quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Sobre o gás russo


ANDREW KORYBKO*

As consequências políticas da decisão da Ucrânia de cortar o gás russo para a Europa

A Rússia e a União Europeia administrarão a última fase do divórcio instigado pelos EUA sem muita dificuldade, mas os EUA podem se oferecer para uni-las novamente autorizando seus vassalos a importar gás russo de gasoduto em troca de algumas concessões do Kremlin no setor de energia e na Ucrânia.

Os especialistas estão discutindo a decisão da Ucrânia de cortar o fornecimento do gás russo para a Europa depois que Kiev se recusou a estender seu acordo de cinco anos com Moscou, que expirou no primeiro do ano, sendo que a grande maioria deles coloca a culpa no outro lado e exagera as consequências negativas para os interesses de seu oponente. A realidade é que esse desenvolvimento é muito mais político do que qualquer outra coisa, considerando que a União Europeia e a Rússia já enfrentaram interrupções muito mais sérias ao longo de 2022.

O gasoduto Yamal através da Polônia foi fechado alguns meses após o início da “operação especial por motivos relacionados a sanções, enquanto o Nord Stream 1 foi gradualmente retirado de operação devido às necessidades de manutenção agravadas pelo atraso do Canadá em devolver turbinas a gás reparadas para a Rússia. Esse gasoduto e o inativo Nord Stream 2 foram então explodidos em um ataque terrorista em setembro daquele ano, embora um ainda permaneça intacto, mas ainda não tenha retornado à operação por motivos políticos.

O efeito combinado resultou na queda da participação do gás de gasoduto da Rússia nas importações da União Europeia “de mais de 40% em 2021 para cerca de 8% em 2023”, de acordo com o Conselho Europeu. No entanto a União Europeia “evitou por pouco” uma recessão naquele ano, nas palavras da CNN, embora possa entrar em outra ainda este ano se as dificuldades econômicas da Alemanha se aprofundarem. Mesmo assim, não será diretamente afetada pela última decisão da Ucrânia, já que esta rota diz respeito apenas à 5% das importações da UE, com os principais clientes sendo Eslováquia, Hungria e Moldávia.

Os dois primeiros são liderados por conservadores-nacionalistas que se opõem ferozmente à guerra por procuração da OTAN contra a Rússia por meio da Ucrânia, enquanto o terceiro é governado por uma figura pró-ocidental que quer reconquistar a região separatista de seu país, a Transnístria, na qual milhares de soldados russos de paz ainda estão baseados. Essa observação dá credibilidade à alegação anterior de que a decisão da Ucrânia é muito mais política do que qualquer outra coisa, já que pune a Eslováquia, a Hungria e a Transnístria sem prejudicar outros países.

O último mencionado está sendo atingido de forma particularmente dura, pois teve que interromper o aquecimento e a água quente para as residências, o que poderia levar a uma agitação política manipulada do exterior para provocar uma Revolução Colorida. Isso poderia resultar em uma mudança de regime ou enfraquecer por dentro seu regime o suficiente para que se tornasse muito mais fácil sua invasão pela Moldávia (com possível assistência romena) e/ou pela Ucrânia. O Serviço de Inteligência Estrangeira da Rússia alertou sobre esse cenário no mês passado.

A Eslováquia e a Hungria não serão prejudicadas em nenhum lugar tanto quanto a Transnístria, já que cada uma pode importar GNL mais caro – seja da Rússia, dos EUA (que roubaram muito da antiga fatia de mercado da UE de seu rival), da Argélia e/ou do Catar – da Lituânia/Polônia ou Croácia. A Polônia pode conectar a Eslováquia ao terminal de GNL de Klaipeda, na Lituânia, enquanto o terminal de GNL de Krk, na Croácia, pode abastecer a Eslováquia e a Hungria. A Hungria também já está recebendo algum gás de gasoduto da TurkStream, que é o último gasoduto da Rússia para a Europa.

Todos os três estão, portanto, sendo punidos por razões políticas, mas é apenas a Transnístria que corre o risco de uma crise total como resultado, resultado que causa dano político à Rússia se seu governo for derrubado por uma Revolução Colorida iminente ou se essa política for capturada por seus vizinhos. No caso de outro conflito convencional irromper, os agressores podem evitar alvejar as tropas russas para evitar provocar uma escalada, mas a Rússia sempre pode autorizá-los a intervir.

Os observadores só podem especular o que a Rússia faria, já que há argumentos a favor de retirar suas forças de paz se elas não forem atacadas e a Transnístria cair, mas também há uma lógica em sacrificá-las como parte de um plano para “escalar para desescalar” a operação especial em melhores termos. Há também a possibilidade de que a Transnístria não entre em uma Revolução Colorida e também não seja invadida. Uma crise potencialmente maior seria evitada: este é o melhor cenário para os interesses objetivos de todos.

Independentemente do que possa ou não acontecer na Transnístria, a decisão da Ucrânia de cortar o gás russo para a Europa leva à possibilidade de que essa rota possa ser reaberta quando o conflito terminar, representando assim uma carta que poderia ser jogada para atrair concessões do Kremlin durante as negociações. O mesmo vale para o gasoduto Yamal e a última parte não danificada do Nord Stream. A Europa poderia usar gás russo de baixo custo para evitar com mais confiança uma recessão, enquanto a Rússia apreciaria a receita.

Com certeza a Rússia ainda lucra com as exportações de GNL para a União Europeia, que preencheram a lacuna de fornecimento causada pela União Europeia sancionando seu gás de gasoduto e os concorrentes de GNL da Rússia sendo incapazes de escalar suas exportações a ponto de substituir totalmente as exportações da Rússia que a União Europeia ainda importa por necessidade. Dito isso, a Rússia e a União Europeia se beneficiariam mutuamente muito mais se retornassem o máximo possível ao seu acordo pré-2022, embora, é claro, mantendo em mente as limitações políticas contemporâneas a isso.

A América teria que aprovar essa solução, já que reafirmou com sucesso sua hegemonia anteriormente em declínio sobre a União Europeia desde o início da operação especial. Mas a diplomacia criativa de energia do tipo elaborada no mês passado poderia ajudar a levar a um avanço. A essência é que são os EUA que têm interesse em fazer concessões para esse fim, não à Rússia, já que os EUA não querem que a Rússia alimente ainda mais a ascensão da China como superpotência, como poderia fazer como troco se não lhe for oferecido um bom acordo na Ucrânia.

Ao mesmo tempo, não é realista imaginar que os EUA cederão sua influência sobre a União Europeia, por que eles podem propor um compromisso pelo qual a Rússia não tem permissão para (re)obter o controle sobre as porções europeias do Nord Stream, Yamal e os oleodutos transucranianos Brotherhood e Soyuz. O primeiro poderia ser comprado por um investidor americano, enquanto a Polônia pode manter seu controle pós-2022 sobre o segundo e o terceiro permaneceria sob controle ucraniano.

Se os EUA realmente querem incentivar a Rússia a concordar com essa proposta, que avança os interesses dos EUA ao aumentar as chances de que a Rússia não construa mais oleodutos para a China devido à necessidade de substituir sua receita perdida da União Europeia, então eles podem compensar parcialmente a Rússia liberando alguns de seus ativos apreendidos. Mesmo que esses ativos sejam legalmente da Rússia e tenham sido roubados dela, o Kremlin pode concordar com essa troca se uma quantia grande o suficiente for oferecida para ajudar a administrar seus últimos desafios fiscais e monetários.

Em câmbio por os EUA devolverem alguns dos ativos apreendidos da Rússia e autorizarem a retomada pela União Europeia de algumas importações de gasodutos russos, a Rússia pode ter que se comprometer informalmente a não construir novos gasodutos para a China, ao mesmo tempo em que reduz algumas de suas demandas de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. O investimento americano, indiano e japonês no megaprojeto sancionado Arctic LNG 2 da Rússia também pode substituir o investimento chinês congelado, se isenções forem concedidas para esse propósito como um incentivo adicional.

Desde que os principais objetivos de segurança da Rússia sejam alcançados, que são restaurar a neutralidade constitucional da Ucrânia e manter forças ocidentais uniformizadas fora do país, então ela pode estar disposta a se comprometer em desmilitarizar toda a Ucrânia, se contentando em desmilitarizar tudo a leste do Dnieper.

Se Donald Trump oferecer terminar o acordo bilateral de segurança dos EUA com a Ucrânia como parte de um pacote que inclua os termos acima mencionados, então a Rússia pode muito bem concordar, já que esse acordo forneceria um meio mútuo de “salvador” para acabar com sua guerra por procuração enquanto cria uma base para reconstruir as relações. Não é um compromisso perfeito, e alguns dos apoiadores de cada lado podem argumentar o que é mais benéfico para seu oponente, mas seus líderes podem pensar de modo diferente e isso é tudo o que importa no final das contas.

*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d]

Tradução: Artur Scavone.



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12