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John Piper, Olho e Câmera: Claret e Azul, 1973
ERNESTO RODRIGUES*
Apresentação do livro recém-lançado
O livro
– E aí, morreu?
Meus catorze anos de jornalismo na rede Globo acabaram quando, como chefe da redação, anestesiado pelo risco de levar um furo da concorrência, plantei- me, ofegante, junto à bancada de apresentação do Jornal da Globo, na então novíssima redação da emissora, no Brooklin, zona sul de São Paulo, no final da manhã do dia 18 de maio de 1999, e pedi que alguém confirmasse a notícia.
No instante anterior, eu tinha até tomado um tombo, inaugurando o novo piso do trajeto até o switcher, a sala de controle das transmissões de jornalismo, ao correr para deixar a equipe de operações em alerta para a iminência de um plantão jornalístico em rede nacional. A notícia era a morte do então ex- atleta olímpico João Carlos de Oliveira, o “João do Pulo”,e, por coincidência, naquela madrugada, o dramaturgo e autor de novelas Dias Gomes havia morrido num acidente em que um ônibus atingiu o táxi em que ele estava na Avenida Nove de Julho, região dos Jardins, zona oeste da cidade.
Diferentemente da trágica surpresa da perda de Dias Gomes, todos já sabíamos que “João do Pulo” vinha morrendo aos poucos, no Hospital da Beneficência Portuguesa, consumido pela cirrose e por uma infecção generalizada. A edição do obituário já estava pronta, como sempre acontecia quando gente famosa era internada em estado grave, e uma rádio tinha acabado de dar a notícia. Só faltava a confirmação para que Sandra Annenberg, então apresentadora e editora-executiva do Jornal Hoje, lesse o texto diante da câmera instalada à frente de sua mesa, no centro da redação.
– Morreu!
A voz era de um homem. Tenso, não me dei ao trabalho de identificar quem tinha respondido, entre os cerca de cinquenta profissionais, repórteres, editores, produtores e técnicos que ocupavam a redação naquele momento. Dei um giro de 180 graus e corri de novo para o switcher, com a mesma impulsividade que me levara ao chão momentos antes. O que me movia, como já tinha acontecido em tantos plantões do passado para o Jornal Nacional e outros programas, era a mais genuína razão de ser do jornalista: a oportunidade ou obrigação de dar uma informação importante em primeira mão. Além, no caso, do temor de ser cobrado por um eventual furo da então incômoda concorrente, a Record.
– Morreu! Morreu! Morreu! Pode dar!
Ao orgulho efêmero de ser a voz de comando para interromper a programação com a imagem grave de Sandra Annenberg na redação seguiu-se o alívio de ver, nos monitores do switcher, que as emissoras concorrentes continuavam com seus desenhos animados e programas baratos de estúdio. Estávamos na frente.
Não lembro se tive tempo de saborear a possibilidade de Evandro Carlos de Andrade, então diretor da Central Globo de Jornalismo, e seu braço direito, Carlos Schroder, diretor de produção, estarem de olho nos monitores das salas que ocupavam na sede da emissora, no Rio de Janeiro, para testemunhar aquela demonstração de profissionalismo e agilidade. Estavam.
“Um dia triste para o Brasil. Depois da perda do dramaturgo Dias Gomes esta madrugada, morreu agora há pouco, em São Paulo, João Carlos de Oliveira, o ‘João do Pulo’. O ex-atleta, recordista do salto triplo, estava internado no Hospital da Beneficência Portuguesa, com cirrose hepática. Outras informações daqui a pouco, no Jornal Hoje.”
Sandra Annenberg voltaria ao assunto bem antes do jornal Hoje. Quando eu ainda deixava o switcher para, enfim, aliviado, caminhar civilizadamente de volta para minha mesa na redação, fui interceptado por Patrícia Marques, produtora-chefe do telejornalismo local. Seus olhos verdes brilhavam, mistura de fúria com perplexidade. A intensidade de seus gestos, multiplicada pela responsabilidade que ela tinha de saber, na ponta da língua, a qualquer momento do dia, tudo que a Globo deveria saber que estivesse acontecendo de importante na cidade de São Paulo, mostrava que algo estava errado.
– Você está louco! O que você fez? O “João do Pulo” não morreu! Nós te-mos uma equipe com link na porta do hospital! Ele não morreu!
Catatônico, nem respondi. Sabia que tinha cometido o erro mais grave que um jornalista pode cometer. Era com ela, Patrícia, chefe de produção, que eu tinha de confirmar a notícia, antes de autorizar aquele plantão. E não me basear apenas no sujeito oculto da redação que respondera com um “Morreu!” à minha pergunta aflita. Envergonhado, fui direto para a mesa de Sandra Annenberg e dei a nova notícia:
– Sandra, vamos ter que dar outro plantão desmentindo. O “João do Pulo” não morreu.
Instantes depois, entramos no ar com a correção:
“Não está confirmada a morte de João Carlos de Oliveira, o ‘João do Pulo’. Ele continua internado em estado grave, no Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Outras informações, daqui a pouco no Jornal Hoje”.
Pelo telefone, fui imediatamente informado por Amauri Soares, então diretor regional de jornalismo em São Paulo, que Evandro Carlos de Andrade tinha me demitido. Na mesma hora me despedi dos mais chegados e fui embora para o Rio de Janeiro, onde minha mulher e meus filhos continuavam morando.
Dois anos depois, eu ficaria sabendo que o autor do grito “Morreu!” tinha sido um jornalista da emissora que, ao fazer o texto do plantão a quatro mãos com Sandra Annenberg, não havia dado atenção à informação, passada à redação por um editor da equipe de esportes da emissora, de que o hospital não confirmava a morte de “João do Pulo”,que só morreria onze dias depois.
Jamais questionei a legitimidade da minha demissão. E fiz questão de contar a história, sempre na primeira aula, ao me apresentar para todas as turmas de jornalismo que tive na PUC-Rio por mais de uma década, pela força da lição que o episódio continha. Jornalismo, eu sempre dizia para os alunos, é coisa séria.
Até aquela manhã, eu tinha trabalhado na Globo como editor do Jornal Nacional e do Jornal da Globo, diretor de programas do Globo Repórter, chefe do escritório da emissora em Londres e diretor-executivo do Fantástico. Antes, a partir de setembro de 1980, tinha sido repórter do jornal O Globo, da sucursal do Jornal do Brasil em Brasília, da revista IstoÉ em São Paulo e da sucursal da Veja no Rio.
Quase dezoito anos depois daquele plantão, em setembro de 2017, eu estava à frente de uma equipe de filmagem, como produtor independente, percorrendo os cômodos da residência do então presidente da Globo, Roberto Irineu Marinho, no bairro carioca da Gávea. A convite de sua mulher, Karin, produzia um vídeo surpresa que ela e Roberto Marinho Neto, o filho mais velho, haviam me encomendado e que seria exibido na festa íntima que a família faria no dia 13 de outubro daquele ano em Veneza, para celebrar os 70 anos do primogênito de Roberto Marinho.
Entre a demissão da redação em São Paulo e aquele ensaio cinematográfico na mansão de Roberto Irineu haviam se passado quase duas décadas, durante as quais eu tinha produzido, também como terceirizado, dezenas de conteúdos audiovisuais para praticamente todas as áreas da rede Globo. Ao longo dos anos, tinha conciliado aquela atividade audiovisual e a produção de documentários com a autoria de biografias de Ayrton Senna (2004), João Havelange (2006) e Zilda Arns (2018); um mandato de dois anos como ombudsman da TV Cultura de São Paulo (2008-2010); a direção da empresa de comunicação corporativa CDN no Rio, em 2001; e onze anos de aulas como professor de técnicas de redação e telejornalismo da PUC-Rio.
A ideia deste livro nasceu durante um dos trabalhos que fiz para a rede Globo como produtor independente, quando tive acesso a alguns pedaços de um tesouro: o conteúdo integral de centenas de depoimentos de atores, jornalistas, executivos, diretores, roteiristas, produtores, administradores, publicitários, profissionais de marketing, programadores, engenheiros e artistas entrevistados pela equipe do Memória Globo, o departamento responsável pelo resgate e pela organização da história das empresas e dos profissionais do Grupo Globo.
Em outubro de 2018, entrei em contato com Roberto Irineu e falei do meu projeto de mergulhar, de forma irrestrita e independente, nas transcrições dos depoimentos do Memória Globo,e de usar o conteúdo dos depoimentos em uma “biografia” da rede Globo que eu queria que fosse publicada por uma editora do mercado brasileiro sem qualquer ligação editorial ou financeira com o Grupo Globo.
Como garantia de que faria um uso responsável, equilibrado e profissional do acervo original do Memória Globo, ofereci minha história no jornal O Globo e na emissora. E antecipei, no e-mail que enviei a Roberto Irineu, que a obra procuraria ficar “tão distante de um conteúdo meramente institucional quanto de um panfleto mal-informado, sensacionalista ou ressentido”.
Roberto Irineu se mostrou simpático à ideia, mas me pediu alguns dias para consultar João Roberto e José Roberto, cumprindo uma espécie de protocolo que os irmãos seguiam em decisões daquele tipo. Na mesma semana, respondeu informando que os dois concordavam e que, a partir daquele momento, eu poderia procurar Silvia Fiuza, diretora do Memória Globo,para ter acesso ao acervo de entrevistas dos homens e mulheres que fizeram os sessenta anos de história da emissora.
Um contrato assinado semanas depois estipulou que minha única responsabilidade com o Grupo Globo seria a de usar os conteúdos das entrevistas única e exclusivamente no livro. Não há cláusulas prevendo qualquer tipo de contrapartida de minha parte, nem supervisão editorial ou poder de veto de quem quer que seja sobre o conteúdo do livro. Em nenhum momento, portanto, os originais foram submetidos a qualquer pessoa ou instância do Grupo Globo, incluindo os três irmãos Marinho, aos quais agradeço pela confiança e nos quais reconheço o espírito jornalístico.
A partir de março de 2019, passei a receber as transcrições de centenas de entrevistas que renderiam os milhares de verbetes de informação que produzi sobre episódios e acontecimentos que considerei relevantes da história da Globo nas áreas de jornalismo, dramaturgia, entretenimento, esportes, comercial e institucional, assim como as relações da emissora, de seus profissionais e de seus proprietários com a sociedade brasileira.
Durantequase cinco anos, sempre como jornalista que sempre fui, nunca com pretensões de acadêmico e, menos ainda, de historiador, procurei, sempre que julguei necessário, cotejar os depoimentos do Memória Globo com o conteúdo de mais de sessenta entrevistas inéditas que fiz com protagonistas importantes que atuaram dentro e fora da emissora ao longo dos anos; e com a bibliografia que organizei a partir de outras centenas de fontes independentes e que incluíram os principais jornais e revistas do país, existentes ou extintos; colunistas e pesquisadores especializados em televisão; sites e livros sobre a Globo; biografias de personagens importantes da história da emissora; e programas de TV e documentários, além de teses e ensaios acadêmicos que considerei relevantes.
Uma das premissas principais do projeto foi a de que os brasileiros não precisávamos de um livro para contar uma história que nós mesmos vivemos. Sabemos o que ardeu, refrescou, doeu, aliviou, envergonhou, brilhou, chocou e inspirou em todos esses quase sessenta anos em que nosso olhar foi atraído, primeiro pelo tubo de imagem, depois pela tela da Globo.
Querendo ou não, a partir dos baby boomers nascidos entre 1946 e 1964,fomos todos envolvidos pela Globo, em todos os sentidos que forem dados para o verbo envolver. E o que este livro oferece é uma oportunidade inédita de sabermos mais e compreendermos melhor, pelo olhar múltiplo e inédito dos brasileiros que fizeram a emissora.
O que aconteceu por trás das câmeras para que a rede Globo se tornasse, ao mesmo tempo, uma gigantesca janela e um poderoso espelho da sociedade brasileira? Quando e como a emissora começou a liderar, perdeu, ganhou, reinou monolítica, assustou-se, teve que brigar, desistiu ou tomou decisões equivocadas? Como foi possível construir a hegemonia que dominou, absoluta, por décadas, o entretenimento de massa, o telejornalismo, o esporte e o mercado publicitário do país? Quem, de carne e osso, fez as escolhas certas ou erradas que conduziram a rede Globo pelos caminhos que ela trilhou no tapete político, no caldeirão social e no palco cultural do Brasil?
Para tentar responder a essas e outras perguntas, este livro, em vez de dialogar separadamente com cada uma das gerações de telespectadores da emissora, tenta conversar com todas ao mesmo tempo; avança e retrocede no tempo, mesclando referências, fatos, bastidores e personagens, num exercício constante de contextualização, sempre com o objetivo de tornar cada página pertinente, interessante e saborosa para qualquer leitor que tenha vivido no Brasil entre 1965 e 2024, mesmo que ele não seja um fanático por televisão e goste ou não, muito pelo contrário, da rede Globo.
A obra divide a história da emissora em três períodos e volumes cujos títulos, creio, são autoexplicativos: Hegemonia,este primeiro, cobre os acontecimentos entre 1965 e 1984 e reconstitui as origens, o crescimento e a consolidação da liderança e da presença absoluta da emissora na vida brasileira. Concorrência,o segundo,resgata os altos e baixos da Globo na travessia de 1985 a 1998, período histórico em que o Brasil passou por grandes transformações na política, na economia e no perfil social, econômico e cultural dos telespectadores. Metamorfose,o terceiro volume,cobre o período entre a virada do século e o início da década de 2020, época em que a rede Globo se viu obrigada a promover mudanças profundas em todas as suas áreas, da tecnologia ao conteúdo, para manter a liderança num cenário de transformações radicais impostas pela internet, pelas redes sociais e pelas novas plataformas de informação e entretenimento.
Na identificação das fontes dos episódios que reconstituo no livro, o uso de asterisco junto aos nomes dos protagonistas indica que as informações relatadas em seguida são originárias do acervo de depoimentos do Memória Globo. E, qualquer que seja a origem da informação, as aspas são usadas para transcrições literais de depoimentos gravados, enquanto o travessão indica que os diálogos são uma reconstituição feita a partir das entrevistas.
Longe de estabelecer veredictos, esta trilogia pretende levar o leitor a uma viagem reveladora e instigante, na qual ele compreenda um pouco mais e tire suas próprias conclusões sobre o extraordinário impacto que a Globo teve, nos últimos sessenta anos, em todos os aspectos da vida brasileira. Lima Duarte, um dos protagonistas deste livro, resumiu o sentido desta minha aventura profissional com uma de suas frases preferidas: “O passado não só não morreu como ainda não passou”.
*Ernesto Rodrigues, jornalista, é professor da PUC-Rio. Autor, entre outros livros, de Ayrton: o herói revelado (Tordesilhas).
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