Ninguém se surpreendeu com a
notícia de que Washington possui um poderoso sistema de espionagem, mas a
revelação de sua amplitude por Edward Snowden criou um escândalo planetário.
Nos Estados Unidos, a novidade foi recebida com apatia. Estão distantes os dias
em que as escutas telefônicas provocavam a ira da população
por David Price
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As revelações de Edward Snowden
sobre a amplitude do programa de vigilância eletrônica da Agência de Segurança
Nacional (NSA, na sigla em inglês) levanta a questão da intromissão das
agências de inteligência dos Estados Unidos na vida dos cidadãos. Contudo, para
além do registro de metadados a partir de linhas telefônicas e da navegação na
internet, esse caso revela outra realidade, também preocupante: a maior parte
dos norte-americanos aprova o controle das comunicações eletrônicas privadas.
Segundo pesquisa realizada pelo jornal Washington Postalguns dias depois das
declarações de Snowden, 56% da população julga que o programa PRISM é “aceitável”
e 45% acredita que o Estado deve “ser capaz de vigiar os e-mails de qualquer
pessoa na luta contra o terrorismo”. Esses resultados não surpreendem: há mais
de dez anos, os meios de comunicação, especialistas e dirigentes políticos vêm
apresentando a vigilância como arma indispensável à guerra contra o terrorismo.
Esse consentimento perante a
espionagem nem sempre existiu nos Estados Unidos. Algumas semanas antes do
atentado de 11 de setembro de 2001, o jornal USA Today publicava a manchete:
“Quatro em cada dez norte-americanos não confiam no FBI” (20 jun. 2001).
Durante décadas, estudos sucessivos da Secretaria de Justiça mostraram a forte
oposição da população às escutas telefônicas pelos poderes públicos. Entre 1971
e 2001, a taxa de desconfiança chegou a flutuar entre 70% e 80%. Mas os
atentados contra o World Trade Center e o Pentágono e, em seguida, a guerra
contra o terrorismo empreendida por George W. Bush mudaram o cenário e
conduziram os norte-americanos a reconsiderar bruscamente a oposição secular à
vigilância de cidadãos.
Em 1877, o planeta contava com
apenas uma linha telefônica, que ligava 778 postos entre Boston e Salem
(Massachusetts). Mas essa tecnologia logo se difundiria com uma velocidade
constante. No início do século XX, um norte-americano em cada mil possuía
telefone; vinte anos depois, essa proporção cresceu para 1% e, em meados do
século, um terço já dispunha dessa forma de comunicação. Hoje, os Estados
Unidos têm mais telefones que habitantes. Antes do surgimento da fibra óptica e
dos celulares, no fim do século XX, as escutas exigiam meios técnicos nada
sofisticados e pouca cumplicidade por parte das empresas de telecomunicação.
Para gravar uma conversa através de uma linha composta de fio de cobre, bastava
ter acesso ao fio e pinças crocodilo para nele prender um microfone.
Tráfico de rum e escutas
telefônicas
Os primeiros escândalos
relacionados a escutas telefônicas remontam ao início do século XX. Durante a
Primeira Guerra Mundial, essa prática – reprovada pela população – estava tão
difundida que o Congresso a declarou ilegal, e isso apesar da ameaça real que
representavam os espiões estrangeiros na época. Vários Estados seguiram esses
passos e, após a guerra, adotaram legislações que limitavam as capacidades de
vigilância das forças da ordem locais.
Mas isso não impediu que as
práticas de vigilância perdurassem. Durante a Lei Seca que vigorou entre 1919 e
1933, as polícias locais e federais dos Estados Unidos espionaram com
frequência e gravaram as ligações dos contrabandistas que se comunicavam pelo telefone
com produtores, distribuidores e consumidores de álcool. Com o apoio da opinião
pública, o procurador-geral norte-americano naquele momento, Harlan F. Stone,
interveio e proibiu a Secretaria de Justiça de realizar as escutas em 1924.
Causa perdida: desconsiderando a decisão de Stone, o Departamento do Tesouro e
o Escritório de Investigação – ancestral do FBI – continuaram secretamente com
as atividades.
Dois anos depois, um novo caso
colocou a questão no centro dos debates: em Seattle, agentes federais
espionaram as conversas do ex-tenente da polícia Roy Olmstead, suspeito de
tráfico de rum. Apesar da ilegalidade das escutas, a justiça deu razão à
polícia e condenou Olmstead. A decisão abalou os corredores dos tribunais. O
juiz Frank Rudkin afirmou na ocasião que as ameaças criminais não podiam
justificar práticas ilegais da polícia: “Nenhum agente federal tem o direito de
escutar as conversas telefônicas de outra pessoa e utilizá-las contra ela.
Agentes assim são lamentáveis e intoleráveis. Aceitá-los seria admitir o
fracasso de nossos ancestrais em estabelecer, para seus filhos, um Estado que
garanta a liberdade e a prosperidade”.1
Em 1928, Olmstead levou seu caso
para a Suprema Corte dos Estados Unidos e recebeu o apoio de empresas como a
Seattle Pacific Telephone e a Telegraph Company, que publicaram uma declaração
defendendo o direito dos contrabandistas de discutir sem ser espionados:
“Quando duas linhas telefônicas se conectam na central [de uma operadora
telefônica], elas devem ser, supõe-se, reservadas exclusivamente aos usuários
dessas linhas, e nesse sentido pertencem a eles, exclusivamente. Um terceiro
que intercepta essa comunicação viola, ao mesmo tempo, o direito de propriedade
dos usuários e o da empresa de telefonia”.2 Hoje seria difícil imaginar que
algum provedor de acesso à internet ou uma empresa de telecomunicações
defenderia os direitos à vida privada de seus clientes. Questionados por
Snowden, Facebook, Google, MSN e similares preferem ignorar o tema...
A Suprema Corte finalmente
sentenciou contra Olmstead, por cinco votos contra quatro. Um dos juízes, Louis
Brandeis, manifestou sua oposição ferrenha à decisão: “O crime é contagioso. Se
o Estado age fora da lei, incentiva os outros a fazer o mesmo, convida à
anarquia. Declarar que, na luta contra o crime, os fins justificam os meios –
ou seja, que o Estado pode cometer crimes com o objetivo de obter uma
condenação criminal – terá consequências terríveis. A Suprema Corte deve se
opor resolutamente a essa doutrina perniciosa”.3
O olhar dos norte-americanos
mudou durante a década de 1940 – momento de guerra e da popularização do
telefone, que havia se tornado acessível às classes populares e já não era mais
privilégio exclusivo da elite, em geral protegida pelos magistrados. Esse contexto
conduziu os poderes públicos a reexaminar a questão da legalidade das escutas.
Pouco antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, o diretor do FBI, John
Edgar Hoover, exigiu do Congresso novas prerrogativas em matéria de vigilância
telefônica. Apesar da oposição do presidente da Federal Communications
Commission (FCC), James Fly, Franklin D. Roosevelt permitiu secretamente que a
Secretaria de Justiça vigiasse indivíduos “subversivos” e os suspeitos de
espionagem.
Sua concepção de subversão
revelou-se, no mínimo, ampla, e Hoover não utilizava seus novos poderes apenas
para buscar informação sobre os nazistas. William Sullivan, seu assistente,
contaria que, durante a guerra, o FBI recorria regularmente a escutas sem
dispor de mandatos: “Com o futuro do país em jogo, obter o consentimento de
Washington era uma formalidade inútil. Muitos anos depois [do fim do conflito],
o FBI continuava a escutar as conversas sem autorização do procurador-geral”,
explicou Sullivan. Em outros termos, a história das escutas ilegais nos Estados
Unidos parece um deslize dos agentes do FBI a fim de, pouco a pouco, desviar
essa prática de sua missão inicial – identificar simpatizantes nazistas – e
torná-la instrumento de vigilância de militantes de direitos civis, dirigentes sindicais,
trabalhadores sociais, cristãos progressistas e pessoas suspeitas de comunismo.
A partir de 1950, no contexto da
caça às bruxas lançada pelo senador anticomunista Joseph McCarthy, o FBI
aproveitou crenças inspiradas pela Guerra Fria para levar adiante suas escutas
ilegais – apesar da oposição dos tribunais, que se recusaram a afiançar esses
pequenos arranjos com a lei. Assim, durante o processo de Judith Coplon,
acusada de ser agente da KGB – o serviço secreto soviético –, o FBI revelou que
havia registrado conversas da acusada com seu advogado. Resultado: a Corte de
Apelação cassou a condenação formulada em primeira instância.
Os anos que se seguiram à morte
de Hoover, em 1972, trouxeram novas revelações sobre as intrusões ilegais do
FBI e da CIA na vida privada dos norte-americanos. As comissões Church e Pike, 4
em 1975, revelaram as vastas campanhas de vigilância com alvo em cidadãos
engajados em atividades políticas perfeitamente legais. O caso tornou-se
manchete de todos os jornais, e a opinião pública se revoltou. Mas o Congresso
não demorou a abandonar as investigações.
Os estragos do Patriot Act
Novo escândalo em 1978: durante
uma audiência diante do subcomitê de informação do Senado, David Watters,
ex-engenheiro de telecomunicações da CIA, afirmou que a NSA vigiava e gravava
milhões de conversas telefônicas nos Estados Unidos e em outros países. Esse
depoimento deixou a população em fúria, mas não havia nada a fazer: em outubro
de 1978, o presidente James Carter promulgou o Foreign Intelligence
Surveillance Act (Fisa), que estabelecia um sistema jurídico secreto para zelar
pela “segurança nacional”. Uma vitória para o pequeno mundo da informação, que
militava havia anos pela legalização das escutas. O número de autorizações
liberadas no âmbito dessa lei não parou de aumentar nas últimas décadas (de
332, em 1980, passou para 2.224, em 2006), enquanto os indeferimentos ainda
permanecem ridiculamente baixos: somente cinco em 22.990 pedidos entre 1979 e
2006.
A internet, no início, era
utilizada somente por militares e pesquisadores; com a abertura da rede mundial
ao grande público, novos problemas surgiram. Antes da adoção do Electronic
Communications Privacy Act, em 1986, era legal interceptar e-mails que
circulavam por linhas telefônicas. Com a publicação dessa lei, as comunicações
eletrônicas se beneficiavam das mesmas proteções legais que as conversas
telefônicas.
Em 1994, vários norte-americanos
denunciaram o Digital Telephony Act, que impunha a fabricação de fibras ópticas
com materiais que facilitassem as escutas autorizadas pelos tribunais. A
American Civil Liberty Union (ACLU) e o Electronic Privacy Information Center
organizaram a oposição ao projeto de lei – que causou protestos no mundo
inteiro, como demonstram as inúmeras cartas enviadas a jornais denunciando seu
caráter liberticida. Mas os tempos haviam mudado em relação ao processo de
Olmstead em 1927: agora, a indústria das telecomunicações apoiava com todo seu
peso o Digital Telephony Act, e a lei foi finalmente votada e aprovada. Sem que
a população realmente percebesse, as administrações dos presidentes Ronald
Reagan, George Bush pai e Bill Clinton, sucessivamente, permitiram cada vez
mais a utilização das escutas, assim como a coleta de dados pessoais por
empresas. A justiça não replicou.
No fim da década de 1990, novos
escândalos apareceram. A NSA foi acusada de grampear linhas telefônicas
internacionais e utilizar computadores para analisar palavras-chave dessas
conversas. Ao mesmo tempo, uma série de processos foi aberta para determinar se
os correios eletrônicos profissionais deveriam ou não se beneficiar do mesmo
nível de proteção que o correio convencional e as ligações telefônicas. A maior
parte dos juízes, contudo, ignorava o funcionamento da internet e teve
dificuldade em compreender que a mesma confidencialidade poderia ser usada
tanto para a troca de e-mails como para uma conversa telefônica.
Se no início da década de 1990 o
Poder Judiciário tivesse considerado os e-mails como envelopes eletrônicos, os
Estados Unidos seriam hoje um país muito diferente. Em seu alerta na ocasião do
processo de Olmstead, o juiz Brandeis havia estabelecido um paralelo entre o
telefone e o correio postal: “Não há diferença real entre uma carta em um
envelope e uma mensagem telefônica privada”. No mundo pós-11 de Setembro,
contudo, é pouco provável que o correio eletrônico venha a ser protegido por um
raciocínio similar.
O Patriot Act, promulgado em 26
de outubro de 2001, suprimiu de fato alguns limites jurídicos – colocados em
prática pela comissão Church – das escutas telefônicas conduzidas pelo Estado
federal. Essa lei também suspendeu algumas restrições que impediam os serviços
de informação de espionar cidadãos norte-americanos, ratificou a utilização de
“moscas de espionagem”, autorizou o controle em massa de correios eletrônicos e
atividades on-line. Com a criação, em 2003, do Departamento de Segurança
Interior (Department of Homeland Security), o Estado se viu dotado de uma
agência centralizada que coordena operações de inteligência por meio de
ferramentas com que Hoover jamais sonharia, e que eleva o grau de vigilância
dos indivíduos a um nível inédito.
Após um século de grande
oposição, a sociedade norte-americana aprendeu a renunciar a seu direito à
confidencialidade. Para grande parte da população – sem lembranças desse
passado não muito distante –, o medo do terrorismo amplamente difundido e a
promessa de respeito aos direitos dos “inocentes” tornaram-se mais importantes
que as aspirações à proteção da vida privada e das liberdades civis. O “deserto
do esquecimento organizado”,5 segundo a expressão do sociólogo Sigmund Diamond,
deixa o caminho livre para aqueles que desejam manter a ordem estabelecida.
David Price
Professor de Antropologia da
Universidade Saint Martin de Lacey, em Washington. Autor de Weaponizing
anthropology: social science in service of the militarized state [Armando a
antropologia: ciência social a serviço do Estado militarizado], AK Press,
Oakland, 2011.
Ilustração: Pawel Kopczynski /
Reuters
1 “Minority opinion on the appeal of the
Olmstead defendants” [Opinião minoritária sobre o apelo dos defensores de
Olmstead], Corte de Apelação dos Estados Unidos para o Nono Circuito, 9 maio
1927. Disponível em: .
2 “Amicus curiae brief of telephone
companies submitted to the Supreme Court in Olmstead v. United States”
[Relatório a título amicus curiae de empresas telefônicas submetido à Suprema
Corte no caso Olmstead versus Estados Unidos], Suprema Corte dos Estados
Unidos, Washington, 1928. Disponível em: .
3 “Dissenting opinion of Justice Louis D.
Brandeis in Olmstead vs. United States” [Opinião discrepante do juiz Louis D.
Brandeis em Olmstead versus Estados Unidos], Suprema Corte, 1928. Disponível
em: .
4 A primeira, que levou o sobrenome do
senador democrata Frank Church, oposição de Nixon, foi criada após o escândalo
de Watergate para investigar as atividades da CIA. A segunda, com o nome do deputado
Otis Pike, também democrata, era sua equivalente no Parlamento.
5 Sigmund Diamond, Compromised campus:
the collaboration of universities with the intelligence community, 1945-1955
[Campus comprometido: a colaboração das universidades com o serviço de
inteligência, 1945-1955], Oxford University Press, Nova York, 1992.
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