A Veja não desceu, subitamente,
ao abismo jornalístico a que chegou.
Foi um processo, foi uma
caminhada em que houve marcos.
Isso me ocorre ao ler, agora, que
a Justiça enfim condenou a revista a pagar uma indenização à família de
Gushiken.
(Leia mais detalhes, em texto de
Rodrigo Vianna: “Depois de morto, Gushiken derrota ‘Veja’: o caso das falsas
contas no exterior”.)
É uma cifra irrisória perto do
tamanho da infâmia, 100 000 reais, mas é melhor isso que os 10 000 reais
anteriormente determinados pela Justiça.
Gushiken foi vítima de um dos
marcos da transformação da Veja num panfleto canalha: uma reportagem que falava
de alegadas contas no exterior de líderes petistas.
Entre os caluniados, estava
Gushiken. No texto, a revista admitia que publicara acusações de tamanha
gravidade mesmo sem ter conseguido comprová-las.
Mais que uma frase, é uma
confissão de má fé assassina.
Que publicação digna mata a
reputação de alguém sem comprovar a veracidade de dossiês que vão dar na
redação por mãos altamente suspeitas?
No caso, por trás das acusações
da revista – sabe-se agora – estava uma das personagens menos confiáveis do
Brasil contemporâneo, Daniel Dantas.
Fora transposta uma barreira ali,
na marcha da Veja rumo ao horror jornalístico.
Mais ou menos naqueles dias,
outro marco no declínio moral da revista fora estabelecido quando foi feita uma
enorme resenha para louvar um romance do então redator-chefe Mario Sabino.
Publicações decentes, em casos
assim, dão, quando muito, uma nota seca para registrar o lançamento de um livro
de um funcionário.
Quanto mais graduado este
funcionário, menor o espaço, esta é a lógica, para evitar a desmoralização da
publicação perante o público e perante seus próprios jornalistas.
Mas o romance de Sabino – um
notório bajulador de patrões segundo o qual o granjeiro Frias foi um gênio do
jornalismo — apareceu como algo digno de Proust, ou coisa parecida.
Também ali um marco foi vencido.
Uma revista que faz aquele tipo de coisa faz tudo. À luz disso você entende
como colunistas como Mainardi e Reinaldo Azevedo foram ganhando espaço numa
revista em cuja época de ouro — os anos 1980 — eles seriam vistos como uma
abominação.
Minha interpretação para o
processo de degeneração ética da Veja junta um patrão que não aceitava a
decadência da revista com o advento da internet e editores fracos que não
souberam mostrar a ele os limites da abjeção.
Roberto Civita jamais de livrou
dos efeitos da queda de Collor. Mesmo com técnicas jornalísticas altamente
discutíveis – tanto que Collor foi absolvido de todas as acusações pelo STF – o
impeachment deu uma aura de poder superior à Veja e a Civita.
Os anos passaram, e a magia ficou
para trás. Caso Lula fosse derrubado pela Veja, o prestígio perdido seria
recuperado. Provavelmente foi isso que levou Roberto Civita a fazer da Veja o
que ela é hoje.
Para tanto, ele contou com
editores fracos, sobretudo Eurípides Alcântara. Um bom editor teria mostrado a
Roberto Civita que a imagem da revista seria destruída com aquele tipo de
jornalismo.
“Estou protegendo você de você
mesmo”, em algum momento o editor diria. Mas quem conhece Eurípides sabe que um
comportamento altivo diante do patrão está acima de suas possibilidades.
Fomos colegas de redação na Veja
no começo da década de 1980. Uma jornalista que era chefiada por ele me contou
um pequeno episódio que não é grande senão por revelar a personalidade de
Eurípides.
Elio Gaspari, diretor adjunto,
chamara a repórter e Eurípides para reclamar de um texto que chegara às mãos
dele.
Elio falou de uma coisa que Eurípides
tinha feito. Imediatamente, como me contou na época a jornalista, ele pisou no
pé dela para que ela ficasse calada e não dissesse que o erro era de Eurípides.
Gushiken acabou sendo vítima do
afrouxamento moral da revista. Mais importante que a cifra em si é uma frase
usada na sentença: “falácia de doer na retina”.
Não foi o único triunfo póstumo
de Gushiken. Também o editor da seção Radar, Lauro Jardim, foi condenado a 10
000 reais de indenização por uma nota na qual afirmava que Gushiken pagara com
dinheiro público uma conta de cerca de 3 000 reais num restaurante.
Lauro é um caso clássico do que a
Veja faz com as pessoas que trabalham lá. Contratei-o, em meados dos anos 1990,
para ser editor da Exame no Rio de Janeiro.
Nunca imaginei que Lauro acabaria
fazendo parte de um jornalismo tão sujo quanto este da Veja. Era um bom rapaz,
e foi absolutamente corrompido por um ambiente tóxico e amoral.
Carregará para sempre o anátema
de ser um dos principais homens desta Veja que está aí.
Quanto a Gushiken, não viveu para
ver as reparações judiciais.
A imagem com que passará para a
história é a de um homem íntegro que lutou por um Brasil melhor, e foi por isso
perseguido.
Quanto à Veja, a posteridade
conferirá a ela o título de publicação mais canalha da história da mídia
brasileira.
Em tempo: Rodrigo Vianna, no seu
blog Escrevinhador, destacou passagem importante da sentença que condenou a
Veja:
“A Veja dá a entender que não eram fantasiosas as contas no exterior. E
não oferece um único indício digno de confiança. Infere, da identidade dos
acusadores e dos interesses em jogo, a verdade do conteúdo do documento. A
falácia é de doer na retina.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12