Ao cancelar a visita de Estado
que faria a Washington, a presidente Dilma destacou a responsabilidade da Casa
Branca no caso Snowden. Por outro lado, as transnacionais da internet – parte
integrante do sistema de vigilância orquestrado pelos serviços secretos dos
Estados Unidos –são frequentemente poupadas das críticas
por Dan Schiller
Por anos as autoridades
norte-americanas atacaram os Estados – China e Irã em primeiro lugar – que
impõem a seus cidadãos restrições de acesso e uso da internet. As revelações de
Edward Snowden sobre a extensão do sistema de vigilância das telecomunicações
globais estabelecido por Washington só reforçam as dúvidas que já pesavam sobre
a sinceridade de tais críticas. Mas o problema vai muito além da mera
hipocrisia.
Em 2010, uma comissão de
investigação do Departamento de Comércio dos Estados Unidos apontou a
preocupação dos principais atores do setor digital.1 Em seus relatórios à
comissão, eles empenhavam-se em denunciar a política dos Estados Unidos em
relação à web, não sem tomar diversas precauções – por exemplo, nunca
mencionaram diretamente o programa Prism da National Security Agency (NSA).
A TechAmerica, associação surgida
em 2009 que reúne 1,2 mil empresas, criticou a disposição do Federal Bureau of
Investigation (FBI) em estender a lei que regulamenta a vigilância eletrônica a
todo o conjunto dos meios de comunicação. E em sugerir que essa mudança poderia
servir de “modelo” para outros países, com “consequências tão ou mais
desastrosas para as liberdades civis”. A associação pediu então o
estabelecimento de políticas que “garantam a livre circulação da informação,
aqui, no país”.2
Sempre evitando ser muito
específica, a Microsoft avaliou que no exterior “os usuários também expressavam
preocupações relativas ao armazenamento de seus dados nos Estados Unidos,
porque tinham a impressão de que o governo norte-americano poderia acessá-los
livremente”. Antes de concluir: “Os Estados Unidos e os outros países devem
levar em consideração o impacto de suas políticas nacionais” sobre o resto do
mundo.3 Mais tarde ficamos sabemos que a empresa fundada por Bill Gates
colaborava com a NSA, ajudando a contornar softwaresde criptografia e a
interceptar e-mails, conversas no Skype e outros serviços on-line hospedados
pela transnacional.4
Censura e hierarquização dos
conteúdos
Na corrida da hipocrisia, o
Google não é exceção. “Proteger e promover a circulação de informação e a livre
expressão são valores fundamentais do Google”, vangloriava-se a corporação em
2010; ela protestou contra “os Estados [que] introduzem ferramentas de
vigilância em sua infraestrutura de internet” e pediu aos Estados Unidos,
“berço da internet”, que “continuassem encarnando um exemplo de regulação
responsável, que permite a indivíduos e empresas beneficiar-se da livre
circulação da informação digital”.5 O Google havia, há muito tempo, negado à
NSA o acesso a seus servidores, mas recentemente um documento em PowerPoint da
agência de segurança a desmentiu: o gigante da busca on-line teria, sim,
colaborado com o serviço de inteligência norte-americano, assim como Yahoo,
Facebook, Apple, America on Line (AOL) e Microsoft.6
Grupo de pressão influente que
reúne empresas de todos os tamanhos (e US$ 200 bilhões em receitas anuais
combinadas), a Computer & Communications Industry Association (CCIA) também
mostrou uma posição virtuosa: “Devemos reconhecer que a liberdade da internet
começa em casa”, declarou à comissão. “Devemos desencorajar a censura, a
vigilância, o bloqueio e a hierarquização de conteúdos. Se tais procedimentos
forem inevitáveis, devem ser limitados no tempo, utilizados da maneira devida e
com toda a transparência. Por fim, não devemos nos transformar em polícia da
internet no lugar dos outros intermediários técnicos on-line [sites de
hospedagem, fornecedores de acesso]. Se os Estados Unidos não puderem manter
uma internet livre e aberta, é pouco provável que outras nações o façam.”7
O efeito bumerangue da vigilância
O alvo óbvio desses comentários
era um projeto de lei que submeteria os intermediários da internet a novos
controles draconianos. Após dois anos de luta, o texto foi finalmente
enterrado. Em retrospecto, no entanto, as observações dessas empresas ao
Departamento do Comércio parecem fortemente direcionadas a interesses próprios.
Ao contrário da NSA, a Microsoft, o Google e as outras anteciparam o efeito
bumerangue dos programas de vigilância norte-americanos que, uma vez
descobertos, não prejudicariam apenas Washington, mas também a reputação dessas
transnacionais e, portanto, seus interesses econômicos. O desafio é
considerável, pois, como destaca a CCIA, “quando discutimos livre circulação de
informação na internet em nível global, estamos falando de milhares de bilhões
de dólares”.8
Muitos países controlam as
atividades on-line de sua população, mas os Estados Unidos o fazem numa escala
jamais alcançada, transformando-se em “Estado de vigilância global”, nas
palavras do especialista Tom Engelhardt. E com a cumplicidade de muitos atores,
dos sites de busca às páginas de compras on-line, das redes sociais às
operadoras de telecomunicações. Para mudar essa direção, seria preciso retomar
os debates de 1970-1980 sobre a necessária responsabilidade democrática das
redes de telecomunicações.
Dan Schiller é professor de
comunicação na universidade Urbana-Champaign (Illinois), autor de How to think
about information, University of Illinois Press, Chicago, 2006.
Ilustração: Alpino
1 “Global Free Flow of
Information on the Internet” [Livre fluxo global de informação na internet],
Departamento de Comércio, Registro Federal, 75 (188), Washington, 29 set. 2010.
2 Relatório da TechAmerica à
comissão de inquérito “Global Free Flow of Information on the Internet”,
Departamento de Comércio, 6 dez. 2010.
3 Relatório da Microsoft à
comissão de inquérito “Global Free Flow of Information on the Internet”,
op.cit.
4 Glenn Greenwald, Ewan
MacAskill, Laura Poitras, Spencer Ackerman e Dominic Rushe, “How Microsoft
handed the NSA access to encrypted messages” [Como a Microsoft entregou à NSA o
acesso a mensagens criptografadas], The Guardian, Londres, 11 jul. 2013.
5 Relatório do Google à comissão de inquérito
“Global Free Flow of Information on the Internet”, op.cit.
6 Charles Arthur, “Google is not ‘in cahoots
with NSA’, says chief legal officer” [Google não faz “conluios com a NSA”, diz
diretor jurídico], The Guardian, 20 jun. 2013.
7 Relatório da Computer & Communications
Industry Association à comissão de inquérito “Global Free Flow of Information
on the Internet”, op.cit.
8 Idem.
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