Galeano empolgou, e com ele levou milhares de apaixonados
empunhando a bandeira da solidariedade, da dignidade, da conscientização e da
esperança.
José Carlos Peliano - http://cartamaior.com.br/
As veias abertas da América Latina ainda permanecem
espalhando os vírus das desigualdades econômicas e sociais. Grande Galeano que
nos alertou sobre essas enfermidades crônicas e nos armou de indignação e
coragem; pobre Galeano que lutou até o último suspiro sem conseguir ver dias e
situações melhores e perenes.
Os avanços das esquerdas latino-americanas levam junto os
passos dos retrocessos. Não por desejo ou enganação, mas por doença e
contradição. As ideias são livres e poderosas, mas os dias se esbarram em
grilhões e ilegalidades. Quem está por cima não dá lugar, quem está por baixo
já não tem lugar.
A bandeira da argúcia de Galeano, no entanto, foi
desfraldada também por outros em outros povos. Muitos os que navegaram nas
galés singradas por Galeano. Guardadas as diferenças de latitude e longitude
passaram e continuam pelas mesmas águas os barcos de Hobsbawm, Chomsky, Che,
Saramago, Garcia Marques, Amado, Cardenal, Arendt. E milhares de outros
abnegados.
A doença das esquerdas resulta em grande parte de não
conseguirem colocar em prática e bem as ideias revolucionárias transformadoras.
Ideias que levem em frente a abolição da ideologia do mal. Infiltrado nas
injustiças, ilegalidades e discriminações de toda ordem, extensão e lugar.
Ideias e ideais são democráticos porque não têm dono. Pecam
por não suprirem de realização o sonho libertador, a vontade inolvidável de
repartir o mundo para todos sob a regência de uma igualdade humana
inquebrantável de direitos e deveres. Permanece apenas o bordão da liberdade na
arquitetura e construção da ideologia do humano pleno.
Ideias revolucionárias que trombam com ideias
discricionárias quando as armas políticas da luta pelo trabalho, pela
igualdade, pela esperança trombam com as armas do capital, da propriedade, da
austeridade. Milhões de vozes libertárias contra poucos feudos encastelados em
muros de conluios preestabelecidos.
Contra a razão das esquerdas valem-se as classes dominantes
do próprio domínio obtido e mantido ao longo da história por saques, pilhagens
e corrupção, nos primórdios a céu aberto e com a revolução industrial a leis
ditadas pelas mesmas classes. A regulação feita por instituições, ordenamentos
e administrações hierarquizadas e meritocráticas.
Galeano se insurgiu contra esse estado de coisas, vendido a
todos como natural, onde as coisas dominam os homens no diagnóstico de Marx. A
libertação dos homens dessa situação requer das esquerdas caminhos muitas vezes
contraditórios, que mesmo não seguindo a trilha e o labirinto da dominação
capitalista. Doença e contradição caminham juntas na luta democrática sob a
regência do capital.
Contradição entre seguir a trilha e se valer do status quo
vigente para conseguir avançar ou dele não se valer, mas de expedientes
parciais ou radicais de luta revolucionária. Várias experiências socializantes
passaram por isso e os resultados não chegaram a bom termo. Mesmo a
sobrevivente Cuba com avanços consideráveis em educação, saúde e politização do
povo, enfrenta os bloqueios econômicos impostos pelo capital globalizado.
Marx previra que o capital iria destruir-se a si mesmo, mais
dia menos dia, de acordo com seu processo cíclico de acumulação progressiva.
Crises econômicas aqui e ali apontam sintomas embrionários dessa previsão. Mas
o capital consegue se metamorfosear de outras roupagens, seja na esfera
econômica, seja na financeira, seja na institucional, para conseguir ressurgir
das cinzas e voltar à dominação.
O capital assume e transforma as atividades e ações, que na
sociedade se mostram de início com aceitação incipiente mas promissora, em
negócios posteriores, eficientes e lucrativos. As ideias e ideais das esquerdas
não conseguem superar e sobrepujar a sanha, o domínio e o dinheiro dos
capitalistas. A arena de luta se adapta e permanece sendo a da luta de classes.
Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. O ideal da
igualdade entre os homens é primitivo, primal, puro. Perde o tempo, o viço e a
espontaneidade diante da doença e contradição pelas quais passam e sofrem as
esquerdas. Embora o sonho continue. Que se torna pesadelo quando os limites
impostos pela organização institucional dita democrática se fecham restritos. A
superação tem de vencer as impossibilidades.
Daí a vigilância, o alerta e a luta constante. Em todos os
cantos da sociedade onde impere a indiferença, o dolo, o descarte, a pilhagem.
Há que indignar-se sempre, denunciar sempre, incomodar sempre, reagir sempre.
Desigualdades e injustiças se acomodam quando não há expressão de revolta e
combate.
Galeano sabia e seguiu sua vida como o vigia uruguaio da
América Latina, embora com a certeza e a razão latino-americana. Com sua voz de
locutor expandia sua verve, saber e convicção pelos quatro cantos. Empolgou e
com ele levou milhares de apaixonados empunhando a bandeira da solidariedade,
da dignidade, da conscientização e da esperança. Suas armas eram a indignação e
a urgência. Deixou batalhões de indignados e urgentes.
Meu tributo de respeito ao inesquecível amigo de ideias e
ideais:
Tributo a Eduardo Galeano
não fica menor a vida
com a morte de uma flor
do cão predileto, do abacateiro
nem quando não mais estão os pais
a amiga da foto amarelada
a infância agora conto de fadas
fica sim a vida sem cor
quando as veias se rompem
se abrem mais ao longo da América Latina
nem as galés de tempos sem memória
que abriram as veias do grande oceano
perderam vida e cor mas sim história
sem a voz de Eduardo Galeano
*economista, colaborador de Carta Maior
Créditos da foto: DONOSTIA KULTURA / Flickr
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