan resume bem: “calma gente, fale devagar, não posso escrever tudo o que a esquerda tem que fazer para vencer as eleições”.

No pólo oposto estão aqueles que querem proibir qualquer debate, como se qualquer crítica tivesse como consequência prática o fortalecimento da extrema direita. Parece-nos que devemos evitar ambos os erros e analisar tanto os factores exógenos, independentes das opções tácticas da esquerda, como os endógenos, lembrando sempre que há várias esquerdas, com atuações diferentes e âmbitos muito diferentes. Vamos ver.
O cenário internacional

A derrota no Brasil não é um raio do nada. Isso ocorre em um contexto. Vivemos numa situação global em que a extrema direita avança. Na Europa, as forças do atraso continuam a sua marcha rumo à conquista de vários governos importantes. Já têm Itália, Hungria e, mais recentemente, Áustria. O Chega em Portugal e o Vox em Espanha ameaçam a Península Ibérica. A AfD avança de leste para oeste da Alemanha. Em França, a vitória imediata de Le Pen foi evitada, mas a situação continua tão má que Macron deu um golpe de direita, tirando à Nova Frente Popular a prerrogativa de formar um governo, e nada aconteceu. Nos Estados Unidos, Trump está a avançar perigosamente sobre os estados indecisos.

Na América Latina, um golpe na Bolívia poderia ser evitado, mas não uma divisão autofágica dentro da esquerda. Milei continua a sua ofensiva na Argentina e não é certo que a resistência que surgiu lá até agora possa deter o seu ímpeto destrutivo. Na Colômbia, foi tentado um novo golpe de Estado contra Gustavo Petro, também com a participação do judiciário, como aconteceu no Brasil. Em El Salvador, Nayib Bukele transformou o país numa distopia política e social de referência para todo o fascismo latino-americano.

A situação de maior gravidade e urgência internacional, no entanto, continua a ser o genocídio do povo palestino, que avança numa escala sem precedentes porque desta vez é um massacre televisionado, com cobertura em tempo real pelas redes de todo o mundo, sem que isso aconteça. , pelo menos até agora, tendo parado o governo de Netanyahu. Pelo contrário, Israel está a avançar no sentido de transformar o Líbano numa nova Gaza.

No Brasil, além da derrota eleitoral, dos incêndios criminosos, do avanço do neopentecostalismo fundamentalista, das milícias, da precariedade de vida, das privatizações, do clientelismo e da violência política, tudo isso tingido com o cerco e boicote ao governo pelo capital financeiro e a grande imprensa corporativa.

“Ocupar o espaço anti-sistema”?

É um facto que existe cansaço, tédio ou mesmo ódio em relação ao actual regime político e social? Sim. Na verdade, o brasileiro médio sempre amaldiçoou o sistema, xingou os políticos e xingou “contra tudo o que existe”. E hoje eles fazem isso mais do que nunca. Mas há um problema.

Historicamente, esta rejeição do “sistema” andava de mãos dadas com uma visão mais ou menos progressista da saída dos problemas. As pessoas amaldiçoaram os políticos precisamente porque pensavam que a educação e os cuidados de saúde deveriam ser considerados direitos sociais, que os trabalhadores deveriam ser protegidos da ganância dos seus patrões, que as mulheres, os negros e as pessoas LGBT deveriam ser defendidas da violência e da injustiça. A Constituição de 1988 é uma espécie de “instantâneo” da consciência de classe média que se instaurou no Brasil após o fim da ditadura militar. O PT e mesmo a esquerda mais radical foram construídos sobre esta consciência média.

Pelo contrário, as cosmovisões que pregavam o fim de quaisquer direitos, o ódio, o fanatismo religioso e a violência sempre foram vistas como algo fora do comum. Bolsonaro foi motivo de piada nas décadas de 1990 e 2000. Antes dele, Enéas Carneiro era famoso mais por seu slogan característico e sua cor pessoal do que por suas ideias, que ninguém conhecia ou entendia bem.

O que temos hoje em termos de consciência média na base do bolsonarismo, movimento que constitui cerca de um terço da população? Uma massa política e economicamente reacionária, com elementos de fanatismo religioso, extremamente misógina e altamente racista e LGTBfóbica. A defesa da infância, dos direitos reprodutivos, da natureza, dos direitos laborais, da igualdade e da justiça social, e da laicidade do Estado já não são o grande consenso nacional que eram há poucos anos. As soluções prevalecentes são o empreendedorismo, a mistura de religião com política, o punitivismo, a ditadura militar, o fechamento do Supremo Tribunal Federal, a queima e venda da Amazônia e todo tipo de atrocidades que antes não passavam de uma piada de mau gosto

Em outras palavras, a primeira coisa que deve ser firmemente estabelecida é que não existe nenhum “espaço antissistema” abstrato, praticamente “vazio”, que possa ser “preenchido” com este ou aquele conteúdo, da direita ou da esquerda. O que realmente existe é uma forte mudança da consciência média para a direita. Cerca de um terço da população, com maior ou menor mediação, adotou a posição da guerra civil contra a esquerda, o “comunismo” e os direitos sociais. E a guerra civil contra o comunismo é exatamente a essência do fascismo.

Em suma, se quisermos falar de um “espaço antissistema”, temos que qualificar estes termos. O “sistema” que queremos combater é a própria civilização. Para quase metade da população, o “sistema” não é o policial, o político ou o patrão, como sempre enfatizaram nossos primos anarquistas, mas o fiscal do instituto ambiental, o sindicalista, o professor de história, a mulher o negro, o LGBT, o assistente social, o cientista, o padre que distribui comida aos moradores de rua.

Portanto não é possível “ocupar o espaço antissistema” porque não é um espaço vazio que possa ser ocupado e preenchido com conteúdos diversos. Este “espaço” já está preenchido, já tem conteúdo, já tem lugar na luta política entre civilização e barbárie. É o próprio fascismo.

Além disso, não é verdade que alguma força de esquerda tenha tentado ocupar este “espaço” com conteúdo próprio. Nestas eleições houve candidatos da esquerda radical antissistema que criticaram “tudo o que existe”, o “poder”, que defenderam uma oposição de esquerda ao governo. E qual foi o resultado? Insignificante. Injustiças do sistema eleitoral que favorece os grandes partidos? Este elemento existe, mas não é absoluto. O profundo declínio e virtual desaparecimento da esquerda sectária é um fenômeno que ocorre há vários anos e que vai muito além das barreiras eleitorais. Tem a ver com a sua inadequação e desconexão da realidade política nacional e com a sua completa dissonância cognitiva.

Isto não significa que tenhamos de nos comportar como uma esquerda institucional que defende o que há de pior no sistema: corrupção, privilégios, prevaricação e clientelismo. A crítica ao sistema deve estar presente em nosso discurso, mas devemos deixar bem claro que somos, ao mesmo tempo, defensores das conquistas civilizacionais que este sistema incorporou com muita luta: direitos sociais, mecanismos de redução da desigualdade, proteção dos mais vulneráveis, defesa do ambiente, da ciência e da cultura. Temos que combater o discurso de que estes mecanismos existem para “manter o trabalhador para baixo”, como disse Marçal na campanha. Pelo contrário, estamos à esquerda da expansão destes mecanismos e da sua incorporação como as conquistas civilizacionais que são.

Além disso, em termos de propaganda, temos de colocar a luta pelo socialismo de volta no horizonte. Hoje, o facto é que não só as massas, mas também a vanguarda das lutas e do ativismo de esquerda não estão convencidas desta perspectiva. O socialismo não pode ser um tema a recordar “nas férias”, como fez a social-democracia histórica, mas antes uma parte permanente da nossa luta ideológica, formação e propaganda.

Os limites do governo Lula e as alianças com o centrismo

Muitos ativistas e correntes de esquerda reclamam que algumas ações do governo Lula acabam fortalecendo a direita, como o marco fiscal, as concessões ao centrão, o retrocesso nas agendas ideológicas, certas nomeações e outras. É verdade. O governo Lula vacilou na luta contra a extrema direita e no simples cumprimento das promessas de campanha feitas pelo próprio Lula. Seria um erro negar esta realidade.

O problema é que se é difícil com o governo Lula, é impossível sem ele. É isso que está em jogo. Sem Lula teria sido impossível derrotar a máquina governamental nas eleições de 2022. O voto em Lula não foi um voto programático e de esquerda. Foi um voto estritamente pessoal. Graças a isso, o monstro foi temporariamente derrotado.

Outra verdade difícil de engolir: sem a ampla aliança com setores da burguesia que rompeu com o lawfare da Lava Jato e do bolsonarismo, não teria havido vitória em 2022 e Bolsonaro seria o governo hoje. Teria sido melhor? Certamente não.

Assim, na luta contra o fascismo, o governo Lula revela-se um aliado instável e hesitante, mas ao mesmo tempo indispensável, absolutamente inelutável, dadas as atuais condições de temperatura e pressão (nível de consciência, organização e vontade de luta do classe operária). O problema é que Lula aposta numa grande unidade para derrotar a extrema direita, mas seus interlocutores de direita e de centro não estão dispostos a se comprometer com os pontos mínimos do programa que elegeu o presidente. Temos, portanto, um paradoxo: a aliança que era condição para a vitória pode tornar-se, ao longo do mandato, uma preparação para a derrota.

Mas isso não significa que não haja nada para fazer. Pelo contrário, a luta política nunca foi tão importante, nunca foi tão importante defender enfaticamente que o governo Lula implemente medidas de combate à pobreza; defender as funções sociais do Estado; questionar a agenda de privatizações dos governos estaduais, em sua maioria de direita; implementar uma mudança na política ambiental, com mais regulação, proteção e uma atualização programática fundamental sobre o papel do Brasil na transição energética e no combate à crise climática.

É também urgente superar a separação entre a classe trabalhadora e as chamadas agendas “identitárias”. O equilíbrio dos intelectuais que procuram aprofundar esta divisão advém de uma incompreensão programática de um dos elementos mais progressistas da realidade política do século XXI. São milhares de jovens que despertaram para a vida política através da agenda antirracista, feminista e anti-GBT, através de batalhas que só parecem “identitárias”, mas que estão profundamente ligadas à vida da classe trabalhadora. Aqueles que morrem nas mãos da violência policial nas periferias são trabalhadores; Quem paga com a vida pelo preconceito contra pessoas trans e LGBT são trabalhadores; A grande maioria das mulheres vítimas de feminicídio e violência doméstica são trabalhadoras. As reivindicações de classe não são apenas as da agenda econômica ou puramente sindical e, deste ponto de vista, não é sequer uma lição nova. Lenine já assinalava, há mais de cem anos, a importância das batalhas políticas e os limites de uma visão puramente econômica dos programas e reivindicações populares. A luta pelo socialismo é uma luta total.

O problema tem sido, na verdade, que o governo invariavelmente recuou diante da ofensiva do centrão, do grande capital, da Rede Globo e da própria direita. Mas isso não significa que o governo não seja um instrumento útil e absolutamente necessário nesta fase. Tal é a dialética do processo: um aliado hesitante e instável, mas sem o qual a vitória é impossível.

A derrota de 2024: faltava alguma coisa, mas o que exatamente?

Muitos ativistas e correntes, na ânsia de equiparar praticamente o lulismo e o bolsonarismo, citam o fato de o PT ter se aliado ao PL em 85 cidades do país. Esse foi, na verdade, um grande erro do PT e criticamos desde o início. Desde que começamos a discutir as eleições de 2024, o PSOL defende uma política de unidade da esquerda em todo o país. Na nossa opinião, o resultado mostra que esta foi a política correta. Os lugares onde a esquerda se saiu melhor foram exatamente aqueles onde havia verdadeira unidade democrática e de esquerda: São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza, Natal. Onde o PT preferiu aliar-se aos partidos tradicionais de direita, o resultado foi muito pior, como em Curitiba, onde o 2º turno acabou sendo disputado entre dois candidatos de Bolsonaro. Mesmo onde o PT “ganhou” (por exemplo, no Rio), não foi exatamente uma vitória para eles, mas para aqueles que estão apenas taticamente e provisoriamente aliados do governo.

Por isso não concordamos com quem diz que o grande problema destas eleições tem sido o tom moderado de um ou outro candidato. É claro que houve erros, mas eles não são determinantes no nosso desempenho. Quem critica o resultado de Boulos no primeiro turno acaba criticando os melhores resultados da esquerda, precipitando-se antes da disputa final, quando na realidade o erro já ficou evidente nos casos em que a esquerda nem conseguiu se unir ou decidiu não participar, deixando o espaço da luta política completamente vazio numa eleição onde isso foi decisivo

Esse foi o grande erro e o grande problema.

Em São Paulo, o PSOL avançou em regiões importantes, justamente porque procuramos dialogar com as reais questões levantadas pela população: creches, postos de saúde, escolas, urbanização, cultura negra, violência doméstica, etc. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que a campanha não foi politizada. Ninguém é estúpido. As pessoas entenderam perfeitamente o que estava em jogo. Até certo ponto, foi um plebiscito entre a esquerda e a direita. E saímos do primeiro turno com uma derrota nacional e um resultado preocupante em São Paulo. Esse é o fato que deve ser enfrentado.

Portanto, ao criticar as tentativas de Boulos de dialogar com os sentimentos mais fundamentais da população, uma parte da esquerda o critica pelas razões erradas. A campanha em São Paulo enfrenta uma poderosa frente única de direita, que reúne toda a mídia tradicional, o governador Tarcísio e as alas mais radicalizadas da extrema direita. Neste contexto, é sensato fazer uma campanha que tente “romper a bolha” do eleitorado que sempre foi de esquerda.

Luta política e ideológica até 2026: o papel do governo Lula

A principal conclusão destas eleições não é, portanto, que “não ocupamos o espaço anti-sistema que era nosso”. A conclusão é muito mais sombria: perdemos a luta política e ideológica porque as pessoas não concordam com as nossas ideias. Portanto, além das medidas econômicas e sociais relacionadas com o cumprimento do programa 2022, precisamos de uma forte luta ideológica com o governo na linha da frente.

Não devemos ter medo. O peso de Lula é tão grande que ele pode mudar ideologicamente o jogo. Quando Lula luta politicamente, a realidade muda. Isso aconteceu nas eleições de 2022, mas não só. Lula mostrou sua capacidade de influenciar o pensamento das massas nos diversos episódios de boicote do Banco Central à economia brasileira, nas inúmeras vezes em que denunciou o genocídio em Gaza. Mas muito mais é necessário e possível.

É necessário e possível lutar para recuperar a nossa capacidade de mobilização. E esta é também uma opção política. Qualquer aprovação de planos progressistas no Congresso dependerá muito mais da luta fora do Congresso do que dentro dele. Se o nosso horizonte é restaurar os direitos sociais perdidos, ampliar o papel social do Estado, melhorar as condições de vida da população e ter um equilíbrio categórico para apresentar em 2026, o compromisso estratégico do governo tem que mudar porque nada disso será possível em o quadro dos acordos com o centro e os limites do grande capital. Mas para que isso aconteça, Lula e o PT precisam ir a campo porque são eles que têm maior articulação com os movimentos sociais e constituem a grande maioria das forças organizadas da classe trabalhadora.

A classe trabalhadora e a esquerda precisam voltar às ruas, ao cenário político nacional, e apresentar-se como candidatas à conquista da hegemonia política, ideológica e social, atualmente monopolizada pela extrema direita.

Para isso, o PSOL deve comprometer-se a fazer parte deste processo a partir de suas modestas posições nos movimentos e instituições sociais.

 


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