sexta-feira, 9 de maio de 2014

A diáspora haitiana alcança o Brasil

Roberto Brilhante / Carta Maior

Os mais de 25 mil haitianos que ingressaram no país após o terremoto de 2010 não são os únicos estrangeiros que escolheram o Brasil para recomeçar a vida.

José Renato Vieira Martins (*) – Carta Maior

Nem o Estado nem a sociedade brasileira parecem preparados para receber o crescente número de refugiados e imigrantes estrangeiros que chegam atualmente ao país.

Os Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e do Trabalho e Emprego às vezes tropeçam na burocracia e, ao invés de facilitar, tendem a dificultar o acesso dos estrangeiros ao país. Decisões do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e do Conselho Nacional da Imigração (CONIG) – órgãos responsáveis pelo reconhecimento, proteção e assistência aos refugiados e pela concessão de visto de trabalho aos imigrantes – demandam pareceres lentos e minuciosos. É claro que é preciso ter cuidado com estes trâmites, pois a ninguém interessa o rebaixamento dos standards sociais e trabalhistas que a concorrência desleal embutida na fragilidade intrínseca à situação de refugiado ou  imigrante poderia ensejar. Ao mesmo tempo, os compromissos humanitários almejados pelo Brasil exigem que os imigrantes e suas famílias sejam amparados enquanto aguardam a regularização de sua situação.

Aos governos estudais faltam meios apropriados, infraestrutura e recursos humanos especializados para prestar a assistência necessária aos estrangeiros. Apenas algumas prefeituras – sobretudo nas grandes cidades onde o problema é mais premente – possuem órgãos específicos para atender a crescente demanda de serviços relacionados aos imigrantes. Em face da debilidade do poder público, as igrejas e pastorais religiosas acabam por desempenhar um papel de assistência meritório. Trata-se, porém, de uma ação inadequada, uma vez que compete ao Estado implementar as políticas públicas necessárias para atendê-los.

Dados das Nações Unidas indicam que, pela primeira vez na história, os fluxos migratórios sul-sul se equiparam aos deslocamentos populacionais em direção ao norte. A crise econômica e o desemprego nos países desenvolvidos explicam parcialmente o fenômeno.  Isto acontece porque, ao contrário do que dizem alguns economistas, a decisão de imigrar não é uma escolha de cunho estritamente racional e individual, associada apenas a fatores econômicos, como a busca por emprego e melhores salários. No mundo globalizado, as redes sociais, a família e os amigos tem um peso importante nessa decisão, muitas vezes motivada por guerras ou desastres naturais.

Os mais de 25 mil haitianos que ingressaram no país após o terremoto de 2010 não são os únicos estrangeiros que escolheram o Brasil para recomeçar a vida. Segundo dados do Ministério da Justiça, o Brasil abriga hoje 5,2 mil refugiados de 79 nacionalidades diferentes, sendo que colombianos e angolanos são quase metade. Quanto aos imigrantes, desde o ano 2000 o número de estrangeiros que entram no país se igualou ao dos brasileiros que saem. Em 2013 o país registrou cerca de 1,5 milhão de ingressos legalizados. Não basta o Estado se capacitar para recebê-los se a sociedade também não estiver preparada para encarar o desafio. O caso dos haitianos revela como estamos longe disso. A recente polêmica entre os governos do Acre e de São Paulo deve ser entendida neste contexto.

Uma pesquisa que estamos realizando no município de Cascavel, cidade do oeste do Paraná onde vivem cerca de 1300 haitianos, é reveladora das contradições existentes no seio da sociedade brasileira em relação aos imigrantes. Grande parte dos haitianos que aí habitam se encontra empregada na agroindústria alimentar, com registro em carteira e acesso aos direitos trabalhistas. Isto se explica porque o salário e as condições de trabalho no abate e corte do frango deixaram de ser atrativos aos brasileiros. Com a falta de mão de obra no setor, o trabalhador haitiano se converteu em uma alternativa vantajosa para as empresas locais, que cumprem uma importante função social ao incorporá-lo ao mercado de trabalho.

Como se sabe, o emprego é importante mas insuficiente para garantir a coesão social. Os salários pagos na agroindústria são baixos e não dão para as remessas financeiras às famílias que ficaram no Haiti. Muitos são obrigados a arrumar um segundo emprego, irregular e sem registro, no qual se submetem a uma exploração intensa. São pedreiros, arrumadeiras, garçons, cozinheiros, serventes.

Uma parte considerável deles (20%) concluiu o terceiro grau. Outra (60%) possui o ensino médio. Embora não se comparem a outras localidades do Brasil – onde já houve denúncia de trabalho escravo – as condições de trabalho na agroindústria de Cascavel representam riscos à saúde. Não só em razão do entra-e-sai nas baixas temperaturas das câmaras frigoríficas, como também em virtude dos frequentes acidentes de trabalho no corte das aves.

Para além dos desafios econômicos, o Estado e grande parte da sociedade brasileira parecem desconhecer os aspectos culturais que o processo de imigração aporta. A implementação de políticas públicas de apoio à diversidade cultural poderia se converter em um fator de desenvolvimento socioeconômico e cultural para todos. Os resultados parciais da pesquisa em Cascavel demonstram que a primeira reação da população em relação aos haitianos tem sido de repulsa racial.

E não há como mudar essa atitude senão pela educação, de modo que a sociedade venha a compreender e aceitar as diferenças que nos separam.

Estudiosos da imigração no contexto da pós-colonialidade alertam para os desafios do deslocamento massivo de populações no planeta. Os haitianos que estão chegando ao Brasil se inserem nesse quadro. Eles deverão aprender uma nova língua, recriar a sua identidade e reconstruir as suas vidas, conscientes de que não serão mais haitianos nem brasileiros. A nós compete algo mais difícil, que é reconhecer e superar uma visão preconceituosa em relação a eles.

(*) Professor de Sociologia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e Vice-presidente do Foro de Universidades do Mercosul (FoMerco).


Créditos da foto: Arquivo

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