Jaciara Itaim - Carta Maior
Uma das novidades mais importantes para a economia mundial,
em destaque nesse início de ano, refere-se às mudanças observadas na política
monetária desenvolvida pelo governo dos Estados Unidos. Apesar da alta
relevância do tema e de seus impactos inescapáveis sobre o resto do mundo, o
fenômeno acaba sendo pouco analisado ou explicado pelos órgãos da grande
imprensa.
Os meios de comunicação em nossa terra quase chegam ao
orgasmo em sua busca por descrever o processo norte-americano. No entanto,
regozijam-se apenas com a utilização pretensiosa de expressões em inglês, na
tentativa de mencionar aquilo que parecem não compreender. Não bastasse o uso
exagerado do jargão indecifrável do economês, agora deram para buscar o
original do dialeto do financismo na língua de “Wall Street Journal”,
“Financial Times” ou “The Economist”. Pobre Shakespeare, se soubesse o que
ainda promovem de abuso com teu idioma!
Permanece aquela tentativa constante de inviabilizar o
acesso da maioria dos cidadãos “normais” à compreensão da dinâmica do mundo dos
negócios e das finanças. Apenas os mais “iniciados” teriam o direito de dominar
a lógica de funcionamento do sistema e tirar o proveito de tal capacidade.
Todos os demais seríamos obrigados a nos submetermos a tal desigualdade e
apenas nos conformarmos com a condição de meros observadores passivos dos
ajustes operados “lá em cima”.
Economês em inglês: apenas para iniciados
Assim, abundam ultimamente nas editorias de economia
passagens com termos pretensamente de uso banal e corrente, como “quantitative
easing”, “tapering” e “vacuum cleaner”. Ora, trata-se tão somente de um
subterfúgio elitista, que apenas contribui para afastar o leitor não
familiarizado com o acompanhamento da evolução da conjuntura econômica
norte-americana. Não seria nada complicado tornar os termos mais acessíveis.
Vejamos:
a) “quantitative easing”: aumento da introdução de moeda no
mercado, patrocinado pelo Banco Central, para evitar recessão e queda na
atividade econômica.
b) “tapering”: termo em inglês que pode ser usado como
redução ou afunilamento.
c) “vacuum cleaner”: nada mais, nada menos, do que o
utensílio doméstico a que chamamos de aspirador de pó.
A profundidade da crise que se iniciou em 2008 colocou as
autoridades públicas norte-americanas frente a um conjunto de grandes desafios.
O primeiro aspecto dizia respeito à necessidade de romper com as premissas
básicas do modelo neoliberal até então vigente. Isso significava superar um
dogma da ortodoxia e reconhecer a incapacidade do mercado por si só encontrar
as saídas econômicas para os desequilíbrios. O Estado passou a ser acionado,
ainda que para prestar socorro e assistência preferencialmente para os grandes
conglomerados empresariais.
O segundo aspecto referia-se à urgência em redefinir os
mecanismos de “liberdade de ação” no sistema financeiro, sobre os quais não
havia regulação nem fiscalização por parte das autoridades monetárias, a exemplo
do FED (da sigla “Federal Reserve”, banco central daquele país). Em razão dessa
ausência de controle, o sistema caminhava rapidamente para o quadro de um
verdadeiro “vale-tudo”. Os exemplos são inúmeros: i) as agências de risco não
classificavam os bancos em véspera de falência como instituições fragilizadas;
ii) as empresas de seguro não eram monitoradas em sua estratégia de
terceirização e repasse dos riscos envolvidos nas operações de crédito
duvidosas; iii) a contabilidade dos chamados “bancos sombra” não tornava
transparente a debilidade das condições de solvência do conjunto do sistema
financeiro; entre tantos outros.
O terceiro aspecto se vincula à necessidade de reorientação
da política econômica. Firmou-se a convicção de que a solução deveria passar
por uma ação mais incisiva do governo para minimizar os efeitos da recessão que
não demoraria para se apresentar. A realidade da economia não suportaria mais
aquele descolamento completo entre as condições idealizadas da esfera
financeira e a condição cruel do mundo da vida concreta e objetiva das pessoas
e das empresas. No fundo, tratava-se de reconhecer a irresponsabilidade da
aventura em que havia se metido o país mais rico do mundo. Tal trajetória
voluntarista era fruto da ilusão criada em torno da fantasia de natureza
meramente especulativa e financeira, sem nenhum respaldo da economia real.
A recuperação paulatina da economia nos EUA
A quebradeira generalizada de empresas e as dificuldades
crescentes que passaram a atingir as famílias constituíram a base para a
redução do ritmo de atividade. Desemprego e recessão passaram a ser o principal
binômio a caracterizar as agruras da sociedade norte-americana. A crise teve
início no verdadeiro castelo de cartas em que estava assentado o sistema de crédito
de hipotecas das residências e demais segmentos do ramo de imóveis. Como os
diferentes tipos de instituições financeiras estavam umbilicalmente ligados,
houve o chamado “contágio”. O desemprego reduziu ainda mais a rendas das
famílias, que não conseguiam cumprir as cláusulas dos contratos de
financiamento. As empresas não recebiam seus haveres e todo o ciclo se
contaminava.
As perspectivas de recuperação passavam por uma redução da
taxa de juros geral da economia, a partir da taxa oficial do FED. Ela se
aproximou de zero e chegou a ficar negativa. E mesmo assim era insuficiente
para restabelecer o ânimo e a credibilidade entre os chamados “agentes
econômicos”. Nesses casos, os manuais recomendam que a autoridade facilite ao
acesso aos recursos monetários ainda mais, de forma a estimular a retomada do
investimento e da produção. São leilões especiais de oferta de moeda ao setor
privado, o chamado “quantitative easing”.
Ocorre que esses recursos nem sempre iam para os setores que
o governo pretendia incentivar. Dada a condição generalizada da globalização
financeira, os acréscimos de oferta monetária do governo norte-americano vinham
se somar ao movimento do capital especulativo em busca de maior rentabilidade
pelo mundo afora. E a política monetária adotada pelo Brasil - campeão mundial
de taxa de juros - funcionou como um imã permanente de atração dessa massa de
dinheiro internacional.
À medida que os primeiros sinais de recuperação da atividade
econômica se fizeram notar nos EUA, o FED passou a sinalizar com o chamado
“tapering”. Ou seja, avisou de forma objetiva que aquela fase de expansão de
dinheiro fácil estaria entrando em uma fase de afunilamento, de redução
paulatina. Os volumes dessa oferta especial seriam diminuídos pouco a pouco, em
uma clara demonstração de que isso seria combinado a uma recuperação da taxa de
juros naquele país. Isso significaria uma perigosa reviravolta no movimento
observado na maioria dos países do mundo em desenvolvimento até então. Isso
porque, a exemplo do ocorrido no Brasil, essas economias sofreram um processo
de valorização de suas respectivas moedas nacionais, em razão do enorme volume
de recursos circulando pelo mundo.
E assim chegamos ao terceiro termo, o “vacuum cleaner”. A
analogia ao efeito do aspirador de pó se justifica pela violência com que a
melhoria da atratividade dos juros no mercado norte-americano certamente
tenderá a provocar nas finanças planetárias. Haverá uma espécie de sucção dos
recursos espalhados pelos países mais frágeis, retornando às praças financeiras
de origem. E o primeiro efeito será uma inevitável tendência de desvalorização
em suas taxas de câmbio, mais ou menos na linha do que tem acontecido com o
nosso real. Esses desequilíbrios nas transações financeiras internacionais não
costumam se manifestar de forma indolor.
Ajuste por lá e desequilíbrio por aqui
As editorias de economia até já criaram um novo acrônimo -
BIITS - para substituir o conhecido BRICS.
A novidade é chamada de “fragile five”, ou seja, os 5 países que mais
sofreriam com esse quadro de turbulência nas finanças globais. Trata-se do
conjunto formado por Brasil, Índia, Indonésia, Turquia e África do Sul, em
razão da elevada sensibilidade de cada um no desarranjo do respectivo setor
externo.
No caso brasileiro, na verdade, esse quadro só antecipa e
escancara o dilema que os governos têm buscado evitar ao longo dos últimos
anos. Ao optar pela manutenção do ajuste ortodoxo desde o Plano Real, nosso
país serviu como pólo altamente atrativo para o capital especulativo, de
natureza meramente financeira.
Combinada essa alternativa com uma liberdade absoluta nas
movimentações dos capitais externos, vivemos há tempos uma tendência à
sobrevalorização artificial de nossa taxa de câmbio. O resultado mais perverso
foi o processo de desindustrialização, em razão da substituição do padrão de
consumo por bens importados – em especial os de baixa qualidade originários da
China. A produção industrial brasileira despenca a olhos vistos.
Houve uma enorme resistência - patrocinada pelos interesses
vinculados ao financismo – em enfrentar essa irresponsabilidade perversa e
insana. O Brasil continuou essa tendência a perder valor agregado no setor
industrial e agora se encontra bastante fragilizado para uma recuperação
necessária. Caso se confirme a recuperação norte-americana, os recursos
continuarão a migrar de nossas praças e tal movimento pressionará pela
desvalorização cambial. O governo teme os efeitos de crescimento dos preços,
pois boa parte do consumo agora é influenciada por bens importados.
Assim, é bem capaz que seja criado um novo “consenso” – no
interior do seleto grupo dos formadores de opinião da banca e dos especialistas
em consultoria financeira - em torno da
necessidade de se aumentar ainda mais a taxa de juros oficial. O intuito é
manter algum grau de atratividade de recursos externos e atenuar o choque da
desvalorização do real. Ou seja, a maioria da sociedade pagará mais uma vez a
fatura mais elevada pela omissão do governo em assumir o caminho do
desenvolvimentismo e de um projeto nacional de inclusão e sustentabilidade.
(*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos
sociais e econômicos.
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