Para Thomas Piketty, autor de 'O Capital no Século
XXI' a Europa está à beira do abismo de uma grave crise política, econômica e
financeira.
Daniel Fuentes Castro, EL DIARIO.es / http://www.cartamaior.com.br/
O economista autor do influente livro "O
capital no século XXI" reflete sobre o auge da extrema direita em seu
país. "França e Alemanha demonstraram ser egoisticamente míopes em relação
à Espanha e à Itália ao renunciar a compartilhar seus tipos de interesse".
"É preciso se acostumar a viver com um crescimento fraco". "A
ideia segundo a qual é preciso insistir em secar os orçamentos com base em mais
austeridade para curar o doente me parece completamente insensata".
Thomas Piketty (Clichy, Francç, 1971), economista
da Paris School of Economics, é especialista no estudo das desigualdades
econômicas por uma perspectiva comparada. É autor de "O capital no século
XXI", obra que vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo e
que ao ter sido recentemente editado para espanhol e catalão lhe transformou em
um dos economistas mais influentes da atualidade.
A Paris School of Economics, de criação recente,
tem sua sede nos locais da École Normal Supérieure (13 prêmios Nobel e 10
medalhas Fields nas costas), no bulevar Jourdan. Não é um dos colossais
edifícios do século XIX, de pedra talhada, onde outras instituições como a
Sorbonne ou a faculdade de Direito de Panthéon-Assas ainda conservam suas sedes
históricas. Trata-se de um conjunto de edifícios relativamente moderno, mas
avelhentado. O vinílico desgastado do solo e a cor amarelada de algumas paredes
revelam que, se falamos em capital, não é físico, mas sim humano.
Três percevejos da porta do escritório de Piketty
seguram uma folha de papel com seu nome. Do quarto só restou a agulha. Seu
escritório mede cerca de 15 metros quadrados, 20, se muito, e está cheio de
estantes repletas de livros. Não tem assistente pessoal. Não veste terno, nem
gravata. Desde o primeiro momento, mostra-se amável, sorridente e natural. Um
pouco tímido. Ainda que dê a sensação de não nunca ter quebrado um prato na
vida, se expressa sem titubear e com veemência em alguns momentos.
Há quem veja no título “O capital no século XXI”
pisca para a obra de Karl Marx “O capital”. Você considera que a confrontação
ideológica entre capitalismo e marxismo continua vigente?
A disjuntiva não é capitalismo ou marxismo. Há
diferentes maneiras de organizar o capitalismo e há diferentes maneiras de
superá-lo. O que meu livro tenta é contribuir com este debate. Quanto ao
marxismo, faço parte da primeira geração posterior à Guerra Fria, a primeira
geração pós-marxismo. Completei 18 anos com a queda do Muro de Berlim (no dia
da entrevista fazia exatamente 25 anos). Li Marx e há ideias interessantes nele,
contribuições notórias, mas O capital foi escrito em 1867 e estamos em 2014. O
que eu tento é introduzir no século XXI a questão do capital, de seu estudo,
isto é, para mim, o que o título do meu livro significa.
Não se pode esquecer que este trabalho teria sido
impossível sem as tecnologias da informação, que permitem reunir e tratar dados
históricos em uma escala impossível para Marx e até mesmo Kuznets. É fácil
criticar os economistas do passado, mas eles trabalhavam na mão. Não contavam
com as ferramentas que nós temos e, sobretudo, não tinham a perspectiva
histórica que hoje temos e que nos permite contar a história do capital e das
desigualdades. Isto é o que meu livro tenta fazer. Não pretende anunciar uma
revolução, tenta apenas colocar à disposição dos leitores as pesquisas
históricas que pudemos reunir sobre mais de vinte países e que englobam três
séculos. O livro é, antes de qualquer coisa, uma história do capital.
Seu livro estuda de maneira empírica, entre outras
coisas, a relação entre distribuição de renda do crescimento. Pode-se falar de
causalidade direta no sentido de que uma melhor distribuição da renda
produzindo uma taxa de crescimento maior como efeito?
A correlação e a causalidade são ambas muito
complexas e não vão em um sentido apenas. A desigualdade pode ajudar o
crescimento até certo ponto, mas para além de um determinado nível de
desigualdade, obtém-se principalmente um efeito negativo que reduz a mobilidade
na sociedade e conduz à perpetuação da estratificação social no tempo. Isto tem
um impacto negativo sobre o crescimento.
O outro efeito negativo se produz através das
instituições políticas: uma desigualdade muito forte pode levar ao sequestro
das instituições democráticas por parte de uma pequena elite que não vai necessariamente
investir na sociedade pensando no conjunto da população. Por isso, o
crescimento no século XXI vai depender em grande medida do investimento em
educação e formação, e não unicamente para uma pequena elite, mas para uma
imensa maioria da população.
Para além das previsões de conjuntura econômica, o
que se pode esperar do crescimento nos próximos anos? O que as expressões
desenvolvimento sustentável e decrescimento lhe sugerem?
Acredito que tenhamos que nos acostumar a viver de
maneira sustentável com um crescimento fraco. O problema é que tanto na França
como em outros países europeus continuamos tendo em mente essa espécie de
fantasia dos "trinta gloriosos" (expressão que faz referência às três
décadas transcorridas entre a Segunda Guerra Mundial e a crise do petróleo em
1973), segundo a qual precisamos de pelo menos três, quatro ou cinco porcento
de crescimento para sermos felizes. Isto não tem sentido. Somente nas fases
corretivas em que alguns países recuperam os atrasos em relação a outros, ou em
fases de reconstrução, acontecem taxas de crescimento tão elevadas.
É preciso colocar na cabeça que uma taxa de
crescimento de 1% ou 1,5% ao ano é um crescimento muito rápido, se prolongado
no tempo. Com taxas de crescimento assim durante um período de trinta anos, que
é o equivalente a uma geração, acontecerá um crescimento da renda que equivale
a um terço ou até mesmo à metade do PIB.
Por outro lado, ter que viver de maneira sustentável
não é argumento para defender crescimento nulo. Uma taxa de crescimento entre
1% e 1,5% ao ano no longo prazo é fonte de progresso e não é um objetivo
impossível. Agora, para alcançar um ritmo de crescimento assim, é preciso
abandonar a atual política de austeridade. Isso em primeiro lugar. E sobretudo
é preciso investir em ensino superior, em inovação e meio ambiente... Falo de
investir em meio ambiente porque é evidente que terá que encontrar novas fontes
de energia renováveis, visto que com as fontes atuais não poderemos manter uma
taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano indefinidamente.
Considerando as últimas previsões da Comissão
Europeia, não parece que estejamos perto de alcançar essa velocidade de
cruzada. Você acredita que a austeridade seja um mal necessário para retomar o
ritmo de crescimento?
A realidade é que caminhamos rumo a uma década
imersos em um clima de recessão e de austeridade. Digo isto porque o PIB por
habitante estimado para a França em 2014 ou 2015 é inferior ao de 2006 ou 2007.
Esta é a situação. Estamos há quase dez anos em estancamento da renda per
capita, da riqueza do país, do poder aquisitivo... A partir daqui podemos
discutir tudo o que quisermos sobre qual precisa ser a arrecadação do Estado,
quanto deve ser o gasto público ou qual deve ser o peso do setor privado na
economia, mas o fato é que a riqueza total disponível é inferior à de 2007. Não
recuperamos o nível anterior à crise. É normal que, em uma situação como esta,
o ambiente seja depressivo.
A ideia segundo a qual é preciso enxugar os
orçamentos com base em mais austeridade para curar o paciente me parece
completamente insensata. Digo isto pensando na França, mas o mesmo vale para a
Itália, com taxas de crescimento negativas em 2013 e em 2014. É verdade que o
crescimento na Espanha está um pouco melhor agora, mas não nos esqueçamos que
ela ainda sofre um atraso considerável em termos de renda per capita em
comparação a outras grandes economias da Europa.
O resultado global das políticas de austeridade nos
últimos quatro ou cinco anos é, de maneira objetiva, muito ruim. Os Estados
Unidos tinham uma taxa de desemprego muito similar à da zona do euro de alguns
anos atrás e atualmente a diferença é enorme. O desemprego diminuiu ali, apesar
de o nível da dívida de ambas economias ser muito semelhante na situação de
partida. Não há dúvidas sobre quem escolheu a estratégia adequada.
Que outra estratégia a zona do euro deveria ter
seguido para sair da crise?
Acredito que seja necessário tornar comum as
dívidas públicas e os juros da dívida pública. França e Alemanha forma
extremamente egoístas. Demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à
Espanha e Itália ao renunciar e compartilhar seus juros. Uma moeda única com 18
dívidas públicas e 18 tipos de juros associados a essa dívida não funciona. Os
atores financeiros não têm confiança neste sistema. Poderemos sair desta crise
somente se criarmos um fundo comum de dívida pública com apenas um tipo de
juro. O Banco Central Europeu poderá, então, estabilizar esse tipo de juros com
menor dificuldade do que atualmente com 18 diferentes.
Agora, se quisermos gerir a dívida de maneira
comum, precisamos também de um Parlamento da zona do euro que tome decisões a
este respeito, entre outras coisas, sobre o nível de déficit comum. Isto é o
que faltou até agora nas proposições de reorientação da construção europeia que
Hollande esboçou na França, e do que também se falou na Espanha e na Itália.
Finalmente, isso não se traduziu em uma proposta concreta de união política e,
ao mesmo tempo, orçamentária. Ambas são coisas necessárias.
Você fala em reformar o desenho institucional da
zona do euro. Que diferenças haveria entre o atual Parlamento Europeu e esse
Parlamento orçamentário a que você se refere na última parte de seu livro?
Atualmente, temos um Parlamento Europeu em que
estão representados 28 países e, por outro lado, o Conselho Europeu de Chefes
de Estado ou de Governo e o Conselho de Assuntos Econômicos e Financeiros
(integrados pelos ministros de Economia e Finanças). São vários os problemas
desta arquitetura democrática. O primeiro é que nem todos os 28 países
representados no Parlamento Europeu querem avançar rumo a uma maior integração
política, fiscal e orçamentária. O segundo, que o Parlamento Europeu não
representa absolutamente as instituições dos Estado-nação e, concretamente, os
parlamentos nacionais.
Por isso, acredito que faz falta, paralelamente ao
atual Parlamento Europeu, uma câmara parlamentar da zona do euro ou, em todo
caso, uma câmara formada pelos países da zona do euro que queiram avançar em
direção a uma união política, orçamentária e fiscal, e que teria que se
construir a partir dos diferentes parlamentos nacionais. Cada país estaria
representado proporcionalmente à sua população, nem mais, nem menos. O mesmo
para Alemanha e França e os demais. A atribuição desta nova Câmara consistiria
em votar questões como um imposto comum sobre sociedade ou o nível de déficit
comunitário.
Não são poucos os que pensam que, em vez de mais
integração, o razoável seria retomar as moedas nacionais.
Não, para mim não é a boa solução. Agora, sem
propostas alternativas rápidas, acredito que o retorno às moedas nacionais será
um cenário cada vez mais difícil de descartar. Concretamente, a única resposta
dada na França aos que querem sair do euro consiste em dizer que é impossível,
que está proibido, que agora que entramos não se pode retroceder... Esta
resposta é extraordinariamente fraca e não vai durar muito tempo mais.
A saída da crise está em avançar na união dos
países da zona do euro. De certa forma, a pior das situações é a atual, porque
perdemos a possibilidade de desvalorizar a moeda, perdemos a soberania
monetária nacional, em troca teríamos que ganhar novas formas de soberania
fiscal e orçamentária, maior capacidade para arrecadar imposta de maneira mais
justa, mais capacidade de resistência para proteger frente ao risco de
especulação sobre os tipos de juros da dívida pública. Até agora, França e
Alemanha ganharam neste jogo, mas a única alternativa para a saída do euro é
uma união da dívida, uma união fiscal. Se não nos apressarmos, acredito que as
forças políticas a favor da saída do euro vão ganhar a partida.
O que se pode esperar da França na construção desta
nova arquitetura institucional Europeia, exatamente agora em que a extrema
direita lidera as pesquisas? A Europa deve se preocupar?
É preciso se preocupar, absolutamente. Não acredito
que a Frente Nacional chegará ao poder no Eliseu ou à presidência da República,
mas pode conseguir a presidência de várias regiões. No próximo ano, há eleições
regionais, e dado o modo de distribuição das cadeiras, é perfeitamente possível
que duas ou três regionais, ou até mais, caiam do lado da Frente Nacional.
Em um sistema eleitoral como o das eleições
presidenciais, estamos acostumados que a Frente Nacional perca, inclusive se
for o partido mais votado do primeiro turno. Entretanto, nas regionais, o
partido mais votado obtém uma parte equivalente a um quarto das cadeiras (o
resto se divide de maneira proporcional). Se a Frente Nacional conseguir 30% ou
35% dos votos em uma região, a direita 25% e a esquerda 20%, por exemplo, a
parte do partido mais votado faz com que a Frente Nacional aspire ter maioria
absoluta nessa região.
Será um choque enorme na Europa. Até agora, a
Frente Nacional ganhou somente em algumas cidades pequenas, mas se regiões
inteiras passarem a ser governadas pela extrema direita, a história será outra.
Não vai ser uma piada. Vão criar tensões em algumas regiões do país e o
resultado pode ser extremamente violento.
Até esse ponto?
Estamos de fato à beira do abismo de uma crise
política, econômica e financeira. A crise é responsabilidade de todos os
países, mas não entendo como a Alemanha continua pensando que tem interesse em
manter esta visão tão rígida da austeridade... Afinal de contas, nem sequer lá
o crescimento é elevado. Que consta que a responsabilidade também é da França,
por não fazermos verdadeiras propostas progressivas e de refundação democrática
da Europa. E continuamos esperando propostas da Espanha e da Itália. Em todo
caso, acredito que a situação seja grave e que as eleições regionais na França
no próximo ano serão um choque.
Muitos eleitores se incomodam porque interpretam
seu livro como a evidência de um futuro com menor crescimento e pior
distribuição da riqueza. Há argumentos para o otimismo?
Claro que sim. Essa é minha maneira de ser. Sinto
muito se alguns chegam a conclusões pessimistas após a leitura do livro! Eu
acredito no progresso social, econômico e democrático e no crescimento. Mas é
preciso se acostumar a viver com crescimento menor. Insisto em que um
crescimento mais fraco, se mantido no tempo, é compatível com o progresso. Há
trinta anos, não dispúnhamos das atuais tecnologias da informação, por exemplo.
Se nos organizarmos bem, nos dotarmos das instituições adequadas para que todo
mundo possa se beneficiar, essas tecnologias serão uma enorme fonte de
riquezas.
Acredito no progresso técnico e na mundialização, e
o livro não é pessimista em relação ao futuro. Simplesmente, para que estas
coisas beneficiem a todos, fazem falta instituições democráticas, sociais,
educativas, fiscais e financeiras que funcionam corretamente. O problema é que,
depois da queda do Muro de Berlim, nós imaginamos, por um momento, que era
suficiente se basear nas forças naturais do mercado para que o processo de
globalização e de competitividade beneficiasse a todos. Acredito que o erro
esteja aí. É preciso repensar os limites do mercado, do capitalismo, e repensar
também as instituições democráticas.
Tradução: Daniella Cambaúva
Créditos da foto: Arquivo
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