Maria Regina Soares de Lima e Carlos R. S. Milani
Carta Maior
Em boa hora, o Itamaraty resolveu organizar e promover os
Diálogos sobre Política Externa. Durante duas semanas a partir de 26 de
fevereiro, foram debatidos diversos temas fundamentais para a inserção
internacional do Brasil, tais como governança global, desafios da política
comercial, integração regional, cooperação internacional, energia, mudança
climática, Oriente Médio, BRICS e África.
Na esteira de outras iniciativas de natureza semelhante, em
particular as diferentes edições anuais da Conferência Nacional de Política
Externa e Política Internacional realizadas desde 2006 pelo Itamaraty, a
decisão de organizar os Diálogos revela a preocupação da Casa de Rio Branco em
trazer para a esfera pública, com a participação de setores diversos da
sociedade civil (empresários, sindicatos, movimentos sociais, acadêmicos,
mídia) e representantes do Executivo, Legislativo e Judiciário, debates aprofundados
sobre os cenários e desafios da política internacional do Brasil. Abrir canais
de diálogo, consulta e participação com a sociedade no cenário contemporâneo de
tantas demandas democráticas confirma a percepção e a avaliação de diplomatas
brasileiros de que a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se.
O insulamento burocrático de qualquer agência do Estado
democrático e de direito enfraquece sua própria capacidade de formulação e
gestão legítimas de políticas governamentais. A reflexão acadêmica brasileira e
internacional tem enfatizado a dimensão de política pública da política
externa, tendo em vista que abrange, atualmente, amplo leque de questões que
são concomitantemente domésticas e internacionais. Segundo Celso Lafer, “(...)
a política externa – substância da ação diplomática – é uma política pública.
É, no entanto, um tipo especial de política pública, mais qualitativa do que
quantitativa, que exige como passo prévio uma análise, em cada conjuntura,
tanto das demandas da sociedade nacional quanto das oportunidades oferecidas
pelo momento internacional”. As jornadas de junho de 2013 colocaram na agenda
política a necessidade urgente de se aproximar o Estado da sociedade. É,
portanto, mais que oportuno que o MRE se modernize e amplie seus canais
institucionais de diálogo com a esfera social nas suas múltiplas manifestações
e setores.
Hoje se opõem duas concepções distintas sobre qual deveria
ser o formato institucional da participação da sociedade civil nas agendas da
política externa. Uma delas, defendida há tempos pelos setores industriais e
associações como a FIESP, propugna a retirada da coordenação das negociações
comerciais internacionais do Itamaraty em favor da criação de organismo não
ministerial em moldes semelhantes ao USTR (United States Trade Representative)
ou da transformação da CAMEX (Câmara de Comércio Exterior) em espaço
institucional de consulta e formulação da política comercial externa. Em ambos
os casos, o Itamaraty perderia agência e agenda importante da política internacional,
a despeito de seu protagonismo reconhecido com a eleição vitoriosa do
Embaixador Roberto Carvalho de Azevêdo para o cargo de Diretor Geral da OMC
(Organização Mundial do Comércio).
A retirada da agenda comercial de um ministério
eminentemente político e sua inserção em agência de regulação comercial, mais
suscetível à influência de interesses empresariais e lobbies comerciais, pode
incorrer no risco de privatização desta área da política externa, indo assim em
direção oposta ao movimento de democratização de seu processo decisório. Essa
perda da agenda comercial pelo Itamaraty poderia, ademais, abrir as portas a
que, em outros campos (energia e biocombustíveis, mudanças climáticas,
integração regional, cooperação para o desenvolvimento), a PEB fosse pautada
quase exclusivamente por interesses corporativos.
A outra proposta, que aqui defendemos, parte de uma
concepção distinta, radicalizando a dimensão pública da política externa e
colocando sua agenda na esfera da discussão democrática. Por iniciativa do
Grupo de Reflexão de Relações Internacionais (GR-RI), articulação autônoma
composta por indivíduos oriundos de diversos setores progressistas da sociedade
civil, foi organizada na Universidade Federal do ABC, em julho de 2013, a
Conferência Nacional “2003-2013: Uma Nova Política Externa”, no bojo da qual
emergiu a demanda de criação do Conselho Nacional de Política Externa (CONPEB).
Conforme previsto em vários artigos da Carta Constitucional
de 1988, que definiram a participação como ferramenta de gestão pública nas
mais diversas funções governamentais, e concebido nos moldes dos conselhos
nacionais de participação já existentes em outras políticas públicas, o CONPEB,
conselho de natureza consultiva, visaria a acompanhar a condução da política
externa do poder executivo federal e contribuir para a definição de diretrizes
gerais dessa política.
Tal proposta prevê, além da presença dos setores
governamentais específicos da política externa, a participação de uma
diversidade e pluralidade de organizações, movimentos, redes e outros fóruns
que atuam no campo da política externa, contemplando os setores empresariais,
organizações sindicais, movimentos sociais, organizações não governamentais,
fundações partidárias, acadêmicos, instituições de estudos e centros de
pesquisa, entre outros.
Além de promover a democratização das agendas de política
externa e a dimensão propriamente pública de seus debates, a proposta do CONPEB
fortalece institucionalmente o MRE na relação com outros atores governamentais
domésticos e legitima sua capacidade de negociação no exterior, na medida em
que amplia a representatividade e a pluralidade de vozes da sociedade na arena
renovada da política externa. Contrariamente à hipótese do esvaziamento e da
marginalização do Itamaraty, sustentada em artigo recentemente publicado pelo
Embaixador Rubens Barbosa (Sumiço do Brasil e Itamaraty marginalizado, Estado
de SP, 25/03/2014), a criação de formatos institucionais que permitam ampla
participação da sociedade civil dá centralidade ao Itamaraty e se espelha em
processos em curso em várias democracias ocidentais, como nos casos da França e
da Espanha.
Pesquisas acadêmicas recentes têm revelado que, em
democracias presidencialistas, mecanismos dessa natureza se tornam ainda mais
necessários em função da crescente tendência à “diplomacia presidencial”, que
no caso brasileiro se intensificou a partir do governo Fernando Henrique
Cardoso.
Maria Regina Soares de Lima, Pesquisadora Sênior do
IESP-UERJ.
Carlos R. S. Milani, Professor-adjunto do IESP-UERJ.
Ambos são membros do GR-RI.
Créditos da foto: Arquivo
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