“Apoiar Snowden representa colocar a dignidade, a
privacidade, a liberdade e o direito à autonomia dos povos acima das razões do
Estado”, afirma o cientista político
Por Andriolli Costa,
Do IHU-Onilne
Em carta aberta ao povo brasileiro, publicada nesta
terça-feira (17), o ex-agente da Agência de Segurança Nacional - NSA, Edward
Snowden, manifestou interesse em vir para o Brasil.
Perseguido pelo governo dos Estados Unidos e confinado em
seu asilo na Rússia, Snowden se dispôs a colaborar com as investigações sobre
os abusos cometidos pela vigilância massiva estadunidense, que teve como alvo
diversas lideranças políticas, agências e empresas brasileiras.
Alertou: “Até que um país conceda asilo político permanente,
o governo dos EUA vai continuar a interferir em minha capacidade de falar”. No
mesmo dia o Itamaraty recusou o pretenso pedido, alegando não ter interesse em
“dar o troco na NSA”. Na quarta-feira (18), a presidenta Dilma Rousseff também
se manifestou negativamente. "Não me encaminharam nada, não me pediram
nada, não interpreto nada. Não vou falar sobre isso", disse ela.
Para o cientista político Sérgio Amadeu, no entanto, o apoio
a Snowden não indica uma postura revanchista, mas de solidariedade e
valorização do papel histórico executado pelo ex-agente, da defesa do direito à
privacidade, liberdade e autonomia dos povos. “As pessoas podem ter mil causas
para defender o Snowden, mas todas elas são dignas. Abandonar Snowden é uma
causa indigna”, defende ele. “As razões de não dar asilo a Snowden são
racionalmente compreensíveis, mas eticamente inaceitáveis.” Mesmo que o
ex-agente não seja capaz de efetivamente deixar o território russo, a simples
reação positiva do Estado brasileiro representaria uma recusa simbólica às
violações e abusos aos direitos do povo.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Amadeu
defende uma série de medidas possíveis para assegurar a segurança nacional.
“Não precisamos do Snowden para saber que o sistema operacional daPresidência
da República não deve ser o Windows.” Segundo ele, o Brasil tem a competência e
a capacidade de desenvolver tecnologias de armazenamento e correspondência
seguras, de código aberto e auditáveis, de modo a não nos tornarmos reféns de tecnologias
e soluções estrangeiras sem qualquer comprometimento efetivo com o governo
brasileiro. “Há muitas medidas concretas que podem ser tomadas dentro do Estado
brasileiro. Segurança não é comprar produtos; segurança é um processo contínuo
de inteligência na área de informações”, aponta.
Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política pela Universidade
de São Paulo – USP, participou da implementação dos Telecentros na América
Latina e da criação do Comitê de Implementação de Software Livre – CISL. Também
foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI da Casa
Civil da Presidência da República. É professor na Universidade Federal do ABC –
UFABC. É autor de, entre outros, Exclusão digital: a miséria na era da
informação (São Paulo: Perseu Abramo, 2001); Software Livre: a luta pela
liberdade do conhecimento (São Paulo: Perseu Abramo, 2004) e Comunicação
Digital e a Construção dos Commons: redes virais, espectro aberto e as novas
possibilidades de regulação (São Paulo: Perseu Abramo, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Apesar da carta aberta de Snowden, o Itamaraty
afirmou que não tem interesse em “dar o troco” na NSA e dar asilo a Snowden em
troca de informações. Como você enxerga essa decisão?
Sérgio Amadeu - É uma resposta muito triste esta
doItamaraty, especialmente porque a espionagem dos Estados Unidos não tinha
interesse apenas em controle e dominação política, mas também em benefícios
econômicos. Conceder asilo a Snowden não é uma questão de “dar o troco”, mas de
solidariedade, de reconhecer seu papel histórico na sociedade mundial.
Acho que é uma posição completamente equivocada da
diplomacia brasileira — que em geral tem posições boas. Mesmo em momentos
autoritários o Brasil nunca foi uma mera corrente de transmissão norte-americana.
Nós já coordenamos votações contra os Estados Unidos, já rompemos acordos
prioritários, e é lamentável que não tenhamos mantido nossa posição agora,
justamente em um momento em que tanto os Estados Unidos quanto a Inglaterra
instituem uma diplomacia do cinismo.
Julian Assange, por exemplo, está preso em uma embaixada
equatoriana não por ter denunciado assassinatos ocultados pelas tropas e pelo
departamento de Estado americano, não por ter vazado informações, mas por
acusações de crime sexual na Suécia. É o fim da picada. Se a opinião pública
mundial dos países democráticos perderem Snowden para uma prisão
norte-americana, eu diria que este seria um século XXI pior do que deveríamos
ter. Teremos um século onde um Estado como o norte-americano se institui como a
polícia do mundo; uma polícia autocrática que mente, assassina, interfere na
vida das pessoas.
IHU On-Line - Em que medida a postura do Itamaraty contribui
para uma sociedade mais livre, longe daespionagem e da vigilância de Estado?
Sérgio Amadeu - A medida do Itamaraty é equivocada. Uma
resposta adequada seria simplesmente dizer que, em defesa da coerência do
discurso da presidenta Dilma na ONU, que dava conta de um pacto contra o
vigilantismo em massa do mundo, em defesa da autonomia dos povos e do respeito
à dignidade e aos direitos humanos, estamos mostrando para a maior potência do
mundo que somos solidários a Snowden. O Brasil tem de deixar claro que não vai
permitir tamanho absurdo, que é a supremacia da violação massiva de direitos.
IHU On-Line - A primeira chefe de Estado a defender a
internet livre e o respeito à privacidade na ONU foi a presidenta Dilma
Roussef. O que há de contraditório entre a postura de Dilma na ONU e a postura
do Itamaraty?
Sérgio Amadeu - O Itamaraty agiu em nome das ações do Estado
brasileiro e da diplomacia em um mundo tenso. Ele decidiu não arriscar as
relações econômicas com os Estados Unidos para fazer solidariedade a uma pessoa
nitidamente contrária à política internacional americana. Então ele agiu com um
pragmatismo completamente distante de uma política de paz, de diversidade
cultural. A solidariedade a Snowden pode ser um sinal para esses estados
mudarem a sua política. Pode igualmente ser um sinal positivo de um país que
tem uma democracia muito mais estável do que a norte-americana, que vive em
permanente estado de exceção.
IHU On-Line – Qual seria uma resposta à altura para a
espionagem dos Estados Unidos?
Sérgio Amadeu - Uma das respostas à altura, na minha
opinião, seria primeiro dar cobertura a Snowden e tentar trazê-lo da Rússia
para o Brasil — coisa que não seria simples, pois a aeronave ou embarcação
seria interceptada pelas forças norte-americanas. Uma segunda ação seria fazer
uma denúncia contundente da política norte-americana de vigilantismo em massa,
além do que a presidente fez. Externar claramente na assembleia geral da ONU os
detalhes desta agressão que nós sofremos. Assim, a medida de propor um acordo
internacional e trabalhar por esse acordo, junto com a medida de dar asilo,
mostrar interesse em proteger e ser solidário a Snowden, seriam boas respostas.
Os Estados Unidos têm muita força, mas temos que começar a inverter isso.
IHU On-Line – Você concorda que se o Brasil tivesse aceitado
o pedido de asilo de Snowden, esse ato seria encarado nos EUA como revanchismo?
Sérgio Amadeu – Poderia, sim. Afinal, os Estados Unidos são
o país que mais entende de revanche no mundo. Mas os EUA não teriam como
repreender esse possível ato brasileiro. Eles não teriam condições de dizer que
o Brasil faz parte do eixo do mal. O Brasil não dá guarida a terroristas, não
tem em seu território operações militares antiamericanas, não tem interesse
expansionista na América do Sul e em nenhum lugar do planeta. Logo, o Brasil
não é um país que coloque em risco qualquer elemento do conceito de segurança
norte-americano. A revanche brasileira ficaria difícil de ser sustentada como
algo que requer uma retaliação, como foi o caso da perseguição do líder da
Al-Qaeda. A cultura americana é belicista, isso nós entendemos, mas não podemos
aceitar. Não podemos achar bonito que os americanos se vangloriem de atacar
qualquer lugar do mundo. Isso não é normal e aceitável para uma cultura
democrática que pretende ser pacífica e tolerante.
Snowden representa o que há de melhor na sociedade norte-americana.
Porque esta sociedade não é feita só por esses grupos de crença puritana, que
acham que estão predestinados a comandar o mundo. O Snowden vem de um espírito
de tudo o que tem de mais rico nesta cultura.
A cultura americana é muito rica; lá nasceu o movimento
hacker, o software livre, a internet, ojazz e várias situações de práticas
recombinantes. Então, temos de entender que o Snowden representa essa parcela
da população norte-americana.
IHU On-Line – No mesmo dia em que o asilo foi negado, foi
criada uma petição pública no Avaaz que rapidamente atingiu milhares de
assinaturas solicitando que o Brasil aceite a vinda de Snowden. Como encara
esse tipo de manifestação de apoio? Ela representa a conscientização e atenção
do povo brasileiro para este tipo de assunto ou é reflexo de uma onda
estimulada pela internet?
Sérgio Amadeu – Se for uma onda, é uma onda extremamente
importante no plano político nacional e internacional. É fundamental que a
opinião pública se manifeste. As pessoas podem ter mil causas para defender o
Snowden, mas todas elas são dignas. Abandonar Snowden é uma causa indigna. Ela
vem do receio de enfrentar ou de criar uma situação inconveniente para com os
Estados Unidos. As razões de não dar asilo a Snowden são racionalmente compreensíveis,
mas eticamente inaceitáveis. Então, não importa por que um jovem, um adulto ou
uma mulher assinem esta petição. O Snowden representa colocar a dignidade, a
privacidade, a liberdade, o direito à autonomia dos povos acima das razões do
Estado, e isso é extremamente relevante. Se existe uma onda, devemos
incentivar.
IHU On-Line - Snowden afirma que poderia auxiliar o Brasil
nas investigações sobre a suspeita de crimes cometidos pela NSA contra cidadãos
brasileiros. Acredita que ele teria com o que colaborar ou o seu aceite seria
muito mais de ordem simbólica?
Sérgio Amadeu - A vinda dele seria muito mais simbólica. É
claro que ele poderia dar uma colaboração, mas eu não vejo como nosso interesse
esse tipo de investigação. O Brasil não tem uma política imperialista, mas sim
de defesa da liberdade democrática e de direitos. A medida mais adequada é
voltar-se para a segurança nacional da informação, apesar de o governo ainda
continuar tratando empresas americanas, como a Microsoft, como empresas quaisquer.
Eu falo da Microsoft porque ela está querendo vender para os Estados Unidos uma
nuvem de segurança, e é possível que o governo realmente adquira esse produto.
IHU On-Line - Você acredita que a Microsoft poderia enviar
dados sigilosos para a NSA?
Sérgio Amadeu - Pode e, de acordo com as denúncias do
Snowden e as notícias divulgadas em vários jornais, é o que acontece. A empresa
atua em diversos projetos junto com a NSA. É claro que as empresas que fornecem
equipamentos de comunicação têm que colaborar com o governo americano, porque a
lei manda. Não precisamos do Snowden para saber que o sistema operacional da
Presidência da República não deve ser o Windows. Agora nós estamos em um
momento em que é possível desenvolver tecnologias auditáveis, que são abertas e
que podemos ter domínio completo sobre elas — ou, pelo menos, um domínio maior.
No caso do armazenamento em nuvem e e-mail seguro, também temos condição de fazer
isso. Então qual é o problema? O problema é que lamentavelmente existe um lobby
pesado que penetra na burocracia brasileira.
IHU On-Line - Quais medidas podem ser tomadas para maior
segurança da informação caso haja um planejamento adequado?
Sérgio Amadeu – Primeiro, temos que buscar utilizar
softwares nas máquinas das autoridades mais visadas, que trabalham com
informações sensíveis, que possam ser auditadas por técnicos da nossa inteira
confiança. A segunda medida é apoiar, inclusive com o BNDES e outras estruturas
de financiamento, o desenvolvimento de soluções abertas ou soluções que sejam
nacionais e que não tenham condições de ser cooptadas e capturadas pelas
agências de inteligência americana. Então, do ponto de vista de segurança de
informações de nossas empresas estratégicas da política internacional
brasileira e de nossas autoridades, temos condições de adotar essas medidas,
que passam por softwares abertos e auditáveis, por começar a desenvolver
plataformas de tecnologia seguras. Temos hoje uma capacidade de desenvolvimento
tecnológico, mas é preciso identificar quem são os lobistas que só querem
ganhar dinheiro à custa da defesa da liberdade, como o da Microsoft. Esse
lobista não deveria nem ser respeitado dentro do governo, porque está mais do
que nítido que ele está defendendo um interesse econômico, vendendo não o
software, mas backdoors, instruções que permitam vazar as informações do Estado
brasileiro.
Só para você ter uma ideia, antes da denúncia do Snowden eu
assisti a uma apresentação no comitê gestor do Centro de Defesa Cibernética
Brasileira (CDCiber). A segunda tela que foi apresentada mostrava as empresas
que estavam ajudando a montar o centro, e uma delas era a Microsoft. Quando
terminou a apresentação, perguntei para o general: “Como o senhor garante que
vai conseguir se defender caso o inimigo sejam os Estados Unidos ou os
interesses norte-americanos, se o senhor não domina a tecnologia da Microsoft,
já que ela é de código fonte fechada?”. Ele respondeu somente: “Eles são nossos
aliados”. Então, veja, isso aconteceu um ano antes da denúncia do Snowden. Esse
tipo de concepção vai nos levar aonde? Tal concepção é ingênua, mas tem pessoas
que levam essas propostas para o centro de Cibernética.
Há muitas medidas concretas que podem ser tomadas dentro do
Estado brasileiro. Segurança não é comprar produtos; segurança é um processo
contínuo de inteligência na área de informações.
Em relação às chamadas tecnologias da informação, a
segurança é uma luta de inteligência, de criatividade, de tentar estar sempre
um passo à frente daquele que quer isolar o seu sistema.
Então, não dá para aceitar determinadas posturas do Estado
brasileiro. É claro que eu não desconheço as dificuldades migradas para o
sistema, mas também não desconheço o potencial brasileiro e sua capacidade de
propor soluções a curto, médio e longo prazos para uma série de problemas.
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