Questões criminais
Os negócios da máfia italiana no Rio Grande do Norte
Allan de Abreu
Era quase noite em Palermo, capital da Sicília, quando dois jovens, um deles com uma faca, entraram em uma pequena loja de produtos de limpeza na Via Altofonte. Depois de renderem os funcionários, os assaltantes levaram 4,5 mil euros que estavam na caixa registradora. Era 29 de agosto de 2019. Cinco dias depois, no mesmo horário, novo roubo na mesma loja: dois rapazes, fingindo estarem armados, levaram mais 2,8 mil euros.
O caminho natural do dono da loja seria procurar a polícia. Mas não foi o que aconteceu. Francesco Paolo Bagnasco preferiu telefonar para Giovanni Caruso, um membro da Cosa Nostra, organização mafiosa que desde o século XIX controla boa parte das relações socioeconômicas na Sicília. Ao analisarem imagens captadas por uma câmera de vídeo, os mafiosos identificaram três assaltantes (um deles havia participado dos dois roubos).
Na tarde de 7 de setembro, quatro dias após o segundo assalto, os três ladrões foram sequestrados e levados para um galpão. Caruso notificou o seu chefe, Giuseppe Calvaruso, bem como o dono da loja, e os três foram até o cativeiro, onde assistiram ao brutal espancamento dos assaltantes. Horas depois, Caruso descreveu, para outro membro da máfia, a face de um dos assaltantes, dizendo que parecia uma “peneira”. O dinheiro roubado foi devolvido a Francesco Bagnasco.
Sete meses depois, em abril de 2020, Bagnasco e outros cinco empresários recorreram a Calvaruso para adquirir nove partes de um grande armazém. Coube à máfia afastar outros pretensos concorrentes na compra do imóvel. Em troca, a Cosa Nostra exigiu uma taxa total de 90 mil euros – 40 mil a serem pagos apenas por Bagnasco por ele ter adquirido quatro partes do armazém. Foi a vez do empresário e seus sócios sentirem na pele a ira da máfia palermitana.
Em telefonema captado pela polícia italiana, Calvaruso ordenou que Caruso exigisse o dinheiro dos empresários antes que o negócio fosse formalizado em cartório. “Não tenha piedade”, disse o chefe. Bagnasco pagou, mas apenas uma parte – 15 mil euros. Em dezembro de 2020, Calvaruso reforçou as ameaças. “Se eles não me derem o dinheiro, tudo pode acontecer”, disse a Caruso. Em fevereiro de 2021, duas semanas antes da formalização do negócio no cartório, o chefe mafioso aumentou o tom das ameaças. “Se alguém ousar fazer a escritura sem ter pagado, não deixe ir ao cartório e meta um revólver na boca dele”, ordenou. Calvaruso falava de um lugar muito distante de Palermo, do outro lado do Oceano Atlântico – mais precisamente, de Natal, no Rio Grande do Norte.
Parte do dinheiro extorquido dos empresários custeou as despesas de familiares dos membros da Cosa Nostra que estão presos. Outra parte foi enviada ao Rio Grande do Norte, onde, ao longo de dezessete anos, sob o comando de Calvaruso, a máfia siciliana investiu 800 milhões de reais no mercado imobiliário por meio de uma engenhosa máquina de transferir e lavar dinheiro. Durante esse tempo, a Cosa Nostra deixou no estado nordestino um rastro de golpes milionários, fraudes cartorárias, corrupção, grilagem de terras e dois assassinatos.
Não se sabe ao certo por que a máfia siciliana escolheu o Rio Grande do Norte para limpar seu dinheiro sujo. Mas há algumas pistas: a relativa proximidade com a Europa e o boom imobiliário na cidade nos anos 2000, impulsionado em parte por investidores da Espanha, Portugal e Itália que desejavam replicar nas praias potiguares condomínios e hotéis do Mar Mediterrâneo. Outro atrativo é o turismo sexual. Não à toa, em 2005 a Polícia Federal desvendou um esquema de tráfico de drogas e aliciamento de mulheres para a prostituição em Natal, comandado pela Sacra Corona Unita, organização mafiosa italiana baseada na região de Puglia, Sudeste da Itália.
A Cosa Nostra tem laços históricos com o Brasil. Basta lembrar que Tommaso Buscetta, um dos principais líderes da organização, esteve ao menos três vezes no país entre os anos 1960 e 1980. Preso em São Paulo, em 1983, foi extraditado para a Itália, onde fez um acordo de delação com a Justiça, quebrando pela primeira vez o voto de silêncio sobre as atividades da Cosa Nostra. Seus depoimentos embasaram o Maxiprocesso de Palermo, que resultou na condenação de 475 mafiosos.
Giuseppe Calvaruso tem cabelos castanho-claros, repartidos ao meio, e baixa estatura, o que lhe rendeu o apelido, entre os mafiosos sicilianos, de u curtu (o curto, literalmente, ou o baixote). Em 47 anos de vida, a maior parte atuando como empresário da construção civil, adquiriu o respeito da cúpula da Cosa Nostra, sobretudo depois de ter ajudado na fuga de Giovanni Motisi, no fim dos anos 1990. Motisi foi um dos mais sanguinários assassinos de aluguel de Salvatore “Totò” Riina, mafioso que aterrorizou a Sicília e foi o mandante dos assassinatos, em 1992, dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, responsáveis pelo Maxiprocesso de Palermo. Em 1993, Riina foi preso. Morreu em 2017, aos 87 anos.
Por causa do envolvimento na escapada de Motisi (que segue até hoje foragido), Calvaruso foi denunciado à Justiça por associação criminosa e detido em 2002. Acabou sendo solto quatro anos depois – condenação tão breve que ele próprio zombou dela. “Esse juiz idiota vai me dar quatro anos. Ele deveria me dar quarenta anos, não quatro. Eu vim aqui, vim mijar e vou embora”, disse, em conversa interceptada pela polícia. Em 2008, porém, foi preso novamente, dessa vez por participar de um plano para restabelecer um comitê reunindo os principais capi (chefes) da máfia.
Cada município da Sicília (ou, no caso das maiores cidades, cada bairro ou distrito) possui um líder mafioso, chamado capomandamento (mandamento é uma região controlada por determinado clã criminoso). Antonino Rotolo, o capomandamento de Pagliarelli, está preso desde 2006. Quem o substitui desde 2015 é Calvaruso, mas na condição de “regente”, como se chama o líder temporário. Ao assumir o posto, Calvaruso pôs seu conhecimento empresarial a serviço da Cosa Nostra, com uma atitude muito diferente da do violento Riina. Em conversa interceptada pela polícia italiana, o regente disse ter à disposição cerca de 1 bilhão de dólares para investir. Em nome da Cosa Nostra, negociou a compra de um empreendimento imobiliário na Ilha de Vulcano, perto da Sicília, e intensificou as obras de um resort à beira-mar em Marsala, no extremo Oeste siciliano. “Agora, os mais eficientes membros da máfia caminham com uma pasta, e não com uma arma”, compara um policial antimáfia de Palermo, que pediu anonimato à piauí, por não ter autorização para dar entrevistas.
Quando Calvaruso assumiu o comando em Pagliarelli, a lavagem de dinheiro da máfia no Brasil já estava a todo vapor. A Polícia Federal brasileira, que também investigou o esquema, calcula que a organização mafiosa desembarcou em terras potiguares em 2008, quando Antonino Spadaro, o Nino, viajou pela primeira vez a Natal. Ele é filho de Tommaso Spadaro, famoso capo do distrito de Kalsa, em Palermo. Morto há seis anos, Tommaso fez fortuna com o contrabando de cigarros. Já o filho, um homem parrudo de calvície resplandecente e nariz protuberante, decidiu investir no tráfico de drogas, crime pelo qual foi preso no aeroporto de Milão-Malpensa em dezembro de 2008, quando voltava de uma estadia em Natal.
Em fevereiro de 2009, apenas dois meses depois da prisão de Spadaro, outro italiano, Pietro Ladogana, um homem alto de queixo anguloso que, para a PF, era testa de ferro da Cosa Nostra, também desembarcou em Natal. Na capital potiguar, ele fundou três empresas do ramo imobiliário, com um capital social total de 3,8 milhões de reais, e casou-se com Tamara Maria de Barros. A brasileira seria usada como laranja pelo italiano, que colocou no nome dela boa parte dos imóveis que adquiriu. Outro laranja foi o pedreiro Carlos Antonio Lopes da Silva, que, segundo a Receita Federal, recebeu um depósito bancário de 1 milhão de reais. Ladogana transferiu para contas no Brasil, por meio de operações regulares registradas no Banco Central, um total de 5,7 milhões de dólares, segundo a PF. O montante, aplicado na compra de ações na Bolsa de Valores de São Paulo, vinha da Europa, sobretudo da Suíça e da Croácia. A quem perguntava sobre a origem de tanto dinheiro, ele dizia trabalhar com revenda de veículos na Alemanha.
Mas Ladogana também começou a grilar terras com o uso da violência. Chegou a criar uma milícia formada por policiais militares para expulsar moradores em Extremoz, município na Região Metropolitana de Natal, onde contava com a ajuda do então tabelião do cartório local e ex-prefeito João Soares de Souza, e de servidores da prefeitura para falsificar documentos que garantissem a posse dos imóveis. Quando o então secretário de Tributação de Extremoz Giovanni Gomes contrariou os interesses do esquema, Ladogana ordenou que um dos PMs de sua milícia, Alexandre Douglas Ferreira, “desse um susto nele” – como a mulher do mafioso contou à Polícia Civil. Gomes levou um tiro de raspão na perna quando saía da festa de formatura do filho, em uma noite de agosto de 2013.
No caso de outro desafeto, o desfecho foi trágico. O empresário italiano Enzo Albanese, que dirigia um time de rugby em Natal e não tinha relações com a Cosa Nostra, descobriu as fraudes fundiárias de Ladogana, bem como desvios de parte do dinheiro da máfia para o próprio bolso, e ameaçou denunciar tudo à polícia. Em março de 2014, Albanese foi ameaçado de morte, caso ousasse delatar seus esquemas. Mas ele não recuou. Em 2 de maio do mesmo ano, ele fechava o portão de entrada de sua casa quando o policial Ferreira se aproximou em uma moto e atirou. O italiano morreu no local. Um mês depois, a Justiça de Natal decretou a prisão preventiva de Ladogana, que foi detido no aeroporto de Roma, onde tentava embarcar para o Brasil com 120 mil euros escondidos na roupa. Acabou liberado meses depois, na Itália, e ficou no país natal.
(Divorciado da primeira mulher, Ladogana se casaria em julho de 2019 com outra brasileira, Regina Souza da Silva. A festa de núpcias foi em Bagheria, município vizinho à cidade de Palermo, em um palacete do século XVIII. A polícia italiana não tem dúvida de que a Cosa Nostra bancou a luxuosa cerimônia, que teve Nino Spadaro como um dos convidados. Dois meses mais tarde, ao retornar ao Brasil, Ladogana foi preso novamente. Tempos depois, recebeu uma pena de catorze anos de reclusão, que ele cumpre na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Ferreira não chegou a ser julgado – a Justiça o considerou inimputável, depois que foi diagnosticado com esquizofrenia.)
Em 2016, com Ladogana encrencado na Justiça e obrigado a permanecer na Itália, Calvaruso iniciou o processo de troca do operador da lavanderia de dinheiro da máfia no Brasil. Recorreu então ao empresário Giuseppe Bruno, cuja família lavava dinheiro para a máfia desde os anos 1990 na construção civil da Sicília, de acordo com a polícia italiana.
Antes de chegar ao Brasil, Bruno mudou-se para a Suíça, para assumir o controle de uma empresa da Cosa Nostra no país. De lá, foi para Hong Kong e Cingapura, onde, a mando de Calvaruso, abriu outra empresa e quatro contas bancárias. Por meio da simulação de contratos de empréstimos e de transferências de ações entre as empresas, o dinheiro saiu das contas das firmas da Cosa Nostra na Sicília na direção dos bancos suíços, e dali para as contas bancárias recém-criadas em Hong Kong.
Em fevereiro, depois de passar alguns dias em Cingapura, onde visitou as agências bancárias das contas recém-criadas, Bruno mudou-se de vez para o Brasil, destino final do dinheiro da Cosa Nostra. Em Natal, Bruno assumiu no mesmo ano o controle das empresas de Ladogana e intensificou os investimentos da Cosa Nostra. “Pietro, fizemos um programa que você nem imagina, estamos trabalhando e conhecendo pessoas no Brasil desde que cheguei. Montamos uma máquina de guerra”, contou ele a Ladogana, que continuava na Itália.
Em um primeiro momento, Bruno e Calvaruso investiram 830 mil euros na compra de novas áreas nos arredores de Natal, inclusive uma fazenda que seria transformada em loteamento com perspectivas de ganhos milionários. “Gostaria de salientar que estamos falando de 180 hectares, onde há a possibilidade de construir cerca de 7.500 casas, que por 100 mil reais são 750 milhões de reais de faturamento, com um lucro residual de mais de 50%…”, escreveu Bruno, por e-mail, a um integrante da máfia na Sicília. No total, segundo o Ministério Público Federal, a máfia adquiriu 76 imóveis no Brasil. Parte dos recursos foi usado para engordar o capital das empresas da máfia (uma delas, a América Latina Hemisfério Investimentos Imobiliários, tinha sede em um imóvel residencial simples de Natal, mas possuía capital de 100 milhões de reais).
Apesar de movimentar quantias milionárias, Bruno levava uma vida espartana em Natal. Morava de aluguel em um bairro da periferia, possuía um automóvel popular usado e almoçava em restaurantes baratos. Assim, mantinha a discrição necessária e cumpria uma tradição de décadas da Cosa Nostra: evitar as tentações do dinheiro fácil, em respeito aos “irmãos” que cumprem pena no cárcere.
Certo dia, em um shopping de Ponta Negra, local abastado da cidade, Bruno conheceu Sara da Silva Barros, de 37 anos de idade. Logo, ela se tornaria não só a mulher de Bruno, como sua testa de ferro preferida, já que não tinha antecedentes criminais. “Sara é cem por cento limpa”, escreveu ele para Calvaruso, por WhatsApp. Foi em nome dela que Bruno e Calvaruso montaram a pizzaria e cafeteria Italy’s, na orla de Natal. “Cem pizzas por dia com uma média de 50 reais é 5 mil por dia. Por trinta dias é 150 mil. Em dois meses já se pagou”, contabilizou Calvaruso, em conversa com Bruno (a pizzaria, entretanto, não prosperou, e fechou as portas algum tempo depois). Em abril de 2022, Barros registrou um boletim de ocorrência na polícia em que acusava o marido de agressões físicas e psicológicas e admitia ser laranja do italiano.
O dinheiro da Cosa Nostra fluía para o Brasil de três maneiras: por cartões internacionais pré-pagos em nome de laranjas (o dinheiro era depositado no exterior e sacado em Natal), por meio de mulas, que o transportavam na bagagem ou no corpo, e através de operações dólar-cabo – um complexo sistema de compensação bancária em que o doleiro recebe o dinheiro em determinado país e deposita valor equivalente em conta no exterior, com isso burlando os sistemas de fiscalização, pois não há transferência direta de valores entre os países. Segundo a polícia italiana, essas operações ilícitas, com frequência semanais, eram orquestradas pelo brasileiro José Reinaldo Valandro, doleiro radicado em Roma, e pelo mafioso Nino Spadaro. Orientado pelos dois, Bruno depositava as quantias em contas bancárias indicadas na Alemanha, na Espanha, em Portugal, Luxemburgo ou Chipre. Valandro, por sua vez, transferia quantia equivalente em reais para contas no Brasil.
No caso das transferências físicas de dinheiro, seja da Itália para o Brasil, seja no caminho contrário (quando a máfia queria reaplicar o dinheiro já limpo na Sicília), a principal mula de Bruno era sua mãe, Rosa Anna Maria Simoncini, que já beirava os 70 anos. Em um primeiro momento, a idosa atuou sobretudo na Itália: apanhava o dinheiro em espécie em Roma (levado do Brasil por outros mulas) e o transportava na bagagem para Palermo. “[Quando chegar a Roma] Você deve dizer que vai continuar para Milão para fazer uma operação [médica] e voltar para Palermo no dia seguinte. Eu recomendo absolutamente que você não diga que vai pegar o navio de volta na mesma noite”, orientou Bruno à mãe, em mensagem via WhatsApp.
A partir de novembro de 2017, Simoncini passou a transportar milhares de euros em espécie da Itália para Natal, e vice-versa. Em algumas dessas viagens, Bruno orientou a mãe a ir de navio da Sicília até próximo de Roma, e só então apanhar o avião para o Brasil, a fim de despistar a polícia. Em uma delas, foi escoltada por Carlos Eduardo Ferreira de Menezes, policial civil em Natal contratado por Bruno. “Então, dez mil [euros] você dá para o Carlos, dez mil você também pode guardar na sua bolsa e o resto você coloca no seu sutiã”, ordenou o filho. O próprio Bruno transportou 130 mil euros da Itália para o Brasil, em janeiro de 2018.
O policial e advogado Carlos Menezes conheceu Bruno em 2016, quando o italiano e Nino Spadaro foram até a Delegacia de Apoio e Assistência ao Turista (Deatur), em Natal, onde o então agente trabalhava, para fazerem um boletim de ocorrência contra João Soares de Souza, tabelião do cartório de imóveis de Extremoz, e seu filho, Gustavo Eugênio Costa de Souza. Segundo Bruno, o tabelião e o filho haviam falsificado a escritura de uma área de 29 hectares adquirida pela empresa Tecnobloco Construções Ltda., da qual o italiano se dizia sócio e procurador, para revendê-la a terceiros por 16 milhões de reais.
Por causa do alegado prejuízo pela perda do terreno, Bruno e Spadaro passaram a pressionar o tabelião, que se comprometeu a pagar 1,2 milhão de reais e a entregar outra área a eles. Mas Souza só pagou 150 mil reais, e os italianos descobriram que os documentos da área oferecida eram falsos.
Na discussão com os italianos, o tabelião ameaçou Bruno e seu advogado com um revólver, dentro do cartório de Extremoz, o que motivou um segundo boletim de ocorrência contra Souza, agora por ameaça, registrado pelo então policial Menezes no fim de 2017, na mesma Deatur. A aproximação com o policial fez com que este fosse convidado a servir de mula para Bruno, trazendo dinheiro da Itália.
Em março do ano seguinte, Souza e o filho foram denunciados à Justiça por estelionato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, acusados de uma série de fraudes documentais. Souza morreu um mês depois, de causas naturais. Gustavo, seu filho, foi absolvido. Sem saída, Bruno ingressou com ação na Justiça contra o tabelião e o filho, e a 1ª Vara de Extremoz condenou o espólio de Souza e também Gustavo a indenizarem Bruno em 22 milhões de reais.
No início de 2018, Menezes aposentou-se da Polícia Civil e passou a advogar para Bruno na regularização e na intermediação da compra e venda de imóveis. Aqui, as versões divergem.
Segundo o italiano, Menezes disse que poderia influenciar o juiz da 1ª Vara de Extremoz, onde tramitava o processo contra o tabelião Souza, e pediu dinheiro para repassar ao magistrado. Ele também solicitou verba para subornar policiais militares, que, em troca, fariam a vigilância dos terrenos, impedindo possíveis invasões. Como não foram constatados indícios de corrupção por parte do magistrado e de PMs, o Ministério Público denunciou Menezes e mais duas pessoas por formação de quadrilha, exploração de prestígio, estelionato e ameaça (a ação penal ainda não foi julgada).
Na versão de Menezes, ele foi alertado em 2019 por um topógrafo que era falsa a procuração por meio da qual os supostos donos da Tecnobloco Construções na Itália davam poderes para Bruno gerenciar os negócios da empresa no Brasil. Ao contatar o cartório em Roma onde o documento foi formalizado, Menezes confirmou a fraude. “Com isso, o meu acordo com o Bruno não valia nada. Fiquei no prejuízo”, diz ele à piauí. Menezes encaminhou o caso à Polícia Civil, que indiciou Bruno por uso de documento falso. A Justiça, porém, acabou arquivando a investigação, a pedido do Ministério Público, para quem a representação contra Bruno deveria ter partido dos donos da empresa na Itália, e não de Menezes.
No segundo semestre de 2019, o próprio Giuseppe Calvaruso, regente da Cosa Nostra, decidiu se mudar para Natal, a fim de cuidar mais de perto dos investimentos da máfia e fugir do cerco policial na Sicília. Em julho, o italiano foi para Cingapura, onde esteve nos mesmos bancos onde o sócio Bruno havia passado três anos antes (segundo a polícia italiana, provavelmente para alinhar novas injeções de capital no Brasil). Em novembro, desembarcou na capital potiguar.
Uma vez no Brasil, Calvaruso acelerou os investimentos da máfia. Concluiu a construção de uma casa dentro de um resort em Bananeiras, interior da Paraíba; comprou dois apartamentos em Cabedelo, município vizinho a João Pessoa; adquiriu duas empresas em Natal (uma delas dona de imóveis avaliados em quase 4 milhões de reais, no total) e fundou a pizzaria Italy’s. “Se você puder concluir [os investimentos], você salva todo mundo, acredite em mim”, escreveu a Calvaruso o seu braço direito em Palermo, Giovanni Caruso, em julho de 2020. “Conclusão: eu só tenho que me segurar, faz anos que eu sempre salvo tudo e todos”, vangloriou-se Calvaruso. “Acredite em mim, estou um pouco cansado, especialmente por viver sozinho, longe da minha família. […] Mas, se eu não resolver isso como eu digo, não voltarei [para a Itália] de mãos vazias.” As mensagens foram trocadas por meio do aplicativo Sky ECC, com forte criptografia – o que não impediu que, no ano seguinte, as polícias francesa e belga conseguissem acessar os diálogos e repassá-los à polícia italiana.
Para fincar raízes no Brasil e evitar uma possível extradição para a Itália, Calvaruso “comprou” a paternidade de um recém-nascido em Natal, em junho de 2020. O passo seguinte foi pedir a cidadania brasileira, acreditando que o país não extradita seus cidadãos. Semanas antes do nascimento da criança, Calvaruso mandou Caruso enviar 3 mil euros para ele no Brasil, por meio de cartões pré-pagos. “Preciso disso porque tenho que resolver minha autorização de residência, caso contrário, eles não me darão o visto. É muito importante. Na segunda-feira, preciso que as transferências sejam feitas. Invente alguma coisa”, escreveu no Sky ECC. Dias depois, pelo mesmo aplicativo, reforçou seus planos a Caruso: “Na próxima semana ou mesmo nesta semana nasce o bebê, que vou registrar em meu nome. Então eles me dão uma autorização permanente. Dentro de dois anos a cidadania. […] Eles [policiais italianos] devem se esquecer de mim.”
Não se sabe se o dinheiro foi dado como pagamento aos pais do bebê ou ao cartório onde foi registrado o nascimento, para que fizessem vista grossa sobre a paternidade fraudada. Fato é que o pai biológico da criança, também italiano, não só permitiu que o filho fosse registrado em nome do mafioso como emprestou a Calvaruso o seu cartão pré-pago.
A artimanha não funcionou. Calvaruso foi preso tão logo desembarcou no aeroporto de Palermo, vindo de Natal, em 4 de abril de 2021, para passar o feriado de Páscoa com a família. Outros de seus quatro acólitos também foram presos, incluindo o braço direito Caruso. De Natal, Bruno, em conversa via WhatsApp com a mulher de Calvaruso, Rosa Rita Catalano, lamentou a prisão do chefe: “Às vezes eu rezo, pensando: mas nós merecemos tudo isso?”
Desde então, Calvaruso ocupa uma cela em uma penitenciária de segurança máxima na Ilha da Sardenha, a noroeste da Sicília. Em conversas captadas dentro do presídio, ele disse à sua mulher que tem vontade de se mudar em definitivo com a família para o Brasil: “Tenho que saber a cidade que é mais conveniente para nós… você sabe quanto é [o tamanho] do Brasil, Ro? Tanto quanto toda a Europa.”
Desde 2016, a polícia italiana monitorava todas as conversas mantidas por Calvaruso no seu celular, por meio de um programa espião instalado no aparelho com autorização judicial (nos autos da investigação, não fica claro qual seria esse programa). Com isso, a Direção Distrital Antimáfia de Palermo reuniu informações suficientes para iniciar o rastreio do esquema de lavagem de dinheiro mantido pela Cosa Nostra no Brasil. Em 2021, os primeiros policiais italianos desembarcaram em Natal para rastrear o patrimônio amealhado pela máfia e seguir de perto os passos de Giuseppe Bruno.
No ano seguinte, em maio, o governo italiano decidiu solicitar formalmente um acordo de cooperação com o Ministério Público Federal (MPF) brasileiro para “a obtenção de dados confiáveis sobre rastreabilidade dos grandes fluxos financeiros movidos da Itália para o Brasil e informações sobre bens atribuídos a Giuseppe Calvaruso e outros”. A investigação do MPF, da PF e da Receita Federal, iniciada em outubro de 2022, não só confirmou os dados já investigados desde a Itália como encontrou novas suspeitas sobre o patrimônio do trio Calvaruso-Ladogana-Bruno no Rio Grande do Norte. No caso deste último, os auditores fiscais constataram uma diferença superior a 4 milhões de reais entre a renda declarada e a movimentação bancária no período entre 2016 e 2020. Já Ladogana recebeu 10 milhões de reais em suas contas entre 2009 e 2016, mas declarou no imposto de renda apenas 450 mil reais, um indicativo, segundo a Receita, de que ele movimentou dinheiro de origem ilícita.
Em novembro de 2023, a PF encaminhou à Justiça os pedidos de prisões preventivas e de buscas. Em poucas semanas as requisições foram acatadas pela 14ª Vara Federal de Natal, mas a operação tinha de ser deflagrada ao mesmo tempo no Brasil e na Itália, onde havia outros participantes do esquema mafioso. A Justiça italiana demorou a conceder os pedidos de prisão (só o fez em agosto de 2024), e a PF perdeu o rastro de Bruno. Foi graças às constantes brigas entre ele e sua mulher (embora estivessem já divorciados), quase sempre com registros de boletins de ocorrência na Polícia Civil, que uma agente da PF descobriu que Bruno estava morando em um flat em Ponta Negra, um bairro em Natal (em um dos registros policiais, Sara Barros disse que o ex-marido a obrigou, sob ameaça de morte, a assinar documentos em que ela renunciava às sociedades das empresas do esquema da máfia).
Bruno foi preso na manhã de 13 de agosto de 2024. No mesmo dia, a Direção Distrital Antimáfia de Palermo prendeu na Itália a mãe dele, Rosa Simoncini. No Brasil, nove pessoas, incluindo Calvaruso, Bruno e sua ex-mulher, Ladogana, sua ex-mulher, Tamara Barros, e a atual, Regina Souza, são réus em ação penal, ainda não julgada, na 14ª Vara Federal de Natal, acusados de associação criminosa e lavagem de dinheiro. Em dezembro passado, o inquérito da polícia italiana seguia em andamento.
O advogado de Calvaruso na Itália, Michele Giovinco, disse à piauí que a Justiça ainda não provou a responsabilidade do réu na suposta extorsão aos compradores do armazém na via Altofonte, em Palermo, nem na lavagem de dinheiro na compra e venda de imóveis no Brasil. “Não há provas processuais nas investigações italianas de transferência de dinheiro de Hong Kong ou Cingapura, nem para a Itália e nem para o Brasil”, afirmou. Giovinco alega que Calvaruso se mudou para o Rio Grande do Norte em 2019 porque desejava deixar seu país natal. “Ele sempre disse em seus interrogatórios [à polícia] que queria ir embora de Palermo e se mudar definitivamente para longe da Itália.”
Em nota, a defesa de Ladogana informou apenas que o patrimônio dele no Brasil “foi adquirido com muito trabalho” e que o empresário nunca teve envolvimento com a Cosa Nostra. Nino Spadaro não quis se manifestar. A defesa de Bruno não foi localizada.
A última ponta solta dos esquemas da máfia siciliana no Rio Grande do Norte é o assassinato de Carlos Antonio Lopes da Silva, o taxista que se tornou laranja de Pietro Ladogana e era dono formal de duas empresas e de dezenas de imóveis no estado. Mesmo depois da prisão do italiano, em 2019, Silva continuou próximo dele – era uma das pessoas autorizadas por Ladogana a visitá-lo na prisão em Alcaçuz.
Na noite de 1º de março de 2023, Silva dormia em sua casa no bairro Pitangui, em Extremoz, com a mulher e as duas filhas do casal, quando ouviu a porta da entrada sendo arrombada. Pegou um bastão e conseguiu atingir um dos invasores, mas acabou levando sete tiros de pistola de outro criminoso. Morreu ao lado da sua cama.
A principal suspeita da polícia é que Silva tenha sido morto a mando de um empresário potiguar que teria grilado parte dos terrenos da Cosa Nostra no estado. Responsável pelo inquérito, o delegado André Kay, titular da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa de Ceará-Mirim, não revela a identidade do suspeito para não atrapalhar as investigações. Passados quase dois anos do crime, o inquérito ainda não foi concluído.
Allan de Abreu
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