Como explicar a violência que assola o Iraque? Desde o fim
da guerra das milícias, entre 2006 e 2008, e a saída dos norte-americanos, ela
não chegava ao nível atual. A crise síria alimenta os antagonismos no vizinho;
onde o primeiro-ministro aplica uma política confessional. A extensão da
batalha desestabiliza a região
por Feurat Alani
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"Como deter um camicase?” Essa foi a pergunta que o
governo de Bagdá fez a si mesmo no dia 30 de novembro de 2013, mais de dez anos
após a queda do regime de Saddam Hussein. Diante dos atentados assassinos
cotidianos, o aparato de segurança do Iraque organizou um seminário para ajudar
os proprietários de bares. Empregar uma guarda privada, reduzir o número de
entradas: uma centena de comerciantes de Bagdá ouviu os conselhos pouco
convincentes, para não dizer impotentes, oferecidos por policiais. O país inteiro
foi atingido por atentados e ataques que custaram a vida de mais de 6 mil
pessoas em 2013.
Somos obrigados a constatar que o governo, não conseguindo
erradicar a violência, procura aprender a viver com ela. “É sempre a mesma
coisa. Quando uma bomba explode num mercado, a polícia e o Exército instauram
um toque de recolher no setor, mas sempre chegam depois! O governo banca o
bombeiro, apagando o fogo. Mas é preciso deter os incendiários”, exaspera-se
Mokhlas al-Jouraisy, jornalista que vive em Bagdá.
Na capital, cada família remói sua própria história trágica,
sua amargura e seus mortos. “Depois da ocupação norte-americana, nada mudou.
Havia explosões e continua havendo. É a mesma coisa em relação ao desemprego e
a outros problemas enfrentados pelos iraquianos. Os norte-americanos nos
deixaram a morte como herança. Pelo menos os ingleses construíram pontes e
escolas para nós”, afirma um morador de Bagdá, referindo-se à ocupação
britânica do país em 1918.
Desconfiança do governo em relação aos sunitas
As razões para a violência são múltiplas. Para
compreendê-las, é preciso voltar a 2003, pouco após a queda do regime do
Partido Baath, de Saddam Hussein. Paul Bremer, administrador norte-americano
encarregado da invasão, tomou a decisão de desmantelar o aparelho de segurança
iraquiano e “desbaathificá-lo”. Foi uma política arbitrária e nefasta que
colocou no ostracismo quase 1 milhão de homens qualificados e experientes. No
espaço de poucos dias, o Iraque passou de um regime ultrassecuritário para um
deserto administrativo. Essa depuração política contra todos aqueles que
colaboraram com o regime, de perto ou de longe, ajuda a explicar a
vulnerabilidade do país.
O enfraquecimento do Estado levou quase naturalmente à
exacerbação das tensões confessionais entre sunitas e xiitas, que chegou ao
auge após o atentado contra o mausoléu de Samarra, um lugar santo xiita, no dia
21 de fevereiro de 2006. Na época, os xiitas entenderam o episódio como uma
declaração de guerra. Apesar dos apelos por calma vindos de todas as
autoridades religiosas, militantes xiitas retaliaram atacando mesquitas
sunitas. “Foi o nosso 11 de Setembro”, lembra um morador cujo irmão foi
assassinado por um miliciano durante essas represálias.
Durante mais de dois anos, as milícias xiitas, principalmente
as duas mais famosas – o Exército Mahdi, do movimento sadrista, e a Brigada
Badr, do Conselho Supremo Islâmico do Iraque1 –, organizaram emboscadas contra
sunitas, que eram capturados e frequentemente torturados e executados. Milícias
sunitas revidaram atacando os bairros xiitas de Bagdá com carros-bomba. Todos
os dias se encontrava uma centena de mortos nas ruas da cidade ou no Tigre.
Ainda que tardiamente, e por razões evidentes de rivalidade política, o
primeiro-ministro Nouri al-Maliki lançou, em 24 de março de 2008, uma grande
ofensiva a Sadr City, a fim de desarmar o Exército Mahdi de Moqtada al-Sadr. A
partir daí a violência campal foi diminuindo gradualmente, mas aumentaram as
rivalidades no seio da classe política.
Essa violência agora ocupa a maior parte do discurso de
Al-Maliki, que usa um vocabulário simplista e maniqueísta, no qual as palavras
“terrorista” e “baathista” são utilizadas para designar os sunitas.
Para explicar a crise de segurança que se estabeleceu desde
a saída das tropas norte-americanas, também é preciso recordar o papel dos
milicianos da Sahwa – “o despertar”, em árabe. Esses membros de tribos sunitas
aliaram-se ao Exército norte-americano para combater a Al-Qaeda na Mesopotâmia.
De acordo com a estratégia militar do general norte-americano David H.
Petraeus, o surge2 só funcionaria com a colaboração das tribos sunitas,
simbolizada pelo carismático Abdul Sattar Abu Risha, morto no dia 13 de
setembro de 2007 por um comando da Al-Qaeda.
Composta por 100 mil homens, essa milícia teve importantes
êxitos, dominando cidades da Al-Qaeda na Mesopotâmia. Os membros da Sahwa
deveriam passar a integrar o Exército regular, mas essa promessa de Al-Maliki
nunca foi cumprida. Apenas 20% dos milicianos foram incorporados. Os outros foram
negligenciados e estigmatizados por um primeiro-ministro cada vez mais
desconfiado dos sunitas.
Hoje, o país mudou. Bagdá não é mais aquela cidade
heterogênea, onde todas as províncias estavam representadas. Com raras
exceções, os sunitas vivem nos bairros sunitas, e os xiitas, nos bairros
xiitas. No resto do Iraque, a “divisão suave” sonhada pelo então senador Joe
Biden3 – com um norte curdo, um centro sunita e um sul xiita – já existe de
fato.
Apesar desse percurso sinuoso e das promessas não cumpridas,
a queda do Iraque poderia ter sido evitada se Al-Maliki tentasse traduzir em
realidade seu slogan de campanha: “reconciliação nacional”. Especialmente
considerando que, desde sua chegada ao poder, muitos conselhos tribais sunitas
prometeram-lhe fidelidade. Mas ele continuou alimentando as oposições entre
sunitas e xiitas, bem como entre árabes e curdos, e afastou de maneira
agressiva todos aqueles que não estavam satisfeitos com sua política. Seu
isolamento começou com a expulsão de Tarek al-Hashemi, vice-presidente sunita,
acusado de “terrorismo”. No ano seguinte, foi a vez de outro sunita, Rafi
al-Issawi, ministro das Finanças e vice-primeiro-ministro, sob a mesma
acusação.
Em 21 de dezembro de 2012, um ano após a retirada
norte-americana, uma vasta mobilização popular começou em Fallujah, na estrada
principal que leva a Bagdá, chamada “lugar da dignidade”. Ela se espalhou para
todo o território sunita. Dali por diante, a aliança outrora possível entre
Al-Maliki e as tribos já não o era mais.
Durante essas manifestações, importantes líderes de tribos
sunitas, como Doulaimy, Joumaily e Mahamda, pediram a saída do
primeiro-ministro. Alguns o chamaram de fantoche do Irã e “safávida”, termo
usado pejorativamente para designar os conservadores iranianos. Desde o
princípio, esse movimento popular manifestou solidariedade à rebelião síria,
comparando Al-Maliki a Bashar al-Assad. No meio da multidão e das bandeiras do
Iraque, via-se claramente o símbolo do Exército Livre da Síria. A luta dos
sunitas iraquianos transbordou o quadro nacional: o inimigo não era apenas
Al-Maliki, mas o eixo xiita Damasco-Bagdá-Teerã.
As conexões entre os sunitas da província sunita de Al-Anbar
e a rebelião síria, do outro lado da fronteira, podem ajudar a explicar o
aumento da violência no Iraque. Com a luta pelo poder ganhando uma dimensão
cada vez mais religiosa, muitos iraquianos imaginaram um cenário ao estilo
sírio “para reequilibrar a relação de forças na região”, deseja crer o xeque
Rafeh al-Joumaily. Segundo o líder tribal, se o regime de Damasco viesse a
cair, Teerã perderia um importante aliado. “Se os sunitas chegarem ao poder na
Síria, seremos mais fortes para enfrentar o aumento do xiismo em Bagdá”,
avalia.
Rebeldes controlam a fronteira
Pouco mencionado pela mídia, o equivalente iraquiano do
Exército Livre da Síria foi criado seis meses antes das manifestações sunitas.
Em uma declaração oficial do dia 19 de julho de 2012, o Exército Livre do Iraque
afirmou três objetivos: “combater a invasão iraniana no Iraque, apoiar o povo
sírio e o Exército Livre da Síria e reunir os combatentes sunitas no Iraque sob
uma única e mesma bandeira”.
Quem está por trás dessa nova formação? Tem ela uma real
influência? Ainda é muito cedo para dizer. O Exército Livre do Iraque
transmitiu pela internet vídeos de seus ataques contra o Exército regular
iraquiano, para depois desaparecer progressivamente do radar até a prisão de
seu líder – de identidade desconhecida –, em fevereiro de 2013, perto de
Kirkuk.
A aliança entre a Al-Qaeda na Mesopotâmia e a Al-Qaeda de
Al-Sham (Síria) é mais uma prova das ligações “naturais” entre sunitas sírios e
iraquianos. Reunidos sob a bandeira do Estado Islâmico do Iraque e do Levante
(EIIL), seus combatentes facilmente atravessam a fronteira entre o Iraque e a
Síria, dominada por rebeldes. Formado em 2006 no Iraque, como uma plataforma
para os vários grupos jihadistas, o EIIL se tornou um poderoso elemento da
terrível guerra que assola a Síria. O grupo não encontra problemas para
circular e obter suprimentos. Nessa região de fronteira, as alianças tribais
são antigas. É muito fácil para um habitante de Fallujah ou de Al-Qa’im passar
para o lado sírio, em Abu Kamal, e ali ser recebido.
O conflito sírio realmente transbordou para o Iraque em
março de 2013. Nesse dia, quarenta soldados e funcionários sírios foram mortos
no departamento iraquiano de Al-Anbar. Eles estavam refugiados havia alguns
dias, protegendo-se de um ataque de rebeldes. Sete soldados iraquianos também
foram mortos.
Embora as crises nos dois países tenham nascido de causas
diferentes, elas têm em comum seu caráter confessional. A guerra civil síria
opõe uma insurreição de tônica sunita a uma coalizão de minorias étnicas e
religiosas que apoiam o governo de Al-Assad. No Iraque, o governo de maioria
xiita é contestado por sunitas que oscilam entre oposição política e armada.
Provavelmente não é coincidência que os conflitos
confessionais tenham se reacendido, no Iraque, no momento em que a guerra civil
síria se intensifica. Até a administração norte-americana atribui um papel
importante ao Iraque na crise síria. Durante a visita de Al-Maliki a
Washington, no final de outubro de 2013, o presidente norte-americano Barack Obama
pediu-lhe que usasse suas boas relações com Teerã para solicitar que Al-Assad
deixe “suavemente” o poder. O Iraque também está sob crescente pressão do Irã,
a principal potência xiita na região, bem como da Arábia Saudita e da Turquia,
dois grandes países sunitas, principais patrocinadores da insurgência contra
Al-Assad.
Após dez anos de uma violência sem precedentes, o Iraque
está preso num turbilhão de lutas pelo poder entre sunitas e xiitas que se
alimentam do conflito sírio. O governo de Al-Maliki tenta fazer pouco das novas
cartas regionais. A nova lei eleitoral aprovada pelo Parlamento, que fixa as
próximas eleições legislativas para o dia 30 de abril de 2014, é vista como
piada. A população ri desses deputados, da facilidade com que eles votam leis
favorecendo seus interesses pessoais e de sua incapacidade de chegar a um
acordo sobre pontos essenciais. O intelectual e sociólogo iraquiano Amir Ahmed
inscreve essas eleições no teatro do absurdo. Ele compara a cena política
iraquiana à peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. “A cada prazo eleitoral, a
classe política anuncia a chegada de um homem que promete mudanças. Mas ele
nunca vem. Enquanto esperamos, eles nos mantêm ocupados, nos distraem. Os
iraquianos estão esperando Godot...”
“A presença iraniana já existente no país aumenta a
desconfiança e o medo na região árabe”, continua Ahmed. “É essa mudança brutal
na política regional que provoca todas essas tensões. Também não podemos
esquecer que o Iraque é um país rico em petróleo, e isso desperta a ganância
das forças internacionais. Estas procuram alimentar a violência mais do que
estabilizar a situação, uma vez que é mais fácil tirar proveito de um país
fraco e instável que de um país forte e equilibrado.” O petróleo: talvez seja
essa a verdadeira desgraça do Iraque...
Feurat Alani
Jornalista
Ilustração: Dulce Horta
1 O sadrismo é uma corrente que representa meios
desfavorecidos e negligenciados pelo establishment xiita. Criado em 1982, o
Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque (CSRII) tem um braço
armado, a Brigada Badr, uma milícia que reúne entre 8 mil e 15 mil soldados.
2 No dia 10 de janeiro de 2007, George W. Bush decidiu
enviar mais 30 mil soldados norte-americanos para o Iraque. Para comandar o
surge (“reforço”), ele nomeou o general David H. Petraeus.
3 Para resolver o conflito iraquiano, Joe Biden
elaborou um plano para dividir o Iraque em três blocos comunitários e
confessionais inspirados na divisão da Bósnia em 1995. Ele imaginou um Estado
descentralizado, com o norte para os curdos, o centro para os sunitas e o sul
para os xiitas. Cf. Helene Cooper, “Biden plan for ‘soft partition’ of Iraq
gains momentum” [Plano Biden para “divisão suave” do Iraque ganha força], The
New York Times, 30 jul. 2007.
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