As manifestações de racismo e preconceito que começam a
surgir, travestidas de crítica ao governo federal, traduzem visões maniqueístas
e intolerantes.
Marco Piva – Carta Maior
Não é do desconhecimento de ninguém que o mundo vive
atualmente uma onda que busca no conservadorismo mais arcaico a solução de todos
os problemas econômicos e sociais. O xenofobismo, para dar um exemplo, renasce
na Europa com uma força impressionante e não será surpresa se, no rastro dessa
pólvora, até mesmo o nazifascismo reaparecer. No livro “Os inimigos íntimos da
democracia” (Companhia das Letras, 2012), o filósofo húngaro Tzvetan Todorov
alerta que “o discurso democrático (...) vem sendo corroído pela proliferação
dos populismos de diversos matizes ideológicos”.
Nesse cenário, onde a crise mundial de 2008 lançou pitadas
ainda maiores de instabilidade e insegurança, em cada país se vive preconceitos
particulares na firme crença de que segregacionismos de toda ordem terão o
poder de preservar a unidade social. Assim, quando grupos imigrantes decidem
aportar em outros horizontes para fugir da miséria, nada mais natural que as
vozes do atraso, que louvam a Deus durante o dia e destilam ódio de noite, se
levantem para dizer em uníssono: “Onde vamos parar?”.
No caso brasileiro, a contradição soa ainda mais forte. A
constituição de uma nação mestiça que resultou numa rica identidade plural não
é suficiente para que grupos aqui e acolá se manifestem da maneira mais
egocêntrica e tacanha possível quando o tema é imigração. Não custa lembrar que
no episódio da nacionalização de uma refinaria da Petrobras na Bolívia não
faltou quem propusesse nada mais nada menos do que a invasão militar do país
vizinho. Na época, o ex-presidente Lula lembrou bem: “Essa gente fala grosso
com a Bolívia, mas fala fininho com os Estados Unidos”.
A periferia da zona leste de São Paulo abriga hoje em torno
de 300 mil imigrantes bolivianos e peruanos. Uma cidade inteira! A maioria
deles quer a legalização de sua situação porque encontra em solo brasileiro a
oportunidade de uma vida melhor. Essa é a prova viva de que as fronteiras são
irrelevantes quando a realidade se impõe. De um lado, dificuldades de
sobrevivência; do outro, a alternativa de trabalho.
O fato é que o Brasil tem hoje uma das menores taxas de
desemprego do planeta e as ofertas de trabalho se multiplicam, especialmente
nos setores da construção civil e de serviços. As notícias se espalham.
Nos últimos dias, a capital paulista tem recebido levas de
haitianos procedentes do Acre, estado pelo qual adentraram ao território
nacional. Falam “criollo” entre eles e francês com os demais. Fugiram do
terrível terremoto de 2010 que devastou Porto Príncipe e deixou um saldo de 100
mil mortos, sem contar centenas de milhares de feridos e desabrigados. Se o
país já sofria as consequências de uma miséria histórica, a situação se agravou
ainda mais depois dessa tragédia.
Os laços brasileiros com o Haiti se fortaleceram quando a
política externa adotada no Itamaraty privilegiou a ampliação de nossa
participação no cenário mundial visando um protagonismo parceiro com países de
todos os continentes e o fortalecimento de mecanismos estratégicos de
integração (Mercosul, Unasul, Celac, BRICS). Essa participação, ao contrário do
que apregoam os seguidores do oráculo do mercado, fortaleceu as exportações,
gerando excedentes seguidos na balança comercial. Na moeda política, o cacife
também cresceu a ponto de ser creditado ao Brasil a importância de uma
nação-líder.
Coube ao Brasil chefiar permanentemente a missão de paz da
ONU no Haiti, tarefa nada fácil em um país com altos índices de violência
urbana. Além da ajuda humanitária em decorrência do terremoto, Brasília assinou
um termo de cooperação com as autoridades de Porto Príncipe abrindo as
fronteiras do nosso país para a vinda de haitianos que queiram aqui se instalar
– hoje, algo em torno de 30 mil pessoas.
O governo do Acre, que recebe esse fluxo de imigrantes, tem
reiterado sua impossibilidade de abrigar todos os haitianos. Tomou a decisão de
enviá-los a São Paulo, em levas diárias de 200 a 250 pessoas. Não se comunicou
adequadamente com as autoridades estaduais e da cidade de São Paulo, prevendo
talvez uma colaboração automática diante de situação social tão dramática.
Apesar desse desencontro inicial, a capital tem toda a condição de receber e
legalizar esses imigrantes, exatamente porque há oferta de emprego. Não à toa,
empreiteiras já perfilaram seus agenciadores nos abrigos oferecendo emprego na
construção civil.
Por isso, as manifestações de racismo e preconceito que
começam a surgir, travestidas de crítica ao atual governo federal (agora tudo é
culpa do PT), traduzem visões maniqueístas que vão na contramão de uma nação
verdadeiramente democrática e de espírito tolerante. Quem pede barreiras
policiais na entrada de São Paulo e o fechamento da fronteira para os haitianos
esquece que num passado nem tão longínquo assim, seus bisavós e avós
percorreram a mesma saga. Se não for por adesão, deveriam acolher os imigrantes
haitianos pelo menos por caridade e amor ao próximo.
(*) Marco Piva é jornalista, descendente de italianos e
espanhóis.
Créditos da foto: Arquivo
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