"Ninfomaníaca"
dá sequência a um tema presente em toda filmografia do diretor dinamarquês: o
ser humano não deu certo
Rodrigo Giordano
– Carta Maior
Em 2011, um comentário
antissemita durante a coletiva de imprensa do filme “Melancolia” fez de Lars
von Trier persona non grata no Festival de Cannes. Consequentemente, foi
defenestrado pela opinião pública. Levou uma surra. E é assim que Seligman
(Stellan Skarsgård) encontra Joe (Charlotte Gainsbourg) na primeira sequência
de “Ninfomaníaca”: arrebentada. Ele a leva pra casa e ela conta sua história.
Não sem antes avisar que vai ser longa (o filme é dividido em duas partes de
cerca de duas horas cada) e de cunho moral. Temos aí o primeiro indício de quem
esses dois personagens representam: ela, o diretor; ele, o público/a crítica.
Flashbacks retomam desde quando a
protagonista era criança e descobriu não só sua sexualidade, mas um desejo
acima do normal. Num claro exercício psicanalítico, Seligman é o responsável
por nos trazer de voltar ao tempo presente com suas observações, a fim de
entender melhor a trajetória desta mulher que se diz “um ser humano ruim” – e
aqui é clara a referência a outro alter ego do diretor: a personagem de Kirsten
Dunst em “Melancolia”, que afirma que se o mundo acabar, ninguém vai sentir
falta.
Enquanto essa prática de
rememoração e terapia se desenrola, percebemos que não haverá espaço para
elucubrações de nossa parte. Tudo será explicado e colocado na tela de forma
didática e exaustiva. Quando Seligman faz uma analogia com algo contado por Joe
utilizando uma forma de pescar que envolve uma mosca como isca, logo essa
prática nos é mostrada, num método que se repete durante todo o filme.
Tratando-se de von Trier, é claro
que esse didatismo não tem nada de inocente. Sua base é o escárnio. O diretor
parece querer acertar contas pela piada de mau gosto feita há 2 anos. O
resultado respinga na construção dos personagens: superficiais e limitados a
exercerem suas “funções” dentro da história. Algo que fica claro na sequência
em que Mrs.H (Uma Thurman) leva seus filhos à casa da jovem Joe (Stacy Martin)
para lhes mostrar por quem seu pai os largou. A cena é construída a partir de
um humor negro que tem como base a ridicularização e o absurdo das atitudes dos
personagens.
Joe, então, é um caso à parte.
Não é possível dizer que há aqui um “estudo de personagem”. Não há conflito,
nem qualquer resquício de crise. A protagonista possui, desde muito jovem,
completa noção de sua “situação”, e não só a aceita sem questionamentos, como
baseia suas relações (não só sexuais) em seu vício. Seus únicos momentos
aparentemente genuínos são com seu pai, relação que é sugestivamente
incestuosa, claro.
O diretor não só naturaliza o
vício em sexo como o relaciona com a crueldade e o egoísmo. E é curioso notar
que em sua filmografia há raríssimas cenas de sexo em que este não possua conteúdo
doentio ou seja limado de sentimento ou mesmo tesão. Aqui emerge naturalmente a
comparação com dois dos melhores filmes do ano passado, “Azul é a Cor mais
Quente” e “Um Estranho no Lago”. Ambos possuem longas e quase explícitas cenas
de sexo homossexual, as quais nos são exibidas de forma bastante natural,
ficando o choque por conta do grau de moralismo de cada um na plateia. Em
“Ninfomaníaca”, o choque vem antes da imagem, ele é a razão de ser desta, o que
fica ainda mais evidente na forma videoclíptica em que surge.
Desde “Dogville”, von Trier se
esmerou em fazer filmes mais sobre ideias do que personagens ou histórias. Não
é a toa que, ultimamente, pululam textos de viés filosófico e psicanalítico a
respeito de seus filmes. Mas na primeira parte deste último, ele vai além.
Talvez decepcionado com a forma que seus últimos filmes foram interpretados,
talvez querendo tirar um sarro dos críticos, ele decidiu que desta vez já ia
dar as respostas (ou o que imagina que seriam as relações feitas pelo público).
É para isso que o personagem de Seligman serve. E a cena em que explica para
Joe o que é polifonia, usando Bach como exemplo, é o auge deste didatismo.
Quando logo em seguida a protagonista conta três histórias de relacionamentos
completamente diferentes, é construído um painel que as coloca lado a lado
acontecendo ao mesmo tempo. É como se von Trier desenhasse pra que pudéssemos
entender. Mas pior que o menosprezo à inteligência do público, é o menosprezo
da imagem, sempre acompanhada de uma explicação verbal ou imagética que a
limita.
“Ninfomaníaca” dá sequência a um
tema presente em toda filmografia do diretor dinamarquês: o ser humano não deu
certo. E temos aqui mais um capítulo (instrumento narrativo-fetiche do autor,
aliás) do laboratório moral humano que sua obra se pretende. Contando, é claro,
com imenso esforço midiático, que vai da definição do filme como um “pornô
conceitual”, passando pelos infinitos trailers e materiais de divulgação, até a
celeuma da duração do filme – e não é possível que alguém acredite que Lars von
Trier realmente tinha intenção de lançar um filme de cinco horas e meia, e que
acabou tendo seu longa esquartejado e censurado.
Se parte da função do exercício
crítico é buscar referências e significados que auxiliem no alargamento (jamais
explicação) da experiência fílmica do público, esta busca deve ser feita por um
mergulho na obra que, posteriormente, em conjunto de todo repertório analítico
do crítico, deve gerar um resultado final (o texto) que tenha como princípio norteador
o filme em si. A primeira parte de “Ninfomaníaca” dificulta esse processo. Como
visto, há uma espessa camada de poeira formada por marketing, choque gratuito,
auto-reflexão intelectualmente legitimada e polêmica, que atrapalham a
observação de algo realmente autêntico em sua realização. Que a segunda parte
venha como uma vassoura.
Créditos da foto: divulgação
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