
Imagem: David Peinado
VALERIO ARCARY*
Os EUA sob Trump estão com uma nova estratégia de preservação da hegemonia no sistema internacional de Estados. Trata-se de uma contra-ofensiva brutal de longa duração
“Se queres conhecer o vilão põe-lhe uma vara na mão”
“Resolve devagar, executa depressa”
(Provérbios populares portugueses)
1.
A etapa internacional aberta em 1989/91, quando da derrota histórica da restauração capitalista na ex-URSS, se encerrou. Estamos em um novo período histórico. Durante vinte e cinco anos prevaleceu uma supremacia indiscutível da Tríade, a liderança dos EUA compartilhada com a EU e associada ao Japão, com a hegemonia de um projeto liberal de mundialização da circulação livre de capitais e mercadorias. Ocorreu o fortalecimento das organizações do sistema ONU, em particular as iniciativas de transição energética diante do aquecimento global que culminaram no Tratado de Paris, consolidação da OMC com a incorporação da China. Não menos importante, a extensão de regimes democrático-liberais para além da Europa e da América do Norte, em especial, na América Latina, pela primeira vez na história. Nos anos noventa os EUA conheceram um mini boom com Clinton, impulsionada pela financeirização e implantação da internet. Nos anos 2000 um mini boom com Bush, apesar da estratégia de guerra contra o Iraque e Afeganistão, com saltos qualitativos de nanotecnologias que transformaram as comunicações telemáticas. Mas a segunda década do século XXI foi, qualitativamente, distinta. A economia capitalista, em especial nos países da Tríade, passou a andar de lado, pela primeira vez desde o final da Segunda Guerra Mundial. A estratégia de QE (relaxamento monetário) contornou a ameaça catastrófica de uma depressão internacional, mas não conseguiu evitar uma longa estagnação, enquanto a China permanecia crescendo, ininterruptamente. Os custos de uma transição energética acelerada não serão possíveis sem uma ampla concertação mundial. A orientação de Trump e de seus aliados da extrema-direita pelo mundo afora é uma ruptura ou um giro. Não estão dispostos a sacrificar suas vantagens competitivas. Qualquer potência que decida descarbonizar mais rápido que as outras se colocará em uma posição mais vulnerável, porque terá custos produtivos mais elevados. A “globalização” está interrompida, e voltamos a uma situação de crescente protecionismo confirmada pela avalanche de tarifas sobre importações dos EUA, que detém a maior parcela do mercado mundial. Exercerá o poder do mais forte.
2.
O episódio ruidoso de abuso de poder de Trump na Casa Branca contra Zelensky confirma que estamos em outra etapa na situação mundial. Controle do Canal do Panamá, aquisição da Groenlândia à Dinamarca e a incrível provocação de anexação do Canadá sinalizaram uma nova estratégia. Há poucas semanas já tínhamos assistido perplexos e aterrorizados a defesa explícita de limpeza étnica palestina na Faixa de Gaza, com apoio às lideranças mais fascistas dentro da coalizão de governo chefiada por Netanyahu. No entanto, estes dois movimentos de Washington não autorizam concluir que a Aliança Atlântica entre os EUA e a Europa caducou. O que está em curso é uma mudança na relação política de forças dentro da Tríade, e Washington está na ofensiva para relocalizar o seu papel na OTAN impondo novas condições. Não é verdade que a suspensão de apoio a Zelensky significa que Trump abandonou a Europa à sua própria sorte. A Europa responde por mais de 20% do PIB mundial, e sem o apoio da EU e do Reino Unido não será possível conter a China. Mas Washington não está disposta a manter, indefinidamente, apoio a uma guerra sem solução militar, a não ser um envolvimento total cujo desenlace teria que ser uma aposta na derrubada de Putin. Isso seria arriscar uma guerra atômica, uma aposta suicida. Os EUA vão precisar da Europa, talvez, mais do que nunca, diante de uma aliança da Rússia com a China que não é conjuntural. Mas exige uma Europa alinhada com um novo projeto de longo prazo. Trump se inspira na tática Nixon/Kissinger diante da URSS. A aproximação com a China foi chave para encerrar a guerra no Vietnam, e decisiva para isolar a URSS. Só que não será tão simples isolar a China.
3.
Trump é consciente que o peso relativo dos EUA diminuiu e, ainda que mantenha ampla superioridade militar e supremacia financeira, não é mais possível um poder unipolar. A Rússia se consolidou como um estado imperialista que ambiciona manter influência regional, demonstrada no controle da Crimeia em 2014, invasão da Georgia, deslocamento de tropas para o Cazaquistão e Bielorrússia para defender regimes ameaçados por mobilizações populares e, finalmente invasão da Ucrânia em 2022. A Coreia do Norte permanece intacta, na fronteira de Seul, um protetorado defendido pela presença de dezenas de milhares de soldados yankees. O regime ditatorial do aparelho religioso-militar no Irã se manteve de pé, apesar de protestos da população jovem feminina e urbana. A Índia não é mais uma semicolônia anglo-norte-americana. A Venezuela possui a maior reserva mundial de petróleo e é um país independente. O fortalecimento do Mercosul sob liderança do Brasil, associado ao Chile e Bolívia, e a presença do governo Petro na Colômbia, além da resistência heroica de Cuba, indicam uma perda de influência na América do Sul, o que se agrava pela eleição de Cláudia Sheinbaum no Mexico. Não fosse o bastante, os Brics ampliaram participação com novas adesões. Trump decidiu partir para uma linha de máxima iniciativa e vai para a ofensiva. O mundo ficou muito mais perigoso do que foi nos últimos trinta e cinco anos.
4.
Os EUA sob Trump estão com uma nova estratégia de preservação da hegemonia no sistema internacional de Estados. Trata-se de uma contra-ofensiva brutal de longa duração. Quem a subestimar cometerá um erro irreparável. Ela passa, essencialmente, por um reposicionamento diante do perigo representado pela China. Ela obedece ao cálculo de que é indispensável isolar o inimigo principal: Pequim. A hipótese de uma lenta absorção subordinada da China no sistema de Estados repousava num projeto que fracassou. Nos últimos quarenta anos, desde a consolidação do programa formulado por Deng Xiaoping, prevaleceu na burguesia norte-americana a expectativa de que a restauração capitalista na China fomentaria a transformação de uma burguesia compradora em burguesia interna que, apoiada na rápida ampliação de uma classe média urbana, seriam sujeitos sociais de uma revolta contra o domínio do aparelho do partido comunista sobre Estado, fraturando a burocracia, repetindo, ainda que em câmara lenta, o processo na ex-URSS iniciado por Gorbatchev. Essa aposta não se confirmou. Trump tem um novo projeto em construção.
Outro giro da situação mundial é que o perigo de regimes autoritários é iminente e real. A subversão dos regimes democrático-liberais por dentro de sua própria institucionalidade vem se demonstrando um padrão da estratégia da extrema-direita. Muitos se interrogam na esquerda sobre as razões que explicam uma corrente de inspiração neofascista no século XXI. Acontece que o nazifascismo foi um movimento político-social dos anos vinte e trinta do século passado que respondia a várias determinações. Era uma resposta ao perigo de novas revoluções de outubro. Mas não era só isso. A dimensão defensiva era impor uma derrota histórica aos trabalhadores, destruir suas organizações, “tocar o terror”. Mas era, também, um projeto de luta pela liderança no sistema internacional de Estados. A destruição da URSS obedecia ao cálculo de uma Eurásia unificada sob liderança da Alemanha, associada à Itália e Japão, que poderia medir forças com os EUA. Fracassou, mas o custo foram mais de 60 milhões de vidas. Nos últimos dez anos, desde o Brexit, um laboratório político-eleitoral no Reino Unido, uma fração da classe dominante ocidental se deslocou para a extrema-direita para impor uma derrota histórica às suas classes trabalhadoras, erradicando as concessões feitas às últimas duas gerações: educação e saúde gratuitos, financiamento subsidiado da habitação, transportes públicos, aposentadorias por repartição, férias de treze ou até quatorze salários. Mas esta estratégia de aceleração do movimento de acumulação de capital e superexploração obedece, também, à luta pela preservação da hegemonia mundial contra a China. A febre nacional imperialista nos EUA tem sintomas ideológicos degenerados: machismo, racismo, homofobia, anti-intelectualismo e fanatismo messiânico. Mas responde a um projeto estratégico em construção: regimes autoritários que fortaleçam a coesão social interna para poder enfrentar a ameaça que vem do Oriente. A corrida armamentista apenas começou. Diante deste novo período os desafios colocados para a esquerda mundial serão gigantescos. A única esperança repousa no internacionalismo dos que vivem do trabalho, os explorados e oprimidos. Mas o tempo não corre a nosso favor. Mais do que nunca, devíamos estar com pressa.
*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc]
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