por Roberto Amaral, em CartaCapital
“O direito de defesa vem sendo
arrastado pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À sombra da
legítima expectativa de responsabilização, viceja um sentimento de desprezo por
garantias fundamentais.” Márcio Thomaz Bastos
“Nós entregamos aos nossos juízes –
individualmente considerados— e aos tribunais, mais poder do que eles
precisam para exercer suas funções.” Sérgio Sérvulo
O ministro Joaquim Barbosa declara em
sua entrevista de final de ano — a primeira de seu recém iniciado mandato,
que não há Poder após o Judiciário (e, aparentemente, nem antes…) e que
suas decisões são inapeláveis. Esqueceu-se de dizer, porém, que isso não
as livra, as decisões, de corrigenda, quando se trata de matéria
criminal. É o caso da anistia (C.F. arts. 21, XVII e 48, VIII), e é o
caso do indulto e da comutação da pena pelo presidente da República (C.F. art.
84, IX). E não é só, pois o ministro Joaquim Barbosa e seus colegas não estão
acima do bem e do mal, eis que podem ser processados, julgados e condenados pelo
Senado nos crimes de responsabilidade (C.F. art. 52, II).
Podem, até, perder a toga.
Também os poderes do STF são
susceptíveis de revisão. O Congresso Nacional pode emendar a Constituição (o
que, aliás, tem feito com excessiva desenvoltura) e nela, até, alterar os
poderes tanto dele próprio quanto do Executivo e do Judiciário. E pode ainda, o
Congresso, legislar na contramão de um julgado do STF, e, assim, torná-lo sem
consequência. Os poderes do Judiciário (como os do Legislativo e do Executivo),
não derivam, na democracia, da ordem divina que paira, autoritária, sobre os
Estados teocráticos, ou da ordem terrena das ditaduras. Atrás dos nossos
Poderes, não está um texto de dicção divina, ou um texto datilografado
por um escriba do tipo Francisco Campos ou Gama e Silva, mas um texto derivado
de uma Assembleia, esta sim um Poder, o único, acima dos demais. Foi
exatamente este Poder que, armado da força constituinte oriunda da
soberania popular, ditou-lhe, ao STF, existência e a competência.
Não obstante, o Supremo brasileiro se
atribui hoje o poder de dizer a primeira e a última palavra. O modelo é a Corte
dos EUA, mas, se esta tem a ‘última palavra’ do ponto de vista jurídico, ela a
pronuncia dentro dos estritos parâmetros que lhe são fixados pelo poder
político, na legislação judiciária. Na Alemanha, na Espanha, em Portugal –
adverte o jurista Sérgio Sérvulo – a suprema corte não tem regimento interno: o
exercício de sua atividade é pautado em lei, e, com isso, se estabelece seu
vínculo umbilical com o poder político.
Pouco entendendo de direito (convido o
leitor a levantar os nomes dos dez últimos presidentes da Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara Federal), e, talvez por isso, votando ao
STF um temor reverencial, nosso Congresso fica de cócoras ante o Judiciário,
aprovando tudo o que se lhe pede (inclusive aumentos salariais): excrescências
como as súmulas vinculantes e repercussões gerais, contra as quais tanto se
bateu Evandro Lins e Silva.
De outra parte, esse mesmo Supremo
deixou de exercer sua principal função – o controle difuso de
constitucionalidade – liberando com isso as mãos dos tribunais e juízes ao
arbítrio.
Não trago à discussão tema irrelevante,
uma vez que (e dessa verdade muitos se descuidam) as consequências das decisões
do STF, de especial nos julgamentos criminais, dizem respeito a todos os
cidadãos, e não só aos julgados e condenados. Daí, para horror do pensamento
autoritário, a sucessão de instâncias julgadoras e a sequência de recursos e
apelações e agravos, que sugerem impunidade, mas que simplesmente atendem à
necessidade de assegurar a todos ampla defesa. Na democracia só se condena com
provas.
É que essas precauções inexistem no
caso do STF, pois ele age, no mesmo julgamento, como primeiro e último grau,
como promotor e juiz, e suas decisões constroem jurisprudência a ser
observada por todos as demais instâncias. Assim, por exemplo, se, em uma
determinada ação criminal, o desconsiderar a presunção de inocência
(transformada em “presunção de culpabilidade”), estará condenando todos os
acusados de todos os processos vindouros a provar a própria inocência, e não a
simplesmente refutar a acusação; se em um determinado caso, o STF considerar
dispensável a prova material para caracterizar a culpabilidade de determinado
réu, estará dispensando a prova em todos os demais julgamentos..
Uma coisa, desejada, aplaudida, é a
sadia expectativa de punição dos chamados ‘crimes de colarinho branco’; outra é
a degeneração autoritária do direito criminal.
As decisões do STF, seja no caso
da Ação Penal 470 decretando perda de mandato de parlamentares (competência
privativa da respectiva Casa legislativa, C. F. art. 55), seja, à mesma época,
intervindo na organização da pauta do Congresso mediante decisão
monocrática em ordem liminar, assustam o pensamento democrático, que, cioso da
importância da separação dos Poderes, reage ao papel de molochautoritário
que a direita quer emprestar ao Poder Judiciário brasileiro. Um dos mais
perigosos movimentos desse autoritarismo que começa a quebrar a casca do ovo em
que foi gerado, é a judicialização da política, a qual, se
atende à fome voraz do Judiciário, é também acepipe que sai do forno dos
partidos e do Congresso, seja pela omissão desse, seja pelo vício
anti-republicano das oposições, das atuais e das anteriores (PT à frente) de
recorrerem ao Judiciário, para a solução de impasses que não souberam resolver
no leito natural da política.
De outra parte, a omissão legiferante
do Congresso abriu lacunas legais ou criou impasses que foram levados ao
Judiciário que, assim, ‘legislou’ e legislou (não discuto o mérito), por
exemplo, no julgamento das cotas para negros nas universidades, na
descriminalização do aborto de fetos anencéfalos e na legalização da união
civil entre homossexuais. E legislou, então à larga, o STF sancionando decisões
do TSE, que se auto-incumbiu de fazer a reforma política que o Legislativo
postergou. Esse mesmo TSE se especializou em cassar mandatos.
No fundo a questão é esta: não há vazio
de poder.
Na mesma entrevista citada no início
deste artigo, o presidente do STF condena as promoções de juízes por
merecimento, pois isso, diz ele, enseja a comprometedora corrida dos
interessados atrás de apoios políticos. É verdade, mas não é a verdade toda,
posto que não se aplica, apenas, à primeira instância. Em grau muitas
vezes mais grave o ‘beija mão’ tem matriz na nomeação dos ministros dos
tribunais superiores, principalmente do STF, com os candidatos em ciranda
pelos vãos e desvãos do Executivo e do Senado à procura de apoios
trocados por promessas de favores futuros.
Pede a democracia um Congresso
revigorado, talvez o da próxima Legislatura – apto para realizar as
reformas de que o Brasil necessita e uma delas é a reforma do Judiciário, livre
da vitaliciedade monárquica, obrigado a trabalhar onze meses por ano, sujeito
ao controle externo, como todos os demais Poderes republicanos.
Roberto Amaral é
iientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
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