Os mais de 25 mil haitianos que
ingressaram no país após o terremoto de 2010 não são os únicos estrangeiros que
escolheram o Brasil para recomeçar a vida.
José Renato Vieira Martins (*) – Carta
Maior
Nem o Estado nem a sociedade
brasileira parecem preparados para receber o crescente número de refugiados e
imigrantes estrangeiros que chegam atualmente ao país.
Os Ministérios da Justiça, das
Relações Exteriores e do Trabalho e Emprego às vezes tropeçam na burocracia e,
ao invés de facilitar, tendem a dificultar o acesso dos estrangeiros ao país.
Decisões do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e do Conselho Nacional
da Imigração (CONIG) – órgãos responsáveis pelo reconhecimento, proteção e
assistência aos refugiados e pela concessão de visto de trabalho aos imigrantes
– demandam pareceres lentos e minuciosos. É claro que é preciso ter cuidado com
estes trâmites, pois a ninguém interessa o rebaixamento dos standards sociais e
trabalhistas que a concorrência desleal embutida na fragilidade intrínseca à
situação de refugiado ou imigrante
poderia ensejar. Ao mesmo tempo, os compromissos humanitários almejados pelo
Brasil exigem que os imigrantes e suas famílias sejam amparados enquanto
aguardam a regularização de sua situação.
Aos governos estudais faltam
meios apropriados, infraestrutura e recursos humanos especializados para
prestar a assistência necessária aos estrangeiros. Apenas algumas prefeituras –
sobretudo nas grandes cidades onde o problema é mais premente – possuem órgãos
específicos para atender a crescente demanda de serviços relacionados aos
imigrantes. Em face da debilidade do poder público, as igrejas e pastorais
religiosas acabam por desempenhar um papel de assistência meritório. Trata-se,
porém, de uma ação inadequada, uma vez que compete ao Estado implementar as
políticas públicas necessárias para atendê-los.
Dados das Nações Unidas indicam
que, pela primeira vez na história, os fluxos migratórios sul-sul se equiparam
aos deslocamentos populacionais em direção ao norte. A crise econômica e o
desemprego nos países desenvolvidos explicam parcialmente o fenômeno. Isto acontece porque, ao contrário do que
dizem alguns economistas, a decisão de imigrar não é uma escolha de cunho
estritamente racional e individual, associada apenas a fatores econômicos, como
a busca por emprego e melhores salários. No mundo globalizado, as redes
sociais, a família e os amigos tem um peso importante nessa decisão, muitas
vezes motivada por guerras ou desastres naturais.
Os mais de 25 mil haitianos que
ingressaram no país após o terremoto de 2010 não são os únicos estrangeiros que
escolheram o Brasil para recomeçar a vida. Segundo dados do Ministério da
Justiça, o Brasil abriga hoje 5,2 mil refugiados de 79 nacionalidades
diferentes, sendo que colombianos e angolanos são quase metade. Quanto aos
imigrantes, desde o ano 2000 o número de estrangeiros que entram no país se
igualou ao dos brasileiros que saem. Em 2013 o país registrou cerca de 1,5
milhão de ingressos legalizados. Não basta o Estado se capacitar para
recebê-los se a sociedade também não estiver preparada para encarar o desafio.
O caso dos haitianos revela como estamos longe disso. A recente polêmica entre
os governos do Acre e de São Paulo deve ser entendida neste contexto.
Uma pesquisa que estamos
realizando no município de Cascavel, cidade do oeste do Paraná onde vivem cerca
de 1300 haitianos, é reveladora das contradições existentes no seio da
sociedade brasileira em relação aos imigrantes. Grande parte dos haitianos que
aí habitam se encontra empregada na agroindústria alimentar, com registro em
carteira e acesso aos direitos trabalhistas. Isto se explica porque o salário e
as condições de trabalho no abate e corte do frango deixaram de ser atrativos
aos brasileiros. Com a falta de mão de obra no setor, o trabalhador haitiano se
converteu em uma alternativa vantajosa para as empresas locais, que cumprem uma
importante função social ao incorporá-lo ao mercado de trabalho.
Como se sabe, o emprego é
importante mas insuficiente para garantir a coesão social. Os salários pagos na
agroindústria são baixos e não dão para as remessas financeiras às famílias que
ficaram no Haiti. Muitos são obrigados a arrumar um segundo emprego, irregular
e sem registro, no qual se submetem a uma exploração intensa. São pedreiros,
arrumadeiras, garçons, cozinheiros, serventes.
Uma parte considerável deles
(20%) concluiu o terceiro grau. Outra (60%) possui o ensino médio. Embora não
se comparem a outras localidades do Brasil – onde já houve denúncia de trabalho
escravo – as condições de trabalho na agroindústria de Cascavel representam
riscos à saúde. Não só em razão do entra-e-sai nas baixas temperaturas das
câmaras frigoríficas, como também em virtude dos frequentes acidentes de
trabalho no corte das aves.
Para além dos desafios
econômicos, o Estado e grande parte da sociedade brasileira parecem desconhecer
os aspectos culturais que o processo de imigração aporta. A implementação de
políticas públicas de apoio à diversidade cultural poderia se converter em um
fator de desenvolvimento socioeconômico e cultural para todos. Os resultados
parciais da pesquisa em Cascavel demonstram que a primeira reação da população
em relação aos haitianos tem sido de repulsa racial.
E não há como mudar essa atitude
senão pela educação, de modo que a sociedade venha a compreender e aceitar as
diferenças que nos separam.
Estudiosos da imigração no
contexto da pós-colonialidade alertam para os desafios do deslocamento massivo
de populações no planeta. Os haitianos que estão chegando ao Brasil se inserem
nesse quadro. Eles deverão aprender uma nova língua, recriar a sua identidade e
reconstruir as suas vidas, conscientes de que não serão mais haitianos nem
brasileiros. A nós compete algo mais difícil, que é reconhecer e superar uma
visão preconceituosa em relação a eles.
(*) Professor de Sociologia da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e Vice-presidente
do Foro de Universidades do Mercosul (FoMerco).
Créditos da foto: Arquivo
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