Ainda que façam aniversário redondo de nascimento e de morte
neste ano, as ditaduras brasileira (iniciada em 1964) e portuguesa (encerrada
em 1974) deixaram lições; diante da repressão de décadas, o mínimo que podemos
fazer é retirar um aprendizado que impeça o retorno de regimes perversos,
antidemocráticos, fascistas
por Rodrigo I. F. Maia/ http://www.diplomatique.org.br/
Neste ano de 2014 são relembrados os cinquenta anos do
começo da ditadura no Brasil, e os quarenta anos do fim da ditadura em
Portugal. Em 1964, começava o regime militar no Brasil, em 1974, terminava a
ditadura fascista em Portugal. Ditaduras que deixaram marcas. Profundas marcas,
enraizadas em estruturas. Em suas origens, foram ditaduras que nasceram de
modos diferentes, mas possuíram serventias parecidas: silenciar uma população
revoltosa com as péssimas condições de vida e que estavam dispostas a mudar a
situação com suas próprias forças.
Em Portugal, a ditadura nasce entre a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial, em 1933, mesmo ano em que Hitler chega ao poder na Alemanha. Ao
lado de Portugal, seria inaugurada na Espanha a feroz ditadura de Franco, em 1939.
Na Itália, Mussolini já estava no poder desde 1922. Além de ser um momento em
que diversos países passaram a viver sob domínios de caráter fascistas,
Portugal era tipicamente um país miserável, com uma grande população abaixo da
linha da pobreza, vivendo em péssimas condições nas cidades e principalmente no
campo, num regime de trabalho que passava dos limites físicos e psicológicos da
exploração capitalista (se é que há algum limite para a exploração). “A base
civil do fascismo lusitano abrangia vários grupos ideológicos de apoio, os
quais combinavam muitas vezes funções de propaganda e organização da sociedade
em apoio a Salazar com intimidações, perseguições, espionagens, agressões e
tudo o que pudesse auxiliar o aparato repressivo” (Lincoln Secco,1 em livro de
2004).
Além de precário, era um trabalho que criava riquezas apenas
para os monopólios das grandes famílias. Diga-se, aliás, que são as mesmas
famílias que ainda dominam o país; é a chamada “Família de famílias”, que detém
os monopólios dos bancos, indústrias e das propriedades dos campos (São os
grupos que hoje fazem parte da União Europeia, embora os nacionais sejam os
pertencentes aos Champalimaud, aos Pinto Magalhães, aos Espirito Santo etc.).
Podemos observar, como disse um antigo pensador, que “o trabalhador se torna
tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta
em poder e extensão”, isto é, “o trabalhador se torna uma mercadoria tão mais
barata quanto mais mercadorias cria” (Karl Marx,2 em 1844).
O contexto da ditadura brasileira é posterior, a ditadura
aqui está inserida no âmbito das ditaduras da América Latina, que começam por
volta dos anos 1970. Paraguai, Chile, Bolívia, Argentina, entre outros países,
passaram a viver num regime militar, que buscava cercear as liberdades,
garantir a propriedade e a ordem. A instabilidade e o risco das burguesias
desses países perderem suas posições dominantes foram determinantes para que
militares entrassem em cena assegurando a continuidade do modo de produção capitalista.
Como disse Caio Prado Jr:3 “Os países da América Latina sempre participaram,
desde sua origem na descoberta e colonização por povos europeus, do mesmo
sistema em que se constituíam as relações econômicas que, em última instância,
foram dar origem ao imperialismo, a saber, o sistema do capitalismo”. Assim,
foram ditaduras militares burguesas, isto é, que passaram a assumir o controle
social quando os partidos comuns não conseguiam mais dar continuidade aos
projetos dos grandes grupos agrários e industriais; ditaduras que lutaram
contra as classes trabalhadoras das cidades e dos campos.
No Brasil, havia (ainda há!) a necessidade de realização da
reforma agrária, da criação de milhões de empregos e de desenvolvimento que
desse qualidade de vida às classes trabalhadoras, mas isso não viria na forma
de benevolência dos governos e do Estado. A preferência da burguesia nacional
(junto dos seus partidos, que durante a ditadura tinham o nome de MDB e Arena)
era de associação com o capital imperialista principalmente dos Estados Unidos,
e a ditadura foi a continuidade da acumulação de riquezas da burguesia no
Brasil, com um tom muito mais agressivo, a partir da retirada de direitos
básicos e da forte repressão (física e psicológica). “O novo regime fortaleceu velhas
taras elitistas e deformações profundamente antidemocráticas da sociedade
brasileira” (Leandro Konder,4 em 1980).
Semelhanças existem. Em Portugal e no Brasil a garantia da
ordem era fundamental. Mas esse é só um lado da situação. A miséria social é um
fator relevante, pois por conta dos governos a solução não seria efetivada.
Diversos setores das classes trabalhadoras estavam organizados e buscando
resolver seus problemas de vida, problemas que passavam pelas relações de
trabalho (de grande exploração e de salários baixos), da falta de moradia, de
saúde, ensino, inexistência de democracia. Os regimes existentes em Portugal e
no Brasil, antes das ditaduras, não favoreciam as populações. Ao contrário.
Eram governos liderados por um bloco da classe dominante, e não só por ela, mas
para ela é que esse governo era exercido.
As duas ditaduras não tiveram motivações diferentes, mas o
fato das classes trabalhadoras se encontrarem efervescentes era algo que as
classes dominantes não podiam controlar. Diante da possibilidade de
trabalhadores, da cidade e do campo, decidirem os rumos de suas vidas e de todo
o país, a intervenção militar armada se tornou necessária para que a mesma
ordem social fosse mantida. Só que agora com muito mais violência.
Mas não só de violência é que se fizeram as ditaduras. Os
militares criaram consenso nacional. Criaram valores que até hoje são vistos
como bons. Ordem não significava liberdade, muito menos condições mínimas de
vida, significava ordem na linha de produção, silêncio de pensamento, barriga
vazia sem o barulho do roncar. O atraso econômico continuou, ainda está em
evidência. Mas a ordem social garantida por meio da violência sobre as classes
trabalhadoras era fator essencial para o progresso exclusivo das classes
dominantes, para o enriquecimento ininterrupto de diversos grupos e
corporações. O mesmo ocorreu em Portugal, ainda que a propaganda de que um bom
governo tenha sido forte. Mas a coisa vai além.
Nos governos militares, os dois países estavam submetidos ao
domínio imperialista, britânico (no caso e Portugal) e norte-americano (no caso
brasileiro). Foram governos que se endividaram para desenvolver estruturas
necessárias às indústrias daqueles que faziam coro com os militares no poder.
Foram dois regimes que também cooperaram. Quando a Revolução dos Cravos, de
1974, coloca a ditadura salazarista em xeque, os grandes grupos financeiros se
esconderam no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, onde puderam retomar
seus negócios e expandir suas riquezas, com apoio da ditadura brasileira.
Tanto os militares atrelados aos burgueses, como a oposição
que resistiu ou aqueles que ao menos tentaram, deixaram suas heranças. Ainda há
repressão, há impunidade aos torturadores, há violência policial ferrenha. Há a
mesma classe dominante no poder. As duas ditaduras caíram, uma por via
revolucionária (a portuguesa em 25 de abril de 1974, na chamada Revolução dos
Cravos) e a outra por negociações entre os militares e os velhos setores
dominantes que aspiravam voltar ao poder, já que a ordem estava
estabelecida em meados da década de 1980 (Brasil). Raquel
Varela5 diz que em Portugal “a queda da ditadura foi imprevista”, sendo que
contribui para a rápida e radical queda do regime de Salazar o fato de Portugal
ainda ter diversas colônias na África guerreando pela independência,
desgastando não só os militares em guerra, mas toda a sociedade portuguesa que
bancava os custos da exploração e das guerras ultracolonialistas com seu suor.
Nos casos brasileiro e português as heranças deixadas continuam
a se chocar, pois permanece a perspectiva das classes dominantes desses países
de que é possível dominar ainda mais as classes trabalhadoras, impor um regime
de trabalho sem direitos (basta observar as terceirizações e os regimes
temporários, os “part time”); mas também há nas classes trabalhadoras a
perspectiva de que o que se vive hoje não é uma democracia, e que é preciso
derrubar o velho poder, não trocando por outro, mas com os próprios
trabalhadores se organizando e decidindo suas vidas.
A queda da ditadura em Portugal embora tenha retirado os
militares associados aos burgueses do país, não impediu que uma década mais
tarde o tipo de democracia introduzido permitisse a volta dos mesmos grupos,
das mesmas famílias que hoje controlam um país em crise profunda. No Brasil, a
transição para a democracia nem de longe foi tão radical quanto em Portugal;
foi uma transição que deu continuidade ao poder dos grandes grupos também, numa
forma pactuada de transição.
Ainda que façam “aniversários” redondos de nascimento e de
morte neste 2014, foram duas ditaduras que deixaram lições; diante da repressão
de décadas, o mínimo que podemos fazer é retirar um aprendizado que não nos
permita voltar a regimes perversos, antidemocráticos, fascistas. Um mesmo
caminho precisa ser determinado pelas classes trabalhadoras tanto de Portugal
como do Brasil, pessoas que constroem as riquezas, mas que pouco dela podem
ter: um caminho da autodeterminação, isto é, do controle e da organização dos
trabalhadores sobre suas próprias vidas.
Rodrigo I. F. Maia
Rodrigo I. F. Maia é mestrando em Ciências Políticas na
Unesp.
1 Caio Prado Jr.: historiador e político brasileiro.
Escreveu “A Revolução Brasileira”, pela editora Brasiliense, em 1966.
2 Karl Marx: filósofo e economista europeu. Esboçou o livro
aqui usado: “Manuscritos Econômicos Filosóficos”, publicado em 2004 pela
Editora Boitempo.
3 Leandro Konder: sociólogo brasileiro, autor de “A
democracia e os Comunistas no Brasil”, pela Graal, em 1980.
4 Lincoln Secco: historiador, professor na USP; autor do
livro “A Revolução dos Cravos”, pela Alameda, em 2004.
5 Raquel Varela: historiadora portuguesa, autora de “A
História do PCP na Revolução dos Cravos”, pela Bertrand, em 2011.
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