Como o ministro Barbosa armou para o público sua
“historinha” e, com ela, rebaixou o nível do debate que deveria ter sido feito
sobre o grande escândalo político
Raimundo Rodrigues Pereira, via Retrato do Brasil
Não há a menor dúvida de que o PT, que se dizia o grande
partido da ética na política, paga hoje o preço de, ao chegar à Presidência da
República, em 2003, ter mergulhado fundo no pântano dos financiamentos
clandestinos das campanhas eleitorais. A avaliação de que o chamado “mensalão”
é “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção da história do Brasil” é
outra coisa. Está nas alegações finais apresentadas ao Supremo Tribunal Federal
pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Do mesmo gênero foi a
avaliação de Antônio Fernando de Souza, que o antecedeu no cargo e encaminhou,
em 2006, a denúncia que resultou na Ação Penal 470 (AP 470), agora em
julgamento na suprema corte de Justiça do País.
Pode-se dizer também que essa avaliação que supervaloriza os
erros cometidos pelo PT é da oposição ao governo do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e já está formulada nas conclusões da principal das comissões
parlamentares de inquérito que investigaram o caso a partir de julho de 2005,
após a denúncia espetacular de Roberto Jefferson. Mas, com certeza, a pessoa
que transformou esse conteúdo numa peça com aparência de justiça para ser
vendida à opinião pública foi o ministro Joaquim Barbosa, que cuida do
“mensalão” desde que o caso chegou ao STF, em 2006, com o pedido feito pelo
procurador-geral Souza para que fosse aberto um inquérito na corte, visto que
diversas pessoas acusadas tinham o chamado foro privilegiado.
Para lembrar
Na Justiça brasileira, pessoas com foro privilegiado –
deputados como João Paulo Cunha, José Dirceu, Roberto Jefferson e outros,
denunciados por Souza na época – só podem ser processadas e julgadas pelo STF,
ao contrário das pessoas comuns, julgadas na chamada primeira instância, com
direito a recorrer a uma alçada superior.
Uma etapa inicial do processo judicial é o inquérito, cujas
investigações são feitas pela polícia. Ele é dirigido por um promotor, um
advogado do Ministério Público. Decisões suas que afetem os direitos
constitucionais dos acusados, como, por exemplo, uma busca em sua residência,
devem ser aprovadas por um juiz a quem o inquérito precisa ser comunicado. No
caso de nossa história, em função do foro privilegiado, o inquérito, de número
2.245, foi comunicado ao STF, o promotor foi o procurador-geral da República e,
o juiz, o ministro Barbosa.
Após o inquérito policial, o procurador verifica se há
indícios suficientes para mover uma ação penal destinada a julgar os acusados.
Em caso positivo, encaminha denúncia ao juiz e este a examina para dizer se a
aceita ou não. No caso, Barbosa examinou a denúncia e a aceitou. A seguir,
encaminhou seu voto ao plenário do STF, que o aprovou e abriu a AP 470.
Na ação penal, presidida por um juiz, são preparados os
chamados autos do processo, com depoimentos, perícias, documentos, apresentados
a ele sob as regras do contraditório, ou seja, as duas partes, acusação e
defesa, devem ter amplo acesso às provas produzidas, com o direito de
contraditá-las.
Finalmente, concluída a fase de formalização dos autos, a
ação vai a julgamento; no caso, o da AP 470 começou no início de agosto
passado.
Barbosa surgiu como um herói para a grande mídia
conservadora do Brasil quando concordou com a denúncia encaminhada por Souza e,
no plenário do STF, em fins de agosto de 2007, apresentou um voto de 430
páginas, lidas ao longo de 36 horas em cinco dias, defendendo a justeza de
aceitar a denúncia. Seu voto pela abertura da AP 470 foi amplamente aceito.
Até então Barbosa era relativamente estigmatizado. Fora
escolhido para ser ministro do STF pelo presidente Lula, logo no começo de seu
primeiro mandato, por ser negro, numa espécie de exercício da política de cotas
raciais. Isso, de certo modo, foi mal recebido por expoentes da mídia mais
conservadora que são contra esse critério para preenchimento de parte das vagas
públicas em várias instâncias; no caso, o STF.
Seu encaminhamento vitorioso da denúncia contra o “mensalão”
petista, o chamemos assim, mudou radicalmente essa imagem e lhe valeu elogios
estridentes. “O Brasil jamais teve um deplorável escândalo como o ‘mensalão’.
Como compensação, também jamais teve um ministro como Joaquim Barbosa”, disse
Veja em sua edição do início de setembro de 2007, num artigo de capa no qual enumerava
suas qualidades de menino pobre que estudou muito e venceu na vida e sua
sofisticação, desde falar várias línguas, vestir-se em lojas chiques pelo mundo
e conhecer com detalhes a vida em Paris, Nova Iorque, Los Angeles e San
Francisco.
Mas, essencialmente, Veja elogiava o fato de Barbosa ter se
convencido da tese apresentada na denúncia de Souza em 2006, e encampada pela
revista desde meados de 2005, de que “uma quadrilha liderada pelo ex-ministro
José Dirceu movimentara dezenas de milhões de reais para corromper
parlamentares em troca de apoio político”. Veja destacava, essencialmente, a
sagacidade de Barbosa em transformar a denúncia do procurador-geral numa peça
para o convencimento do público. Diz a revista: “Sua obsessão era a forma do
voto, a estrutura, a ordem dos capítulos [...] Joaquim Barbosa fez um voto
inteligente. Subverteu a ordem da denúncia preparada pelo procurador-geral da
República.”
Souza apresentou uma denúncia dividida em sete capítulos. No
quinto, por exemplo, falava de R$50 mil recebidos pelo deputado João Paulo
Cunha, na época presidente da Câmara dos Deputados, e R$326 mil recebidos por
Henrique Pizzolato, então diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil
(BB). Eles tinham apresentado essas quantias como sendo dinheiro do caixa 2
confessado por Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, dono de
agências de publicidade com serviços prestados ao BB e à Câmara. O
procurador-geral dizia que, nos dois casos, o dinheiro era, de fato, suborno.
No terceiro capítulo, Souza apresentava dois tipos de
operações da agência DNA com o BB como sendo a fonte de desvio de R$2,9 milhões
e R$73,8 milhões de dinheiro público para as empresas de Valério. Barbosa mudou
a ordem da apresentação dos supostos crimes: começou sua “historinha”, como
disse na ocasião ao diário O Estado de S.Paulo, pelo capítulo 5, no qual Souza
tentava provar a corrupção de Cunha e Pizzolato. Depois foi para o 3, no qual
Souza procurava mostrar que o dinheiro do esquema Soares–Valério viria, de
fato, de desvio de dinheiro público. Deixou por último o capítulo no qual
Dirceu é acusado de formar uma quadrilha, articulada com outras duas – uma de
publicitários e outra de banqueiros –, para corromper o Congresso. Com essa
forma, o escândalo ficou mais compreensível, “o capítulo anterior jogava luz
sobre o capítulo subsequente”, como disse, na época, Barbosa ao Estadão.
Barbosa reorganizou a denúncia do procurador-geral, mas com
um voto unitário. No julgamento, quando, como relator, foi o primeiro a votar,
já quase no final de agosto, após os pronunciamentos da acusação, pelo
procurador-geral Gurgel, e das defesas, pelos advogados dos 38 réus, ele acabou
impondo – com a ajuda do presidente da corte, Ayres Britto – a votação fatiada,
para espanto dos ministros Ricardo Lewandowski, revisor da AP 470, e Marco
Aurélio de Mello e protestos da maioria dos advogados dos réus.
O fatiamento parece ter sido o grande truque de Barbosa. É
uma espécie de técnica como a de comer o pirão a partir das beiradas, onde está
mais frio. No caso, começar a julgar a complexíssima tese do “mensalão” a
partir de um ponto que é quase um senso comum: o de que os políticos são
corruptos e é grande o desvio de dinheiro público para proveito deles próprios.
Certos setores da classe média e da burguesia brasileira devem fazer isso até
com uma espécie de consciência culpada: deve-se notar que, no “mensalão”, a
acusação tenta provar um desvio de dinheiro público de perto de R$100 milhões.
Já a Receita Federal está cobrando de centenas de milhares de pessoas físicas e
jurídicas R$86 bilhões em “débitos vencidos”. Desse total, R$42 bilhões são
atribuídos a 317 grandes contribuintes (15 pessoas físicas e 302 jurídicas) –
ou seja, um montante que equivale a mais de 420 vezes o dinheiro envolvido no
“mensalão”.
Cunha e Pizzolato foram as vítimas iniciais. Mas a história
do ex-diretor do BB é, sem dúvida, a principal. Após a acusação de Barbosa,
Pizzolato foi condenado quase unanimemente pelos outros dez ministros por
quatro crimes: corrupção passiva, porque teria recebido R$326 mil para
favorecer Valério; lavagem de dinheiro, por ter recebido dinheiro em espécie e
ocultado essa movimentação; um “pequeno peculato”, por ter desviado R$2,9
milhões por meio dos chamados bônus de volume, isto é, recursos dados pelos
veículos de promoção e mídia em função do volume de serviços cobrados do BB,
que seriam devidos ao banco, mas foram dados para uma empresa de Valério com a
anuência de Pizzolato; e um “grande peculato”, pelo desvio de R$73,8 milhões, que
também seriam do BB e foram dados para a mesma empresa de Valério, a partir de
um fundo de incentivos ao uso de cartões da bandeira Visa.
O que Barbosa fez ao começar pelas “historinhas” de
corrupção é o oposto do que se recomenda num debate intelectual sério. Como
disse o pensador italiano Antônio Gramsci, nesse tipo de discussão, na luta de
ideias, ao contrário do que se faz na guerra, quando se come o pirão pelas
beiradas, procurando destruir o inimigo atacando-o por seus pontos mais fracos,
deve-se começar pelo ponto forte, o essencial da argumentação adversária. O
propósito na luta de ideias não é destruir o adversário, como se faz com o
inimigo na guerra, mas derrotar suas ideias errôneas e, dessa forma, contribuir
para elevar o nível popular de consciência e informação.
Barbosa não é nenhum Gramsci. Fez o contrário, procurou
contar uma “historinha”. Estavam em debate duas posições. De um lado, a dos
maiores criminalistas do País, que defendem os acusados com a tese do caixa 2.
Essa tese foi desenvolvida por Soares e Valério, já em 2005. Eles apresentaram
provas e testemunhos de terem repassado clandestinamente R$55 milhões para
pagar dívidas de campanha do PT e partidos associados a ele nas eleições.
Disseram que o dinheiro vinha de empréstimos tomados – pelo PT, mas,
principalmente, pelas empresas de Valério – nos bancos mineiros Rural e
Mercantil de Minas Gerais. De outro lado estava a tese da maioria da CPMI dos
Correios, a tese do “mensalão”. Ela dizia que os R$55 milhões admitidos pelos
acusados como caixa 2 não existiam. Seriam dinheiro público os R$76,7 (73,8 +
2,9) milhões da soma do grande e do pequeno peculatos de Pizzolato, desviados
do BB para Valério.
As quantias teriam sido fraudulentamente camufladas como
empréstimos pelo publicitário com ajuda dos banqueiros do Rural. Os R$326 mil
que chegaram a Pizzolato seriam o suborno para ele fazer o desvio. Os
banqueiros do Rural teriam feito a simulação porque estariam interessados num
prêmio que Dirceu, “chefe da quadrilha política”, poderia obter do Banco
Central para eles: a “bilionária” liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco,
como diz Gurgel em sua peça acusatória. E Dirceu e sua quadrilha política
queriam o dinheiro para comprar o apoio de partidos no Congresso para o governo
Lula.
Como juiz, a nosso ver, para encarar o debate de frente,
Barbosa deveria ter começado por dar seu veredito sobre a acusação, isto é,
dizer se a tese do “mensalão” fora ou não provada. Deveria fazer isso
examinando a argumentação da defesa, a tese do caixa 2, e fazer isso com todo o
empenho, para eliminar qualquer dúvida razoável em favor dos acusados, em
respeito ao princípio in dubio pro reo.
Note-se bem: ninguém pode dizer que os réus são inocentes se
o propósito for corrigir os males do processo eleitoral brasileiro, totalmente
corrompido pelo dinheiro. Muitos dos acusados são participantes confessos, em
maior ou menor grau, de um crime eleitoral: o uso de dinheiro clandestino para
financiamento de candidatos e partidos. Ao escrever sobre esse tema, poucos
meses depois do ocorrido (ver no livro As duas teses do mensalão, Editora
Manifesto, 2012, o capítulo “O PT no seu labirinto”, escrito em setembro de
2005), já dizíamos, por exemplo, o que está sendo observado agora por alguns
analistas: os R$4,1 milhões repassados por meio do chamado Valerioduto para o
PP não podiam ser vistos como verba para pagamento de despesas de campanhas
passadas. A adesão do PP à base do governo Lula foi tardia. Em 2002 esse
partido, assim como o PMDB, se coligou com o PSDB no apoio à candidatura de
José Serra à Presidência. É outro, no entanto, o caso de PT, PTB, PL e de seus
políticos que receberam dinheiro do esquema. Dos R$55 milhões distribuídos por
meio do esquema Soares–Valério, a maioria foi para o próprio PT: R$23,6 milhões
– sendo o equivalente a R$10 milhões depositados numa conta no exterior para
Duda Mendonça, que, como se sabe, foi o marqueteiro da campanha de Lula à
Presidência e de vários candidatos do PT a governador nas eleições de 2002. A
segunda maior parte – R$11,2 milhões – foi para o PL, que estava coligado com o
PT desde a formação da chapa presidencial, com Lula encabeçando-a e com o
empresário mineiro José Alencar como vice. Mais R$4 milhões foram para o PTB,
de Roberto Jefferson. No 1º turno da eleição presidencial de 2002, o PTB formou
a chamada aliança trabalhista, com o PDT e o PSB, para apoiar Anthony
Garotinho, o candidato à Presidência dessa última agremiação. No 2º turno, o
partido de Jefferson apoiou a candidatura de Lula. Por que o Valerioduto não repassou
verbas para o PSB pagar suas campanhas de 2002? Por que não deu dinheiro para o
PCdoB, outro de seus aliados históricos? Por que PTB, PP e PL são partidos,
como se diz, mais fisiológicos, corrompíveis, digamos? É claro que pode ter
havido compra de partidos, que candidatos possam ter usado o esquema
clandestino Valério–Soares para melhorar suas contas pessoais e que, portanto,
a tese do caixa 2 não dá conta de todos os detalhes e não ajuda, de forma
alguma, diga-se mais, a limpar as estrebarias formadas pelo dinheiro e pelos
poderosos que o oferecem para orientar, em função de seus interesses, o
processo democrático. Quem, dentre os defensores da tese do caixa 2, pode ter
certeza de que os banqueiros do Rural e do BMG não queriam favores do governo?
É claro que queriam.
Mas o problema em discussão não é esse. A tese do caixa 2 é
a da defesa. Ela não tem, a serem seguidos os princípios do direito penal, o
ônus da prova. É a acusação que está sendo julgada na AP 470. É a tese do
“mensalão”, encaminhada pelo procurador-geral Gurgel em sua sustentação oral
feita em 2 de agosto, na abertura do julgamento da AP 470. E é a forma como o
relator Barbosa está levando os seus colegas do STF a julgá-la. É nossa opinião
que, ao não dar um voto unitário inicial à altura das dimensões que o
julgamento adquiriu, Barbosa visou, de modo doloso – para usar um termo
jurídico –, abrir caminho para a vitória da tese do “mensalão”. Empenhou-se na
defesa dessa tese, buscando em seu apoio todos os indícios e suposições da fase
do inquérito e praticamente ignorando as provas e testemunhos produzidos para
os autos pela defesa, os quais, pela lei brasileira, deveriam ser os
determinantes para a condenação dos acusados. Como disse o experiente sociólogo
Wanderley Guilherme dos Santos, em entrevista publicada pelo jornal Valor
Econômico em 21 de setembro: “Temo que uma condenação dos principais líderes do
PT, e do PT como partido, acabe tendo por fundamento não evidências
apropriadas, mas o discurso paralelo que vem sendo construído.” O jornal então
lhe perguntou se ele achava que os ministros estavam “dizendo, nas entrelinhas
do julgamento”, que “o tribunal condenará alguns réus sem fundamentar essas
condenações em provas concretas”. Ele respondeu: “É uma espécie de vale-tudo.
Esse é meu temor. O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do
caixa 2 de campanhas eleitorais e o que esse caixa 2 provoca. A questão
fundamental é: por que existe o caixa 2? Isso eles se recusam a discutir, como
se o que eles estão julgando não fosse algo comum – que pode variar em
magnitude, mas que está acontecendo agora, não tenho a menor dúvida. Como se o
que eles estão julgando fosse alguma coisa inédita e peculiar, algum projeto
maligno”.
Barbosa adotou o método da “historinha” para ganhar o público
a partir dos preconceitos existentes contra a política. E também porque,
observada na sua estrutura, a tese do “mensalão” é muito complexa e frágil. Ela
precisa de uma superorganização criminosa. Precisa de três quadrilhas –
associação criminosa que envolve, em cada uma, pelo menos quatro pessoas –
unidas num mesmo propósito e com divisão de tarefas. As três quadrilhas devem
ter uma hierarquia, porque, segundo essa tese, Dirceu, da quadrilha política, é
o poderoso chefão e seria o articulador e comandante do grande esquema.
As deformações decorrentes do encaminhamento dado à AP 470
por Barbosa podem ser vistas com mais precisão em alguns absurdos cometidos no
tratamento de questões financeiras essenciais. A quadrilha dos banqueiros teria
grande interesse em falsificar os empréstimos da dupla Valério–Soares, de olho,
por exemplo, na liquidação “bilionária” do Banco Mercantil de Pernambuco.
Ocorre, no entanto, como disse repetidas vezes o advogado de um dos banqueiros,
o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, que essa liquidação foi “milionária”, ou
seja, mil vezes menor. Barbosa mostrou, como prova da falsidade dos empréstimos
para o Valerioduto, o fato de um sócio de Valério ter recebido em sua conta um
depósito de adiantamento de dinheiro do Fundo de Incentivo Visanet e
imediatamente ter aplicado o montante no Banco Rural, como se isso fosse uma
manobra diversionista. Como se não fosse uma obrigação de toda pessoa sensata,
no sistema em que vivemos, aplicar a juros uma bola que recebe. Como se todos
os convênios que o governo federal faz com estados e municípios, por exemplo,
não fossem de adiantamento de boa parte de dinheiro e de prestação de contas a
posteriori. E nos quais todos os secretários de Fazenda com bom senso mandam
aplicar o dinheiro imediatamente.
Mas o dolo principal de Barbosa é quanto aos dois peculatos
de Pizzolato. Eles são a viga mestra da tese do “mensalão”. Esses R$76,7
milhões dos supostos dois desvios de dinheiro do BB substituem os R$55 milhões
que, na tese do “mensalão”, não existem e teriam sido inventados pelos
banqueiros, por Valério e por Soares para sustentar a tese do caixa 2.
Em seu voto, ao omitir dezenas de provas e testemunhos da
defesa, Barbosa praticamente diz que Pizzolato, sozinho, comandou a retirada do
dinheiro do BB, como se o banco fosse uma padaria de cujo caixa um dirigente
pudesse retirar dinheiro com a mão. As provas da defesa, que Barbosa não
apresentou, mostram que essa acusação é absurda. Ele sabia e deveria ter dito
que o Fundo de Incentivo Visanet, para o uso dos cartões de bandeira Visa, a
partir do qual a empresa DNA, de Valério, recebeu dinheiro, era da Companhia
Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), dominada, no essencial, por uma
empresa multinacional, a Visa Internacional Service Association, estabelecida
em San Francisco, na Califórnia. Sua ampla rede global possibilita a utilização
de cartões de sua bandeira, Visa, por meio de 21 mil instituições financeiras
em mais de 200 países.
Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, a
Visa criou no Brasil a CBMP, assinado por todos os seus sócios – Visa (10%),
Bradesco (39%), BB (32%) e mais de 20 outros bancos –, estabelece claramente
que o dinheiro retirado pela CBMP de cada pagamento feito por meio dos cartões
Visa, para promoção dos próprios cartões e através de cada um de seus sócios,
lhe pertence. Barbosa sabe disse porque foi ele quem, até o final de 2006, um
ano depois de o Fundo de Incentivo Visanet ter sido fechado em função do
escândalo do “mensalão”, tentou fazer valer, sem sucesso, uma decisão do então
presidente do STF, Nelson Jobim, que mandava a companhia permitir um exame de sua
contabilidade. Era a CBMP, repita-se, comandada pela Visa – não pelo BB e muito
menos por Pizzolato –, que ficava com os recibos dos pagamentos feitos pela DNA
por conta de serviços de promoção dos cartões emitidos pelo BB com a bandeira
Visa. Pelo que Barbosa mostrou ao País pela televisão, o BB não tinha qualquer
controle das contas da DNA, que basicamente não teria feito serviço algum,
apenas carregado a grana para os esquemas fantásticos de Valério–Soares com a
quadrilha de banqueiros mineiros. Mas isso é totalmente falso. Nos autos do
processo está a avaliação de uma equipe de 20 auditores do BB, feita ao longo
de quatro meses, com base nos recibos da CBMP, que provam o que Valério diz até
hoje, aparentemente com razão: que sua empresa realizou todos os serviços de
promoção pelos quais recebeu os adiantamentos.
Barbosa sabe também que a Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) dos Correios, que criou a tese do “mensalão”, mandou indiciar,
pelos desvios que imaginou terem sido feitos no Fundo de Incentivo Visanet
durante quatro anos de seu uso pelo BB, cinco pessoas, sendo três do governo
Fernando Henrique Cardoso e duas da administração petista: Luiz Gushiken e
Pizzolato. Por que sobrou apenas Pizzolato? O advogado dele, Sávio Lobato, diz
que isso ocorreu apenas porque seu cliente era do PT. Pode-se dizer mais: só
Pizzolato sobrou porque: 1) ele seria a porta de entrada para a “historinha” de
Barbosa; 2) se Gushiken, ministro da Comunicação Social do governo Lula e
superior hierárquico de Pizzolato fosse incluído, isso atrapalharia. Embora
responsável, em última instância, pela publicidade alocada pelo governo Lula,
se entrasse na história, Gushiken destruiria a parte da tese que ainda hoje une
a massa dos conservadores: a de que o ex-comunista, ex-guerrilheiro e
ex-comandante da equipe que elegeu Lula, José Dirceu, é o chefão mais poderoso
das três quadrilhas inventadas.
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