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Por Slavoj Žižek, tradução de Artur Renzo para o Blog da
Boitempo
Devemos olhar para as próximas eleições na Europa sob o pano
de fundo dos recentes acontecimentos na Ucrânia. Os protestos que derrubaram
Yanukovich e o seu gangue foram desencadeados pela opção do governo por
priorizar a sua relação com a Rússia sobre a integração com a União Europeia. Como
era de se esperar, muitos esquerdistas reagiram à noticia dos protestos
massivos com o seu habitual tratamento paternalista e racista dos pobres
ucranianos: o quão iludidos estão, ainda idealizando a Europa, incapazes de ver
que ela está em declínio, e que se juntar à União Europeia só fará da Ucrânia
uma colônia econômica da Europa Ocidental, eventualmente levada a posição
equivalente à da Grécia… O que esses esquerdistas ignoram é que os ucranianos
estão longe de estarem cegos sobre a realidade da UE: plenamente conscientes
dos seus problemas e disparidades, a sua mensagem era simplesmente de que a sua
própria situação é muito pior. Os problemas da Europa são ainda problemas de
rico – lembre-se que, apesar da terrível situação da Grécia, refugiados africanos
ainda desembarcam lá en masse, provocando a ira dos patriotas direitistas.
Mas muito mais importante é a pergunta: o que representa a
“Europa” a que se referem os manifestantes? Ela não pode ser reduzida a uma
única visão: abarca o foco completo, desde elementos nacionalistas e inclusive
fascistas até a ideia do que Étienne Balibar chama de égaliberté,
“liberdade-na-igualdade” – a contribuição singular da Europa ao imaginário
político global, mesmo que seja hoje mais e mais traída pelas instituições europeias
–, e ainda, entre esses dois polos, a ingênua confiança no capitalismo
liberal-democrático. O que a Europa deveria ver nos protestos ucranianos é a
sua própria imagem, no que tem de melhor e de pior.
O nacionalismo ucraniano de direita é parte de uma renovada
onda populista anti-imigrante que se apresenta como a defesa da Europa. O
perigo nessa nova direita foi claramente percebida um século atrás por G.K
Chesterton que, em seu Ortodoxia, expôs o impasse fundamental dos críticos da
religião: “Homens que começam a combater a Igreja em virtude da liberdade e da
humanidade acabam por deitar fora a liberdade e a humanidade só para poderem
com isso combater a Igreja.”
O mesmo não vale para os próprios porta-vozes da religião?
Quantos defensores fanáticos da religião não começaram a atacar ferozmente a
cultura contemporânea secular e acabaram a trair toda e qualquer experiência
religiosa significativa? E o mesmo não vale também para a recente onda de
defensores da Europa contra a ameaça imigrante? No seu zelo em proteger o
legado cristão, os novos fanáticos estão dispostos a trair o verdadeiro coração
desse legado.
Então o que fazer numa situação como essa? Os liberais do
mainstreem estão a dizer-nos que, quando os valores democráticos básicos estão
sob ameaça por fundamentalistas étnicos ou religiosos, devemos todos nos unir
sob a agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que pode ser
salvo, e renunciar sonhos maiores de uma transformação social mais radical.
Então, como fica o sonho europeu do capitalismo liberal-democrático? Não se
pode saber, a certo, o que espera a Ucrânia no interior da UE, a começar pelas
medidas de austeridade. Todos sabemos da conhecida piada da última década da
União Soviética sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar… O burocrata do
escritório de emigração pergunta-lhe pela razão, e Rabinovitch responde: “Por
dois motivos. O primeiro é que temo que na União Soviética os comunistas
perderão poder, e que o novo governo colocará toda a culpa pelos seus crimes em
nós, judeus – haverá, mais uma vez, uma política assente no anti-semitismo…”
“Mas”, interrompe o burocrata, “isso é treta, nada pode mudar na União
Soviética: o poder dos comunistas durará para sempre!” “Bem”, responde
Rabinovitch calmamente, “esse é o meu segundo motivo”.
Podemos facilmente imaginar uma conversa semelhante entre um
ucraniano crítico e um administrador financeiro da UE. O ucraniano reclama:
“existem dois motivos pelas quais estamos em pânico aqui na Ucrânia. Primeiro,
tememos que a UE irá simplesmente abandonar-nos à pressão russa e deixar que a
nossa economia caia por água abaixo.” O administrador da UE interrompe-o: “Mas
pode confiar em nós, não vamos abandonar-vos: vamos controlar-vos rigorosamente
e aconselhá-los no que fazer”. “Bem”, responde o ucraniano calmamente, “esse é
o meu segundo motivo”.
Então sim, os manifestantes da praça Maidan foram heróis,
mas a verdadeira luta começa agora: a luta pelo que será a nova Ucrânia. E essa
luta será muito mais dura do que a luta contra a intervenção de Putin. A
questão não é se a Ucrânia é digna ou não da Europa, se é boa o suficiente para
entrar para a UE, mas se a Europa de hoje é digna das aspirações mais profundas
dos ucranianos. Se a Ucrânia for acabar como uma mistura de fundamentalismo
étnico e capitalismo liberal, com oligarcas controlando a cena, será um quadro
tão europeu quanto o é o da Rússia (ou da Hungria) hoje. Comentadores políticos
alegaram que a UE não apoiou a Ucrânia suficientemente no seu conflito com a
Rússia, que a sua resposta à ocupação russa e à anexação da Crimeia foi pouco
enfática. Mas há outro tipo de apoio que está faltando ainda mais: oferecer à
Ucrânia uma estratégia factível de como se desvencilhar do seu impasse socioeconômico.
Para fazer isso, a Europa deverá primeiro transformar-se e renovar o seu
compromisso com o núcleo emancipatório do seu legado.
Nas suas Notas para a definição de cultura, o grande
conservador T.S. Eliot comentou que há momentos em que a única escolha é aquela
entre o sectarismo e a descrença, em que a única forma de manter uma religião
viva é efetuar uma fratura sectária no seu corpo principal. Essa é a nossa
única chance hoje: é somente através de uma “fratura sectária” do cadáver
decadente da velha Europa que poderemos manter vivo o legado europeu de
égaliberté. Tal fratura deverá tornar problemáticas as próprias premissas do
que tendemos a aceitar como destino, como dados não-negociáveis de nosso estado
– o fenômeno comumente designado como Nova Ordem Mundial e a necessidade,
através da “modernização”, de nos acomodar a ele.
Dito de forma direta: se a Nova Ordem Mundial que está
surgindo for o destino não-negociável de todos nós, então a Europa está perdida
e portanto a sua única saída é assumir o risco e quebrar esse feitiço do nosso
destino. Somente numa tal nova Europa poderá a Ucrânia encontrar o seu lugar.
Não são os ucranianos que devem aprender com a Europa, é a própria Europa que
deve aprender a incorporar o sonho que motivou os manifestantes da praça
Maidan.
Que mensagem receberão os ucranianos das eleições europeias?
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