De como o Brasil se desenraizou da Igreja Católica e aderiu
ao salvacionismo de auditório
Candido Mendes
Da crença ao rapto eletrônico
A história da subcultura nos países subdesenvolvidos vive de
uma dinâmica de desgarre, de frustrações e sobressaltos de um quadro histórico
desamparado da consciência crítica; de inércia crescente das elites instaladas
e de crescimento vegetativo da população no fluxo dos eixos migratórios,
tangidos pela busca de oportunidade de trabalho.
O evento evangélico recente colhe essa nova decantação
social em que se desenraizou o apelo matricial da Igreja Católica, e vinga uma
convocatória às satisfações imediatas das expectativas coletivas, de
retribuições simbólicas que permitem a acolhida eletrônica de massa e o
salvacionismo de auditório. Esse
evangelismo colhe a marginalidade errante do país, num simulacro da liturgia
católica, mas na tangibilidade de retribuições, nas interações de
reconhecimento comunitário. Desde os seus bispados ostensivos – em confronto
com a modéstia do pastoreio luterano – até o mais solene e elaborado dos
dísticos, seus letreiros pateticamente góticos, buscando um intemporal do
recado, e de sua convocatória em nossos dias.
Nas faixas exaustas de destituídos em toda a América Latina,
despertaria assim um chamamento, como o evangélico é um fenômeno estrito da
nossa subcultura e da sua exploração como um dado da mudança brasileira, no
empreendedorismo desenvolto da igreja do bispo Macedo e similares. Nesse quadro crítico, estão nos
neopentescostismos denominações como a Universal do Reino de Deus, o “Evangelho
Quadrangular”, “Deus é Amor” e a “Casa da Bênção”. Esses comportamentos se distinguem do empenho
das demais redes particulares de ação tão fecunda e consequente no avanço da
dignidade humana entre nós. A Universal vai à convocatória da fé num país de
destituição radical, como uma commodity literal, a ser vivida, nas suas
compensações simbólicas imediatas, e na reiteração quase que terápica de suas
certezas.
Esse protagonismo sintetiza as complacências de uma
subcultura no campo da crença que a desses autodenominados pastores, da igreja
do bispo Macedo, sem qualquer explicitação de suas credenciais, alinhados pela
repetição de seus formulários, no mais elementar das prédicas, entoados do
Amargedon, periódico dos estádios, à reunião enfarpelada nos seus templos.
Obedecem à retórica de um congraçamento do curandeirismo da alma, que não
chega, sequer, a precisar dos lances de uma terapia de grupo, que marcaria, por
exemplo, o evangelismo dos grupos desvalidos nos Estados Unidos.
Historicamente, a pregação de Edir Macedo remeter-se-ia aos
pastores do Deep South e às “opções por Cristo” nos estádios americanos. E é de imediato que ela ganhou extrema
criatividade, no trinômio de “pregação, sideração e controle”, pelo qual esse
evangelismo emergiu como fenômeno genuinamente brasileiro nas culturas de orla,
ou de marginalidade, do país dos excluídos.
O evangelismo se concentra numa tônica que é, de fato, a do
anúncio da assistência divina direta, para além, inclusive, de qualquer
escatologia de vinda do reino, traduzível na mudança da situação imediata, de
opróbrio ou destituição. Nada de comum
nessa pregação acomodatícia, inclusive, à Teologia da Libertação e de um
profetismo prospectivo que acontecia paralelamente no catolicismo brasileiro.
Terapia e possessão do imaginário
O neopentecostalismo do bispo Macedo no Brasil descarta toda
experiência comunitária pela presença reiterativa, na batida do cantochão, de
uma militância elementar, que prescinde de qualquer rito iniciático ou leitura
interior. A vivência da esperança se
troca no incitamento das palavras de ordem, e todas elas da convocação à
presença e ao bordão-chamamento de Jesus, como tentativa vocabular, que
extravasa da ladainha católica para a possessão verbal obsessivamente
reentoada. Só se interrompe num transe pelas próprias palavras de ordem em que
o cerimonial religioso se cumpre, na presunção da sua saciedade, a jamais
superar a disciplina de seu gestual primário.
E é como espetáculo, também, rigorosamente administrado, que se cumpre
essa liturgia básica das rações outorgadas ao seu imaginário, e do ritual das
curas das interseções do sobrenatural; no resultado, ou na programação rígida
de seu desfecho, ou ainda na premissa da credibilidade limite indiscutível, nas
aparições demoníacas à hora certa.
O rebanho, assim cantonado, verte-se à disciplina dos
deveres, ao óbolo obrigatório e fica como o laço ostensivo de seu sacrifício
por definição irrenunciável, e a permitir a tranquilidade econômica da
Universal. Não se trata mais da
espórtula em que a Igreja, por demais instalada, permite a liberdade da coleta
católica na dádiva da missa.
Cura; sideração; exorcismo
O que importa, sim, é o valor siderante do possível contato
direto entre o aflito e Deus, traduzido no espetáculo continuado das curas, a
que deve dar lugar toda reunião da Universal. O hinário se contrapõe
imediatamente às gratulações e aos agradecimentos dos assistentes, no
entrecortar entre os améns, as citações trituradas, à catadupa, de versículos
bíblicos e o entoar da gratidão pelo miraculado da hora, acompanhado de todo um
coro ad hoc dos assistentes.
O contágio é instantâneo, e se faz todo no hinário ovante e
gratulatório que é o do sursum dos circunstantes. Não há discurso, ou raciocínio, ou,
literalmente, sessões de interpretação conjunta, ou de reflexão sobre o
conteúdo bíblico. Ele é todo um despejo
de roldão da palavra, sinalizada exatamente pelo seu hieraticismo, de que o
pastor é um servidor orante, mais que um intérprete do seu conteúdo, ou de
qualquer didática genuinamente apostólica da sua aplicação.
Não se trata de colocar o destituído num imaginário opulento
de participação do evento de Cristo, ou da espetaculosidade continuada do Novo
Testamento. Mas da sensação, tão cutânea quanto irrefugável, de se estar diante
de um milagre iminente, da cura em que é, sobretudo, o sentimento de merecer-se
aquele momento o olhar rigorosamente intuita personae de Deus, que se torna
incomparável ao resgate da autoestima do beneficiário da graça e da
sacramentação dos améns à sua volta.
No ápice de todo esse espetáculo estão, por força, para além
das curas, os exorcismos. E não se
economiza no cerimonial, e na coreografia pesada, com resultado simultâneo, de
domesticar o estarrecimento, e exigir, até, uma pontualidade rotineira, no que
seria essa convocação do demônio frente à plateia dos crentes. Tal como se, entre a cura esperada e o seu
clímax, se mantivesse um contínuo do espetáculo, em que o fluxo todo da
interação, no aponte do milagre e seu agradecimento, passasse à disciplina do
escarmento do demo domado.
Na prova da frequentação do sobrenatural, de todo retirado
de qualquer transcendência, como espécie de assinatura repetida, assenta-se o
campo de crenças em que se baseia a Universal e a ponte que abre, pelas mãos e
os gestos dos pastores, com um mais-além desse cotidiano paupérrimo. É o do vale de lágrimas transformado em feira
de prodígios, a que o comparecimento programado do demônio empresta a
reiteração continuada da credibilidade, em todo esse domar-se pela docilidade
do abominável ao látego dos pastores do Reino de Deus.
O chão da cena se torna cada vez mais a do espetáculo
sovado, todo suprido pela cantilena gratulatória. Da trívia, trivialíssima, das curas, e do
mesmo amém que as consagra, até a pontualidade rigorosa da expulsão do espírito
impuro.
A fidelidade do povo à Universal se consolida, pois, toda
entre o performático continuado, e exigido pelo rito do espetáculo, a
tangibilidade das contribuições e a prática cada vez mais intensa dos
devassamentos da alma, coram populo. Não há confissões, mas estímulos aos
crentes para que abram o coração em público e façam da proclamação das suas
ditas misérias ou vergonhas um testemunho do advento da cura espiritual. Essa,
dos testemunhos da hora que aprisionam tal como criam uma espiritualidade
promíscua nascida das comparações das narrativas e de uma adesão estridente aos
receituários da alma.
Missionarismo e mimetismo
É também desnecessário salientar o quanto a corrente da cura
nas assembleias não vai só à espórtula compulsória de sustento da igreja, mas à
absoluta fidelidade à palavra do pastor, no que comande as ações, no corrupto
mundo dos homens e, sobretudo, no exercício do voto.
A Universal, por outro lado, adotando por inteiro como sua
menagem espiritual a virtualidade do universo mediático retratou, pelo mesmo
espelho, a sua organização na réplica do aparelho e da visibilidade
institucional da Igreja Católica. São os bispos os apóstolos dessa
colegialidade, tão nítida quanto difusa, na ambiguidade procurada do pastoreio
desse evangelismo. Sem explicações a
dar; peremptória no aconselhamento, em aparência compassiva, como o dos
consultórios sentimentais; solene em qualquer circunstância, refletindo muito
mais que a acolhida do fiel à reiteração da distância com o pastor. Nem esse, via de regra, consegue chegar mais
ao coloquial do contato, tanto é um vocativo imaginário que soleniza o
dirigir-se ao outro. A continuidade do
discurso é de um versejar à distância, quase que em eco de uma impostação
inevitável – com tropeços, pausas, mudanças de registro – do arcano bíblico, no
que, afinal, se torna uma liturgia remota, a cercar os fiéis.
Os vocativos quebram e reaglutinam esse linguajar, numa
surdina sempre, de como se entende a palavra das Escrituras, ou o levantar de
voz nesses páramos, em toda a passividade do rebanho. Pastores ou bispos, sempre cativos desse
cenário virtual, não falam dos degraus de pedra, de altares ou púlpitos, mas já
diante da população mediática, sobre a qual investem com o desatavio e o monocórdio
da litania.
No papel que desempenha, hoje, a Universal, define-se o
avanço no controle da coletividade pelo anúncio evangélico. Neles, o anúncio, refeito ao profetismo
doméstico, tão sumário quanto ameaçador, instala-se na passagem, da deferência
clássica devida aos pastores, ao misto de temor e veneração curandeira, de uma
relação de dependência buscada a cada lance interativo.
Conservadorismo e mudança
Não se trata só, entretanto, de definir esses jogos de
correspondência, mas de atentar de que forma o laivo religioso repercute nesses
grupos, em tom de uma política pública apontando para a mudança ou o
conservadorismo. O lineamento geral é do
extremo da conduta ainda típica de um atentismo de clientela, em que a tônica
do voto é a de obter, em contrapartida, vantagens institucionais ainda das
igrejas, como um aparelho de fruição de favores específicos de seus dirigentes.
Não é possível encontrar-se uma correspondência entre essa
mensagem neopentecostal e a alteração das estruturas sociais vigentes. Nenhum vento da reflexão católica,
especialmente após a lufada do Vaticano II, levando a algo de parecido com a
opção preferencial pelos pobres, ou a ideia de poder a estrutura social ser
objetivamente contrária à promoção dos homens. Nem se registra o aponte de uma política
de rebalanceamento das condições mínimas de acesso do povo de Deus aos bens
coletivos, da renda ao acesso aos serviços sociais ou assentamento da terra.
Logra-se, sim, uma negociação, via de regra intuita
personae, de representantes localizados dessa bancada, em função de benefícios
para suas igrejas, em que assume capital importância a política evangélica na
concessão de canais de televisão, ou facilidades fiscais na importação de
equipamentos, ou na clássica demanda – em que se associam as deputações
católicas – por atestados de filantropia e por outras vantagens fiscais.
O contrabando da prosperidade terrena e o mais-ser dos
homens
No ideário global, frente às condições de bem-estar
coletivo, ou de relembrar a promessa do Reino de Deus, as denominações do
evangelismo de massa adicionam a ortodoxia da pregação de Cristo ao compromisso
classicamente protestante da garantia da prosperidade nesse mundo. É como uma passagem à cultura saxônica, e à
identificação weberiana do justo como o próspero no mundo, ficando a riqueza
como sinal do placet divino ao cristão assim justificado aos olhos do Criador.
Cada vez mais essa prosperidade objetiva se soma ao
ementário milagreiro, sem que se faça qualquer distinção entre obtenção de
condições de bem-estar coletivo, condizente com a lição libertadora do
Evangelho, de par com o bem-estar na vida transeunte. Ou seja, com o manancial da abundância de
bens crassamente materiais, tal como se estendesse à orla do Brasil da
marginalidade, e da audiência da Universal o mesmo ideário dos Robber barons
americanos, ou do impulso à justificação pela prosperidade material,
característica do nervo puritano responsável pela opulência dos Estados Unidos.
O que importa, nesse particular, é hoje saber-se, na linha
do impacto, até para além da mensagem, de que forma esse evangelismo, passado
das liturgias hirtas das igrejas à bacia das almas do pastoreio eletrônico,
repercute no inconsciente coletivo brasileiro; concorre, ou não, para a sua
promoção; é, pelo seu poder de contágio, alavanca também de um possível
mais-ser do homem todo e de todos os homens, em que, afinal, o impulso básico
do cristianismo não tem gentios, mas congrega, no apelo de Paulo VI, todas as
fés à Boa Nova indemolível da maior humanidade, aqui e agora, do povo de Deus.
Indiscutivelmente, na receita do miraculado, no amém do coro
de fiéis, na intercessão ad hoc de cada cura no cuidado e no afinco do pastor,
o crente se vê reconfortadíssimo na sua vivência de pessoa. Sai de toda condição de ser derelicto, ou
imprensado na massificação de todas as abjeções, de toda entregue à inércia do
cotidiano, a seu cinzento e a seu perder-se de viver, no anonimato, em que a
quebra da espera é, ao mesmo tempo, a necrose da esperança.
Nessa cura, tantas vezes simulada, no faz de conta dessa
intercessão, tudo é verdade no gesto. Ou
na ritualística de especificação de reconhecimento e ressalto. De terapia, pois, inegável, de uma
personalização do beneficiado que soma, muitas vezes, como uma explosão do
reconhecimento íntimo, em bem da dignidade escalavrada e recuperada do crente,
assim reconhecido na assembleia de seus iguais.
A certeira prática da autoestima
As assembleias-terapias da Universal são todas
indiscutivelmente lugares do egrégio, ainda que fugacíssimo, tanto quanto curas
e exorcismos, verdadeiros, ou não, assimilam-se no que importa ao levantamento
interno do ego, que é o cerimonial no que importa ao levantamento interno do
ego, que é o cerimonial à ribalta enorme, a quebra entre um antes e após, no
momento de um indiscutível sursum. Em
cada um desses améns e desse olhar para o alto dos oficiantes do culto, repercute
a mesma imensidão dos estádios de Billy Graham, e do gesto dramático por
excelência, protagonizador de ruptura e reinauguração – que é o passo por
Deus. É quando se ponteiam, um a um, no
cenário enorme, a vontade de um renascer em Cristo, na prodigalização de uma
outra vertente batismal, que é o simbolismo já, no espetáculo de massa, da
ruptura do corte entre um antes e um depois, no mofino da vida, da
marginalidade ou das contradições, na pobreza de eventos – em que, de toda
forma, se articula uma possessão do futuro pela vontade dessa decisão
fundadora.
Dentro das liturgias de engaste – desse momento pleno – que
pode ocorrer a qualquer um e que se promete a todos –, na iminência e no
advento do milagre –, força-se o ritual da retribuição. Essa que se exprime pelo óbulo, mais que pelas
meras espórtulas, tão mais insuscetíveis de quebrar a cadeia do dar em dinheiro
a que cada um se compromete, e tanto mais o cumprem os fiéis quanto mais parcas
são as suas rendas, ou dramática a sua miserabilidade.
O mais importante, entretanto, hoje, é saber-se qual é o
registro final, dentro de uma avaliação do quadro da destituição brasileira; do
limite da marginalidade, do encontro do outro; da cultura do medo, a decidir-se
sobre a do egoísmo; do inenarrável das distâncias do país do status quo. Como, afinal, estão obrigados a convergir os
anúncios na matriz evangélica, uma espiritualidade como a do pós-Vaticano II,
em todo o seu enorme trabalho dialético da Igreja versus populo. E o que possa ser, na aridez desse solo, de
todos os espantos e de todas as prostrações, o missionarismo mediático,
inseparável de toda economia pro domo sua, que se substantiva também – no trato
da destituição social?
Por linhas travessas, o pastoreio eletrônico e o da igreja
na voz dos seus pastores convergem num jogo que não é de soma zero. O desvalimento é tal – em terra de desolação,
como Jacarezinho, Vigário Geral ou os acampamentos de lixo da Baixada – que só
pode emergir um efeito, in bonis, do que já é tal, por chegar a tocar o abissal
da destituição. Soma-se numa mesma
cadeia o quase nada, ou o muito, ou o feito do cálculo, no gesto que interrompe
o abandono, seja por figuração ou efetiva chegada ao outro.
O preço do consumismo da alma
São múltipas as formas, os estratos e os graus dessa enorme
terapia ou didática da toma de consciência, que é o nervo de qualquer política
de promoção social, venha de qualquer quadrante. Toda busca hoje dos “sinais dos tempos”
encontra as pontas de um mesmo fio, frente ao peso morto da inércia coletiva
que afunda toda arquitetura de um mais-ser da modernidade.
A contribuição no culto do bispo Macedo é inescapável, feita
coram populo, nesse coletivo massageante da esperança laicizada da
religiosidade, mas em reconhecimento instintivo do clamor dos destituídos. É
significativo que esse evangelismo se tenha transformado no contraponto da
outra alternativa em que, num país subdesenvolvido, desperte a subjetividade do
excluído, na ruptura de exploração radical de um viver alienado, imerso no
inconsciente coletivo. Tanto esse evangelismo
existe exemplarmente no Brasil como só no nosso país acordou, no mesmo quadro
de desvalimento, o PT enervando-se de imediato de um protagonismo político,
para superar uma condição de vazio social, sem acesso ao mercado de trabalho, e
condenado às condições vegetativas de uma subsistência errática.
Chama a atenção o quanto essa marginalidade crônica,
amortecida na inércia envolvente, retarda a iniciativa diretamente política da
ruptura. Ou, por outro lado, como se
rende esse destituído à passagem da esperança à infinita transação da
espera? No evangelismo de massa
repete-se assim a terapia frente a uma mesma pobreza histórica e multissecular,
em que o proletariado romano se domesticava à ração exata do pão e do circo.
É pela remuneração imperativa que o evangelismo do bispo
Macedo captura o desmunido, na troca, pela paga imediata do dízimo, dos
consolos sumários na repetição infindável do espetáculo, e na simulação da
verdadeira comunidade brotada para a “toma de consciência”, trocada pela do
prófugo, ou do anulado como marginal.
Enfim, o evangelismo político
Numa dinâmica agregada da subcultura brasileira, a
organização da empresa evangélica pode ganhar a sua própria dinâmica e
enveredar para novos graus de controle coletivo, e da previsível dominação
subsequente. A religião mediática ruma para a presença política e a exploração
de seu poder maciço sobre mentes e almas e, portanto, intenções eleitorais, na
transformação em força política unitária, em pleno aproveitamento das
oportunidades de voto de uma democracia.
Tanto o PT manteve a transparência da primeira mobilização –
e a decepção uma primeira entrada na realpolitik – como o evangelismo político
está apenas na sua nascente, e abre dimensões até hoje insuspeitas sobre o que
possa ser a fidelidade desses eleitores aos governantes que venham a escolher.
Depara-se, por aí, um reverso tenebroso de todas as tertúlias e demandas da
relação entre Igreja e Estado nos quadros das sociedades democráticas
contemporâneas. Mantidas isoladas as expectativas do que seja de Deus e de
César, o nível de interferência religiosa na política dar-se-ia sempre de
maneira incidente, e no plano das chamadas questões mistas (matéria relativa à
família e à educação), seus avanços e recorrências, cujo amplo e conhecido dossiê
de reivindicações acomoda a Igreja Católica ao Estado leigo e seus poderes em
nossa modernidade. O novo agora se marca pela conjugação inversa desses dois
extremos. Cada vez menos tem a ver com a satisfação de interesses objetivos da
militância da população evangélica, trazida ao voto e ao sonambulismo como
massa eleitoral, para o estrito benefício de seus dirigentes.
O catolicismo, de fato, permitiu todo o intercâmbio aberto
entre o poder e o rebanho no que entendesse como a sua melhoria na sociedade
civil. O evangelismo do bispo Macedo se concentra nos benefícios simbólicos de
estrito consolo de cada um, dissociando-se, por inteiro, de qualquer interesse
de bem comum na conduta política, vendo nesta, apenas, uma rotina que se
adiciona, neste elenco, ao projeto de poder que administra. Seu êxito é o de
que acolhe os rejeitados do sistema, destituídos, por inteiro, de uma
sensibilidade à ação de mudança, e entregues à ritualística dessa compensação.
Os templos góticos da Igreja Universal e suas grafias heráldicas alongam um
imaginário religioso saciado no seu horizonte, na estrita demanda dos ritos
inalteráveis de conformismo coletivo. É
por aí mesmo que uma síndrome da subcultura pode chegar a transações perversas
– e talvez definitivas – com esse próprio sentimento de um “mais ser” e sua
conquista, pela pessoa, como um protagonismo de crescente liberdade. Esse neopentecostalismo a troca, ao
contrário, por um entorpecimento de toda reflexão coletiva, pela addiction mais
grosseira da terapia religiosa.
Essa clara tensão interna no neopentecostalismo, com a
chegada da Universal ao jogo frontal de poder, contrastará com toda a tradição
do que a Igreja Católica, e especialmente a partir do Vaticano II, situa como
uma efetiva política de desenvolvimento social nos países das periferias ou dos
destituídos, de onde está hoje saindo o Brasil. O catolicismo brasileiro não se
expande apenas nas áreas do seu enraizamento multissecular, como as do Nordeste
e da nação rural, mas também no país que saiu da marginalidade, hoje, com o
“povo de Lula”.
O trabalho da Pastoral, na sequência da Teologia da
Libertação e do profetismo de D. Hélder, é hoje o responsável pelo maior viço
comunitário da nossa mobilidade social, e pela tomada de consciência cidadã
para a mudança. Esse ímpeto continua na
liderança que a Igreja mantém na busca do ecumenismo e, exatamente nele, e sem
o proselitismo intransitivo das Universais, no avanço de uma plataforma dos
direitos humanos, ou de uma visão ecológica, subordinada à prioridade da luta
pela justiça social e à expansão dos movimentos sociais.
Não é sem razão que o Programa da “Ficha Limpa” mereceu todo
o apoio da CNBB, e a exigência da reforma política tenha, entre os católicos,
toda a prioridade, em contraste com o conservatismo e situacionismo
neopentecostal. Na grande toma de
consciência, que é a marca, hoje, do Brasil que emerge, o clamor do Vaticano II
continua, de par com o repúdio à riqueza concentrada e ao progressismo
desatento ao salto do desenvolvimento.
O articulista é reitor da Universidade Candido Mendes e
membro da Academia Brasileira de Letras
cmendes@candidomendes.edu.br
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