sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Metade do mundo defende a desdolarização

Alberto Cruz [*]
resistir.info/
.

A desdolarização já não é uma teoria marginal. É uma mudança real nas finanças globais, impulsionada por uma série de factores que vão desde as tensões geopolíticas a mudanças súbitas na política monetária. Durante décadas, o dólar americano foi a principal moeda de reserva do mundo. Atualmente, um número crescente de países está à procura de alternativas. As sanções – ilegais ao abrigo do direito internacional, uma vez que não são impostas pela ONU –, a utilização do dólar como arma e as preocupações com as alterações na política da Reserva Federal dos EUA levaram os bancos centrais de todo o mundo e os governos a diversificarem os seus investimentos.

Isto não é uma frase, é uma realidade. O ano de 2025 começa com uma estatística devastadora para os EUA e, em contrapartida, para o Ocidente:  o FMI reconhece, no seu último relatório, que o dólar está no seu nível mais baixo desde 1995 como moeda de reserva global, situando-se em 57,4% do total mundial. É menos um ponto do que em 2024. São milhares de milhões de dólares a menos em circulação.

É um indicador claro do estado do mundo, um mundo onde pouco mais da metade dos países que fazem parte do sistema multinacional agrupado na ONU enveredaram, de uma forma ou de outra, pelo caminho da desdolarização (e da rejeição das moedas ocidentais, consideradas “tóxicas” por mais do que alguns países). Assim, 53 países opõem-se agora abertamente ao dólar, 46 países utilizam-no como moeda nacional nas transações comerciais internacionais e 94 países continuam a apoiar o dólar.

As sanções dos EUA ilustram a forma como o dólar pode ser utilizado como instrumento geopolítico. O congelamento de reservas estrangeiras ou a recusa de acesso a transacções em dólares colocou países como o Irã, a Rússia e a Venezuela, em particular, numa situação difícil. Depois de metade das reservas cambiais da Rússia terem sido parcialmente congeladas na sequência da decisão de intervir na Ucrânia, muitos países aperceberam-se de que o dólar não é um ativo de reserva neutro. Esta ação mostrou que uma forte dependência do dólar pode ser muito arriscada.

Para reduzir a vulnerabilidade, os países começaram a diversificar as suas reservas. O ouro, imune a sanções e não controlado por nenhum governo em particular, tornou-se a opção preferida. As grandes compras de ouro pela Rússia demonstraram como um país se pode isolar das ameaças do dólar. Outras nações tomaram nota. O receio de que as reservas pudessem ser bloqueadas à vontade levou-os a deter mais activos fora do dólar.

Multipolaridade emergente e progresso dos BRICS

Cartão BRICS Pay.

A ascensão dos mal chamados “mercados emergentes” está a tornar o poder global mais multipolar. Escusado será dizer que os BRICS são os que mais o representam, consolidando-se como o fator geopolítico que está a remodelar um mundo sem a hegemonia ocidental e procurando formas de dispensar o dólar no comércio e nas finanças.

Na cimeira de Kazan, em outubro do ano passado, os BRICS deram um passo muito importante:   aceitaram 13 países como “parceiros” e promoveram o comércio nas suas próprias moedas, além de avançarem com um projeto, o mBridge, que implica o abandono definitivo da plataforma SWIFT, hegemonizada pelo Ocidente. É o que temos até agora, mas se houvesse uma moeda dos BRICS, e ainda faltam alguns anos, apoiada no ouro e noutros activos reais, como as matérias-primas, seria o fim definitivo da atual estrutura financeira dominada pela política monetária dos EUA e pelos sistemas bancários ocidentais.

Os preços das matérias-primas (petróleo, metais e produtos agrícolas) há muito que são fixados em dólares. Este sistema de “petrodólares” consolidou o estatuto mundial do dólar. Agora, países como a China estão a defender preços alternativos e a liquidação nas suas próprias moedas. Já em 2018, a China insistiu na criação da sua própria bolsa de petróleo em Xangai, bem como de ouro e prata em 2020.

Atualmente, os países BRICS já transacionam 65% nas suas próprias moedas e estima-se que, no ano que agora começa, este comércio atinja 80%. Para dar um exemplo, o comércio entre a Rússia e a China já é de 90% nas suas respectivas moedas, o rublo e o yuan, e este ano que acaba de terminar cresceu 1,9% em relação a 2023, atingindo o equivalente a um total de 244,81 mil milhões de dólares, quase metade do total do comércio entre a China e a União Europeia (27 países), para melhor compreender o que isto significa. E o dólar quase não foi utilizado, apenas uns escassos 10% do total.

Eis a maior surpresa até agora em 2025:   a surpreendente entrada da Indonésia nos BRICS como membro de pleno direito. Com este país, são agora 11 os membros dos BRICS e outros 8 (Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Cazaquistão, Malásia, Tailândia, Uganda e Uzbequistão) acabam de formalizar a sua presença no grupo como “países parceiros”. Trata-se, na prática, de metade do mundo em termos de população.

A adesão da Indonésia é relevante porque é o quarto maior país em termos de população (284 milhões), a oitava maior economia do mundo em termos de paridade do poder de compra e o maior país muçulmano. A sua adesão plena aos BRICS tem várias consequências para a economia mundial, nomeadamente porque alarga ainda mais os BRICS a uma das zonas mais dinâmicas, o Sudeste Asiático, que, surpreendentemente, era a única grande zona do Sul Global sem representação. Isto significa que os BRICS ficarão fortemente ancorados na Associação dos Países do Sudeste Asiático (que tem 10 membros), uma vez que mais dois países, a Tailândia e a Malásia, são incluídos nos “países parceiros”. Assim, 3 dos 10 países fazem parte dos BRICS. Escusado será dizer que isto será um íman para os restantes.

Os BRICS já reúnem as maiores economias dos chamados “mercados emergentes”, mal designados porque há muito que emergiram e têm uma taxa de crescimento muito superior à do Ocidente. E têm uma representação quase perfeita do Sul Global.

Há um aspeto da Indonésia que deve ser tido em conta:   olha muito, e por vezes copia, a estratégia política interna da China. Por exemplo, a China resolveu a sua crise imobiliária sem afetar a economia no seu todo, rebentando intencionalmente a bolha imobiliária para tornar a habitação acessível às pessoas comuns e não aos activos especulativos. Isto aconteceu depois de Xi Jinping ter dito o óbvio (os comunistas também dizem coisas fora da caixa), que as casas são para as pessoas viverem e não ativos especulativos. O novo governo indonésio (iniciado em outubro) quer fazer algo semelhante. Para já, copiou um antigo programa chinês para alimentar 90 milhões de crianças e mulheres grávidas e combater a subnutrição. Não está diretamente relacionado com os BRICS, mas são duas coisas – a primeira é apenas um projeto, por enquanto – que terão um impacto muito positivo no quarto país mais populoso e, por sua vez, nessa parte da Ásia.

Cabe ao Brasil, que preside este ano aos BRICS, dar seguimento a este salto, já que não é a primeira vez que a sua presidência fica paralisada. A nota concisa com que anunciou a adesão da Indonésia não é um bom precedente. No entanto, o aumento do número de adesões nos últimos dois anos, mais os “países parceiros”, coloca Lula numa situação difícil, uma vez que tem poucas opções para paralisar ou abrandar o movimento. E, além disso, não há eleições no horizonte (são em 2026), pelo que tem espaço para impulsionar o fortalecimento dos BRICS sem receios internos ou externos. Tudo depende da vontade política.

Os progressos da China na desdolarização

O caso do comércio russo-chinês não deve ser visto apenas como o apoio mútuo de dois países que têm uma relação estratégica como nunca antes na história, mas como parte do progresso da desdolarização da China. Desde março de 2023, o comércio transnacional da China com o resto do mundo tem sido maioritariamente em yuan (48,4%) e em dólares (46,7%), sendo o restante em outras moedas. No entanto, desde então, esta tendência tem vindo a aumentar, atingindo atualmente 52,9% do total do comércio chinês em yuan (42,8% em dólares). Esta situação é agora irreversível, e é por isso que Biden não só manteve a política de tarifas promovida por Trump na sua primeira presidência, como anunciou agora um aumento dessas tarifas para 60%. Mas não se podem colocar portões no campo e a desdolarização está a ir de vento em popa. Para usar uma frase de Confúcio, “não importa a lentidão com que se avança, desde que não se pare”.

A par disto, a China continua a fazer um grande esforço:   não é bem conhecido no Ocidente, mas os sistemas de pagamento alternativos são uma pedra angular da desdolarização. Para além dos BRICS e do seu comércio na sua própria moeda, a China está a promover plataformas como o Cross Border Interbank Payment System, que reduzem a dependência do SWIFT, centrado no dólar. Atualmente, 119 bancos já estão diretamente e 1.304 indiretamente afiliados a este sistema, o que ajuda a compreender melhor a referência anterior ao facto de a China negociar maioritariamente na sua própria moeda e não em dólares, uma vez que desaparece a necessidade de passar pelo sistema SWIFT ocidental.

O projeto mBridge

Não é o único instrumento. Uma semana após a cimeira dos BRICS em Kazan, o Ocidente apercebeu-se do que tinha acontecido, que não é senão o reforço da utilização alargada das moedas nacionais no comércio intra-BRICS, com o objetivo de contornar o dólar americano e as moedas ocidentais “tóxicas”. Consciente de que só lhe resta um poder, o poder econômico (já não tem poder político, social, cultural ou militar), tomou a iniciativa de boicotar um dos instrumentos discutidos na cimeira dos BRICS: o projeto mBridge.

BRICS Pay.

Desenvolvido há alguns anos pelos bancos centrais da China, da Tailândia, de Hong Kong e dos Emirados Árabes Unidos, e ao qual se juntou recentemente a Arábia Saudita, acaba de sair do período experimental e está pronto para ser implementado em grande escala. A Rússia e o Brasil também anunciaram a sua disponibilidade para aderir.

O simples anúncio de que está pronto a atuar, uma semana após a cimeira dos BRICS, foi suficiente para que o Ocidente, que também participa nela através do Banco de Pagamentos Internacionais, anunciasse a sua retirada do projeto.

É importante notar que as transações nesta plataforma evitam a supervisão da SWIFT e dos EUA, o que a torna uma opção atraente para os países que procuram contornar a influência ocidental. Até agora, o Ocidente tolerou-o, esperando para ver se era eficaz ou não. Uma vez que provou ser eficaz, o Ocidente está agora a reagir como sabe:   sabotando-o. Mas é demasiado tarde, porque nada pode ser feito. É demasiado tarde porque nada pode impedir o projeto mBridge de avançar.

Este projeto utiliza a tecnologia blockchain semelhante à criptomoeda Ethereum e aceita moedas digitais dos bancos centrais, tornando o comércio transfronteiriço mais eficiente e menos oneroso. Por exemplo, ao transacionar simplesmente nas suas próprias moedas, os países BRICS poupam, pelo menos, 5 mil milhões de dólares por ano em taxas de utilização de moedas ocidentais. Porque, além disso, as transações no Projeto mBridge são instantâneas (como o SWIFT), mas, ao contrário deste instrumento dominado pelo Ocidente, não envolvem terceiros.

Além disso, existe outra estrutura já em vigor nos BRICS, que é basicamente utilizada para o comércio intra-BRICS nas suas próprias moedas:   o BRICS Pay. Esta estrutura facilita os pagamentos transfronteiriços sem descontinuidades e reduz a dependência dos sistemas de pagamento globais tradicionais, como o SWIFT, e reflete a agenda mais vasta do bloco para reforçar a cooperação econômica, aumentar a independência financeira e promover a utilização de moedas locais no comércio e nas transações. Foi assim que chegou a 65% do comércio nas suas próprias moedas.

Para qualquer pessoa com olhos na cara e mente aberta, é mais do que óbvio que os BRICS já são centrais para o futuro geopolítico do mundo. E o facto de um pequeno país como Cuba ter sido admitido como “país parceiro” dá à ilha bloqueada das Caraíbas uma oportunidade de sair da crise. O ano de 2024 foi difícil para Cuba, mas este ano de 2025 entra num clube onde o comércio na sua própria moeda, fora do dólar, dará algum oxigênio à ilha, além de abrir caminho a novos investimentos russos e chineses, especialmente com um impacto significativo nos esforços energéticos.

14/Janeiro/2025

Ver também:

[*] Jornalista, cientista político e escritor, albercruz@eresmas.com. O seu novo livro, Las brujas de la noche. O 46º Regimento “Taman” de Mulheres Aviadoras Soviéticas na Segunda Guerra Mundial publicado por La Caída com a colaboração do CEPRID, está na sua terceira edição. As encomendas podem ser enviadas para libros.lacaida@gmail.com ou para ceprid@nodo50.org.

Este artigo encontra-se em resistir.info



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12