quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Os novos coolies

Imagem: Donatello Trisolino

Por RENILDO SOUZA*

Na concorrência entre os capitais e na disputa entre os Estados Unidos e a China, a tecnologia é compulsória, mesmo que às custas das condições de vida da classe trabalhadora

Os coolies eram os trabalhadores chineses e indianos mais brutalmente explorados pelos colonizadores europeus e foram vítimas de perseguições racistas nos Estados Unidos nos séculos XIX e XX.[i]

Mas por que, nesse tempo de revolução tecnológica, parece que há uma certa reinvenção dos coolies? Por que, nessa época de globalização, “coolies” podem agora originar-se de qualquer parte do mundo, afora a China? Por que a condição degradante dos coolies parace se espraiar entre, indistintamente, imigrantes ou nativos, sobretudo no Sul Global, impulsionados, entre outros fatores, pela extroversão dos capitais chineses?

O objetivo desta breve nota é articular o novo da revolução tecnológica com o velho da exploração capitalista sobre a classe trabalhadora, tendo como referência uma importante novidade do velho e mesmo capitalismo, ou seja, a internacionalização dos capitais chineses. O ponto de partida é o episódio envolvendo quase 500 operários chineses submetidos a maus tratos na construção da fábrica de automóveis elétricos BYD em Camaçari, na Bahia.

O Ministério Público do Trabalho instaurou um inquérito sobre as condições de trabalho, saúde e segurança no canteiro de obras.

Conforme a matéria de André Uzeda, publicada no portal Agência Pública, a situação é tenebrosa: “Agressões físicas, com chutes e pontapés. Alojamentos sujos, aglomerados, mal iluminados e sem divisão entre homens e mulheres. Banheiros imundos, sem limpeza diária das pias e dos vasos sanitários. Operários atuando sem equipamentos de proteção individual, submetidos a rotinas de 12 horas por dia, de domingo a domingo.”[ii]

No século XIX, os coolies asiáticos estiveram, em trabalhos forçados, nas plantações de cana-de-açúcar no Caribe e formaram 90% da força de trabalho que construiu a ferrovia transoceânica nos Estados Unidos. Os coolies chineses ainda participaram da construção do canal do Panamá no início do século XX. Na história do trabalho, a palavra coolie tornou-se sinônimo de discriminação, degradação e salários de fome. Mas parece que esse é um passado que não passa.

Os novos coolies, compreendidos amplamente, são os imigrantes estigmatizados nos Estados Unidos e na Europa. São os trabalhadores sul-americanos nas confecções em São Paulo. São os trabalhadores rurais nas vinícolas e no agronegócio. São os entregadores de alimentos. São os motoristas de Uber. São muitos, cada vez mais.

As transformações regressivas, impostas pelo grande capital através da globalização, neoliberalismo e financeirização, são a fonte dos novos coolies. Constituíram-se as condições econômicas, políticas e ideológicas que autorizam a barbárie social contemporânea.

Os múltiplos sentidos do emblemático caso da BYD

Primeiro, é um caso típico da modernidade do capital. A tecnologia dos carros elétricos, é vista, supostamente, como um meio de mitigar a crise ambiental. É um avanço da capacidade produtiva. Ao mesmo tempo, em função do interesse e da lógica do capital, a fábrica moderna se associa ao retrocesso, ao atraso, quando cria a condição de coolies para os trabalhadores.

Se a urgência do calendário do capital teria estipulado o fim de 2024 para a entrega da primeira parte da planta da BYD, então caberia arrancar a pele dos operários. Caberiam jornadas de trabalho ininterruptas por toda a semana, violências etc. Os feitores podiam usar o chicote.

Em segundo lugar, o caso da BYD é muito instrutivo. É uma aula de economia política crítica. Ali está o grande capital privado chinês. Ele chegou amparado pela força e privilégios dos Estados da China e do Brasil. E ele veio para cumprir a sua sina, se multiplicar. Ele veio fazer o que é absolutamente normal, valorizar o seu capital. Ele veio explorar a força de trabalho, mesmo que parte dos trabalhadores sejam os próprios patrícios chineses. Ademais, como estamos no medievalismo do século XXI, cumpre mais do que explorar, cabe espoliar.

Padrões trabalhistas na África

Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial da África. Nos últimos 25 anos, a China, interessada em matérias-primas e energia, concretizou gigantesco volume de empreendimentos, sobretudo de infraestrutura.

As empresas chinesas costumam levar seus trabalhadores para satisfazer, parcialmente, os seus investimentos no exterior. Alguns são contratados temporariamente para as tarefas de construção e instalação, enquanto outros são empregados como força de trabalho regular do funcionamento dos projetos. Na África, em 2015, havia 263.696 trabalhadores nesses empreendimentos. Em 2022, diminuíram para 88.371, principalmente localizados na República Democrática do Congo, Argélia, Egito, Nigéria e Angola.[iii]

Sobre a experiência das Zonas Econômicas Especiais criadas pela China na África, há importantes problemas relativos à força de trabalho. Ding Fei assinala que “sem firme determinação Estatal, as ZES podem conduzir a corrida para baixo entre os países para rebaixar os padrões trabalhistas, suprimir direitos da organização sindical e exacerbar o poder dos investidores estrangeiros”.[iv]

Ademais, Fei registra as queixas do açambarcamento de cargos gerenciais e técnicos pelos chineses. Na verdade, o capital aproveita a competição entre trabalhadores africanos e chineses.

A cruel história colonial na África moldou as possibilidades de desvalorização do trabalho. Governos autoritários, apartados de projetos populares, não priorizam legislações protetoras do trabalho. E o interesse estrangeiro, por óbvio, é o lucro.

Sergio Carciotto e Ringisai Chikohomero pesquisaram as práticas laborais em empresas chinesas em seis países: Angola, República Democrática do Congo, África do Sul, Lesoto, Zambia e Zimbabwe. Eles constataram, “apesar das diferenças entre países e setores”, abusos nas empresas chinesas de mineração, construção, pesca e manufatura. As violações de direitos são muitas. Elas envolvem as formas de contratação, os salários (deduções, horas extras, método de pagamento) e até mesmo troca de emprego por sexo ou propina.[v]

Século XXI – revolução tecnológica e abismo social

Estamos no tempo dos satélites, internet, engenharia genética, robôs e inteligência artificial e assim por diante. Karl Marx explicou que a grande produção e as inovações tecnológicas possibilitam ao capital a extração do mais-valor relativo. A brutalidade do prolongamento da jornada de trabalho (mais-valor absoluto) tornou-se historicamente ultrapassada.

O aumento da produtividade do trabalho permite que as condições de reprodução da força de trabalho sejam preservadas, ou até (teoricamente) melhoradas, mesmo que o excedente de valor embolsado pelo capitalista aumente. Nesse sentido, a jornada de trabalho não precisa ser ampliada, mesmo que a parte do trabalho não pago (mais-valia) aumente. Nessas condições, os bens de subsistência dos trabalhadores, com o avanço da produtividade, ficam mais baratos, ou seja, a força de trabalho é desvalorizada. Assim, diminui a parte da jornada de trabalho (valor) necessária à reprodução dos trabalhadores.

Contudo, ao mesmo tempo, Marx advertiu: “…todos os métodos para aumentar a força produtiva social do trabalho…são, ao mesmo tempo, métodos para aumentar a produção de mais-valor…”.[vi] No contexto da economia avançada tecnologicamente, os grandes capitais, situados na fronteira tecnológica, como a BYD, dependem principalmente do mais-valor relativo para sua lucratividade. Mas também apelam à brutal espoliação. O mais-valor relativo não aposentou o mais-valor absoluto. (Veja o debate da escala 6×1 nesse instante no Brasil)

Ainda, a BYD seria um exemplo de um tipo de capital que absorve também uma parcela de valor extraordinário, maximizando seu lucro dentro do setor automobilístico. Nesse caso, trata-se da mais-valia extra, de prazo temporário. A BYD possui um tecnologia superior, mais competitiva, a eletrificação, em relação a seus concorrentes do motor a combustão. Enquanto persistir esse gap tecnológico, haverá transferência de valor de setores “obsoletos” para os modernos.

Ademais, a expansão do capital, em empreendimentos de grande escala, implica na incorporação da força de trabalho em proporção cada vez menor, como Marx já explicou. A própria acumulação de capital, com maior escala de produção e avanço tecnológico, cria uma parcela supérflua de trabalhadores.

Assombrosos saltos tecnológicos combinam-se com massas de trabalhadores excedentes. Uma coisa está ligada à outra. Esses contingentes de mão-de-obra supérflua explicam o desembaraço, a desenvoltura, a ofensiva do capital nas últimas décadas para espoliar os trabalhadores. Daí, novos coolies, trabalho análogo ao escravo. Daí, reformas trabalhistas e previdenciárias.

Parênteses – a outra moderna voracidade do capital

Vamos abrir aqui um parêntese para apenas anunciar um outro veio moderno da degradação social. Trata-se dos processos comandados por trilionários fundos de investimentos. São processos decorrentes do atual estado de sobreacumulação de capitais no capitalismo contemporâneo.

Assim, os capitais sobrantes imensos, em busca de valorização por quaisquer meios e em todo o mundo, usurpam, privatizam e comodificam a infraestrutura econômica e social (aposentadoria, educação, saúde, água e saneamentos, transportes, energia, habitação etc.). O capital, em ataque ao Estado e ao trabalho, toma de assalto todos os meios necessários à reprodução social da força de trabalho e os transforma em ativos financeiros, fonte de renda para si.

Automação, digitalização…

A atual corrida tecnológica entre Estados Unidos e China concentra as atenções. Segundo a Bloomberg, das 13 principais tecnologias do plano Made in China 2025, a China já é líder global em cinco e competitiva em sete.[vii]

Ya-Wen Lei publicou em 2023 um livro (The Gilded Cage), fruto de extensas pesquisas sobre os problemas das inovações na China.[viii] A manufatura é dito como o setor velho que se automatiza com robôs. Os setores da internet são o novo que digitaliza atividades diversas. A autora, alarmada, destaca o orgulho de todos os chineses com as transformações tecnológicas do país. Os governos locais reprimem as firmas de trabalho intensivo e “buscam substituir trabalhadores por robôs”.

A metáfora da gaiola dourada representaria o êxito do capitalismo tecno-estatal ao lado da opressão do poder instrumental da tecnologia e da lei. Constituiu-se, segundo Ya-Wen, uma “amálgama de ideologia modernista, tecno-nacionalismo, fetichismo tecnológico e meritocracia”. Como se vê, Ya-Wen expressa um ponto de vista fortemente crítico. Mas, surpreendentemente, ao omitir a centralidade da contradição entre o capital e o trabalho, ela não consegue escapar do fetiche tecnológico. Isso fica claro com o seu conceito de regime tecno-desenvolvimentista.

Para a autora, a ciência e tecnologia assume o papel central no processo de desenvolvimento socioeconômico. Esse regime seria constituído pelo Estado, instituições, ideias, cultura e práticas em torno de temas tecnológicos. Nesse novo curso da China, parcelas crescentes de trabalhadores em setores manufatureiros “velhos” tornam-se rapidamente desqualificadas.

Os carros elétricos da BYD se associam a condições degradantes de trabalho no Brasil. A robotização acelerada alija trabalhadores na China. Na concorrência entre os capitais e na disputa entre os Estados Unidos e a China, a tecnologia é compulsória, mesmo que às custas das condições de vida da classe trabalhadora.

Diante do lamento de John Stuart Mill, refletindo que as máquinas não representaram vantagens para os trabalhadores, Marx observou: “Mas essa não é em absoluto a finalidade da maquinaria utilizada de modo capitalista…Ela é meio para a produção de mais-valia”.[ix] Ainda é assim. Marx estava certo!

*Renildo Souza é professor de economia e de relações internacionais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de A China de Mao e Xi Jinping (Editora da UFBA). [https://amzn.to/3BcOCN2]

Notas

[i] “As condições na China são tais que toda a classe coolie chinesa, isto é, a classe de trabalhadores chineses, qualificados e não qualificados, legitimamente se enquadra na categoria de imigrantes indesejáveis para este país, por causa de seus números, dos baixos salários pelos quais trabalham e de seu baixo padrão de vida.” (Theodore Roosevelt, 1905, Discurso do Estado da União. https://www.npr.org/sections/codeswitch/2013/11/25/247166284/a-history-of-indentured-labor-gives-coolie-its-sting)





[vi] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 700.


[viii] YA-WEN Lei. The Gilded Cage: technology, development, and state capitalism in China. New Jersey: Princeton University Press.

[ix] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 445.


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