O Descurvo
-- Está
em construção, no estado de Minas Gerais, a primeira "prisão privada"
do Brasil: viveremos sob os desmandos de uma indústria prisional movida pelo
negócio lucrativo de prender gente? --
No
Brasil, até hoje, prisões são construídas e geridas pelo poder público. Por
força da Constituição de 1988, largamente garantista, instituições prisionais
deveriam ser o destino de pessoas condenadas depois de terem acesso ao devido
processo legal, sob plena presunção de inocência - e, eventualmente, também
para presos provisórios ou em flagrante delito. Nada mais de tortura ou
maus-tratos, só a justiça e nada mais. Um doce devaneio idealista, sem dúvida.
A realidade material das relações sociais brasileiras fez isso cair
por terra. A nossa desigualdade intrínseca, a precarização nas condições
laborais (desemprego, queda dos salários) nos anos 90, a favelização das
cidades pela carência de políticas habitacionais dispararam a violência, o que
foi respondido com o elitismo do judiciário, o punitivismo alimentado pela
mídia e o desejo de exceção das classes média e alta. O
resultado disso é que, hoje, temos uma das maiores populações
carcerárias do mundo.
Grande
parte dos nossos presos são provisórios - isto é, nem sequer foram condenados,
mas o judiciário, que deveria tratar tal questão como exceção, a
converte em regra: todos passam a ser culpados até que se prove o
contrário. Tais presos provisórios, em geral, respondem a processos por crimes
patrimoniais de pouco potencial ofensivo. São negros e/ou pobres. Se o chicote
da tortura parou para os brancos e bem-nascidos com o fim da Ditadura Militar,
para negros e pobres, tudo continua como sempre foi.
O
sistema prisional, então, se tornou um problema para o Estado pela sua
saturação. Grandes organizações criminosas, como o PCC, nasceram de
dentro dos presídios, enquanto rebeliões e quetais perturbam a boa sociedade.
Se prisões são como infernos reais, o inferno entrou em colapso, abalando todo o edifício teológico-político
no qual se constitui nossa forma de sociedade. Eis que alguns
burocratas passaram a exclamar, há algum tempo, que privatizar presídios seria
uma boa saída. Afinal, o capitalismo é uma máquina de síntese quase perfeita,
logo, entregar prisões às corporações, com seu interesse privado, resolveria as
coisas. Eles lucrariam de algum com modo com a construção e gestão dos
presídios e tudo passaria a correr bem.
É
desse processo que nasce o pioneiro complexo prisional privado de Ribeirão das Neves, em
Minas Gerais. A construção da referida prisão se dará por meio
do pouco claro regime de Parceria Público-Privada,
cuja legislação aprovada no governo Lula deveria ser uma forma de lidar melhor
com o elemento privado, sobretudo para a construção de grandes obras de
infraestrutura, mas acabou longe disso: ela termina por consistir em uma nova
forma de gestão privada das obras públicas. A medida específica da construção
da prisão mineira é do governo local, tucano, sempre tão afeito a privatismos
vários.
O
referido complexo obedecerá o modelo inglês, segundo seus
idealizadores. Talvez isso seja só um jeito pomposo para dizer que não terá o modelo
americano, uma vez que as empresas não lucrarão com o trabalho dos presos -
uma bobagem sem tamanho, haja vista que não poderíamos ter, pela natureza do
nosso sistema jurídico (da legislação penal à administrativa), nada parecido
nem com o primeiro modelo, nem muito menos com o segundo (os presos só seriam escravos
penais do consórcio concessionário no caso de um desrespeito mais
flagrante ainda da Constituição). O que teremos, afinal, é um originalíssimo
modelo brasileiro, uma vez que ele incorpora modelos estrangeiros à realidade
local de um modo, não raro, contraditório com as próprias necessidades e
diretrizes.
Enfim,
da mesma forja que produziu a antropofagia, potente e libertadora, também
nasceu também uma forma de síntese colonizadora que serve ao poder. O nosso
sistema de controle de constitucionalidade -- o juízo de exceção --, por
exemplo, é uma mistura do europeu com o americano sem ser uma coisa ou outra.
É, pois, brasileiríssimo. Mas é brasileiro no sentido de ser um converter-se
em mundo do Brasil -- e como nenhum país faz tanto isso, nada mais
brasileiro, afinal. Uma antropofagia é um devir-mundo do Brasil que é
exatamente o contrário e o antagônico: é devorar o mundo por o amar e
não se deixar devorar sadicamente por ele.
O
sadismo aqui está no fato de que prender pessoas, de ato estatal, se tornará um
negócio qualquer, o que torna tudo pior. Existirá um cliente -- o Estado,
munido com o erário público --, uma demanda permanente da parte dele --
encarcerar quem sai da linha no regime --, é só trabalhar. O problema não está
no fato de que a iniciativa privada não possa melhorar presídios, está no fato
de que prender mais gente e ter gente "penitenciável" se tornará
ótimo. Não será mais interessante não ter gente presa. E quem será preso não
serão os outros, seremos todos nós. O lobby punitivista
grassará e terá dinheiro para tanto. Na prática, a gestão da administração
penitenciária, monopólio do Estado, será delegada de forma branca a um
consórcio privado por uma derivação lógica do processo: ainda que o Estado não
vá delegar nada, na prática, o direito de gerir o presídio permitirá que um
consórcio privado faça as vezes do poder público em certa medida.
Ironias
do destino, é uma fábula semelhante à clássica série cinematográfica Robocop (um
dos últimos exemplares da ficção científica futurista crítica dos anos 80): em
um futuro próximo e pós-apocalíptico (não por uma catástrofe, mas pelo
desenrolar dos fatos, sob o neoliberalismo, no qual até o excesso de raios
ultravioleta é ensejo para o comercial de um protetor solar ridículo) uma
corporação gerencia uma decadente Detroit -- a OCP, Omni Consumer Products
-- e usando os restos de um policial morto em ação, ela faz um
ciborgue policial que se torna seu carro-chefe de sua política de
mercantilização da segurança-pública e gentrificação da
cidade. Enfim, com essa medida, o Brasil chega ao futuro e o futuro é o passado
ou a realidade histórica de opressão em sua dimensão maquínica.
Prisões
privadas são o fecho de um movimento que já está posto com a privatização da
gestão dos espaços urbanos (pelo conglomerado de imobiliárias) e rurais (pelo
agronegócio), somado a universalização pública da segurança privada (a
universalização das empresas de segurança e seus aparatos por toda a parte) e a
universalização privada da segurança pública (a polícia republicana convertida
mais e mais em milícia de classe). Não há catástrofe. Não há barulho. É o
funcionamento cotidiano e silencioso do sistema que nos conduz a tal futuro,
que mais e mais se torna presente. A única saída para a violência radical da
nossa sociedade, e de produção, é uma transformação de sua organização
produtiva e social, coisa que se viu, em pequena medida nos anos Lula, com uma queda de 8% na
violência homicída: envolver a base e a ponta do processo dentro das mesmas
relações materiais é aumentar o problema, não diminuí-lo. Só a constituição de
novas políticas sociais pode efetivamente mudar isso, sempre tendo em mente que
tornar uma sociedade violenta é fácil, mas o contrário, nem tanto.
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